II Consulta de Teologia e Culturas
Afro-americanas e Caribenhas

São Paulo, 7-11 de novembro de 1994

Oficina 4


O ECUMENISMO
DAS COMUNIDADES DE FÉ NEGRAS

(2ª parte)

<< (1ª parte) <<


Nas comunidades de fé negras reconhecemos
algumas dimensões comuns (afro-ecumênicas).

Uma dimensão religiosa:

Somos um povo eminentemente religioso. Deus está em tudo. Viver é um grande ato de louvor desse Deus presente em nossa vida testemunhado e vivendo em tudo que existe. Sua existência em cada indivíduo, em cada ser e elemento exige que todos estejam juntos neste celebrar: homens, mulheres, crianças, folhas, fogo, água, terra...


Uma dimensão ancestral:

As religiões afro estruturam-se e mantêm-se vivas através da Tradição, baseada em linhagens ancestrais africanas, resultando, assim, numa diversidade de comunidades que irão possuir características próprias de acordo com a sua linhagem e os contextos culturais.

Apesar de diferenciadas, existem elementos comuns nas diversas relações do ser humano como:

Nos sentimos chamados a resgatar, preservar e transmitir toda história de fé das comunidades negras, sejam elas famílias ou religiões, igrejas ou movimentos, antigas ou crianças.


Uma dimensão simbólica:

A Tradição Oral permeia toda a nossa vida. Tradição esta, presente nas palavras, nas cores, nas formas, nos diversos símbolos, no som, no silêncio e nas pessoas. Através da oralidade toda a simbologia ganha um sentido novo e diferente a cada instante que este exercício é realizado, exercício que diz respeito a toda vida. Através da oralidade são transmitidos os conhecimentos a cada pessoa no seu tempo certo, com a pessoa certa. Os mais antigos são na escola da vida, os grandes mestres do saber oral, saber este perpetuado através das cantigas, provérbios e contos... Este saber é protegido pelo segredo como forma de resistência, não permitindo o acesso desse conhecimento aos indivíduos externos ao grupo. Pois, nossa teologia se faz onde há ambiente para acolhê-la.


Uma dimensão sóciopolítica:

Queremos e vivemos um ecumenismo que não se faz ao redor de religiões, mas ao redor de comunidades de fé. Por isso, não carece se estruturar com representantes e delegados de igrejas e religiões numa instância de coordenação ou superior. Mesmo assim, precisa de uma certa organização (uma rede de comunidades de fé?) pois a fé no Deus da Vida que nos reúne alimenta também a nossa luta para que todos tenham vida. E isso não se consegue senão politicamente.

Queremos e vivemos um ecumenismo que não nos una simplesmente ao redor do que de bom temos em comum, mas que saiba respeitar e acolher também as diferenças e as várias identidades distintas. Um ecumenismo que saiba carregar também os nossos erros e os erros dos irmãos como nossos. Como numa família, carrega-se o peso de quem sofre e de quem faz sofrer. Acreditamos também que essa luta política pelo reconhecimento e respeito das diferenças étnicas, raciais, de gênero e religiosas só pode acontecer dentro de um projeto político maior e não somente nas comunidades de fé. Seria muita ingenuidade...

Muitas vezes quebraram nossos pratos de barro, acabaram com nossas festas, despediram o povo de mãos vazias e com fome, esquecendo que o primeiro milagre de Jesus, segundo a tradição, “se deu numa festa”. Ele não queria que a festa fosse interrompida. Na maioria das vezes, o Cristianismo não evitou que a comida se estragasse e uma preocupação trivial do dia a dia passou despercebida por “homens de tanta fé”, enquanto que em muitas comunidades tentava-se a qualquer preço conservar, se não a espécie deste pão, seu sabor, por trás dos símbolos, ritos, sacramentos, ou até mesmo através de uma luta concreta pela justiça.


Somos membros de comunidades
que ainda se perguntam...

Há muitos que participam de sua comunidade de fé e de outras, à procura do rosto de Deus, agradecendo ao Deus da vida nas várias comunidades onde se manifestou ou por uma herança antiga. Não poderíamos olhar para algumas dessas experiências místicas de fé como uma verdadeira inculturação? Devemos acolher a linguagem dominante e considerá- las como sincretismo? Devemos resgatar a palavra sincretismo? Já dissemos, também, na 1ª Consulta(1) que as igrejas rotulam essas vivências de fé como sincretismo porque não querem fazer ecumenismo com as religiões afro-americanas e caribenhas...

À medida em que (re)conhecemos a fé de muitas comunidades negras, descobrimos a revelação de Deus nelas, sua força libertadora e salvadora, sua mensagem para a humanidade. Isso faz com que muitos comecem a questionar nossas cristologias (os conceitos de mediação, salvação, universalismo são ainda muito exclusivistas e excludentes) e nossas eclesiologias (ou a maneira como nos organizamos em comunidade nas igrejas cristãs). Isso cria também resistências.

Sabemos que a discriminação e o preconceito se apóiam no desconhecimento, na manutenção das divisões e, infelizmente, também nas feridas que as pessoas carregam. Como favorecer uma verdadeira fraternidade sem ferir mais pessoas com a nossa urgência e sem deixar que as feridas continuem só nas comunidades negras, eternamente?



PARA QUE A COMIDA NÃO SE ESTRAGUE

(uma parábola)


Um dia foi possível o que hoje chama-se de macroecumenismo. Houve um grande banquete onde católicos, evangélicos e pentecostais reuniram-se com comunidades negras e indígenas. Cantaram, dançaram e conviveram por alguns momentos plenamente. Uma vez a mesa posta, comeram daquilo que tinham trazido: o pão sem fermento, o cuscuz, o inhame. No final da refeição, uma surpresa: parecia que a comida havia se multiplicado de tão grandes as sobras.

Uma parte dos cristãos ali presentes, sugeriu que pela “força da Palavra”, aquele resto poderia ser reaproveitado. Outro segmento, também cristão, propôs que se recolhessem aquelas sobras e se promovesse, num grande Estádio, um dia de curas e milagres; certamente lá, a comida sobrada seria consumida. Por fim, outros sugeriram que se construísse um grande depósito a fim de guardar e preservar toda a comida que havia sobrado...

As duas primeiras propostas foram inviabilizadas pelo tempo, já que era fácil que tamanha quantidade de alimentos se estragasse. E ainda porque todos já estavam fartos do que tinham trazido. A terceira sugestão era inviável, em primeiro lugar, por causa da quantidade que havia sobrado e, depois, pelo fato de se ter ainda que discutir com pastores, padres, pajés e mães-de-santo, quem iria guardar as chaves. Desta maneira, “o que fazer?”, todos pensavam.

Em meio a tantas especulações, um vento forte invadiu o local onde todos estavam reunidos e uma criança seminua, descalça, vinda da rua, sem sacolas, entrou no meio das pessoas e começou a servir-se de tudo. Ela repete o mesmo gesto: parte um pão ázimo, um cuscuz, um inhame, os toma nas mãos e come.

A criança, como aquele que vem de fora, marginalizada por ser o mais pequeno dos pequenos, massa sobrante da sociedade, chama a atenção ao fato de que é preciso esvaziarmos as sacolas. Ela denuncia que cantar com o índio e o negro pode ser até fácil; difícil é comer com eles o seu “pão de cada dia”. Não são os depósitos cheios, nem a força da Palavra que vão evitar que a comida de estrague, mas a sua partilha com o outro. É preciso fazer do pão que eu como a cada dia, algo saboroso para o meu vizinho.

Vamos olhar para as nossas mesas... Muitas vezes, farto de sua comida, o Cristianismo, distanciou-se de seu Mestre e não teve a coragem de abrir mão de seu banquete e experimentar outras formas de comida. E a comida de estragou... Para que o Cristianismo reconquiste seu sentido originário, é preciso que ele não deixe o pão se estragar, pois “Pão estragado é povo estragado”.

É preciso, como os primeiros cristãos, termos a coragem de fazer novas experiências de Deus e apostar no vento que iluminou as primeiras comunidades. Precisamos, ter a ousadia do pequeno que vem de fora e experimentarmos a comida dos não-cristãos. É preciso renunciarmos à tendência que temos de acumular. Nos terreiros se fala: “comida de santo é pra comer...” Para que serve comida depositada? Para apodrecer e criar vermes. É preciso abrirmos mão de “certas verdades da Fé” para que as sobras do banquete não apodreçam.

Partamos juntos, e busquemos compreender que em cada fração de pão partido, é o mesmo Deus que se dá em alimento, o mesmo Deus que luta pelo direito e pela Justiça. De uma coisa temos certeza: o Deus de Jesus Cristo não se aquietará enquanto não se fizer reconhecido em todas as mesas e partilhado por todo seu povo. Este mesmo Deus que se faz presente na Tradição dos Orixás, só nos deixará em paz quando não es estragar o pão de cada dia, ao lado de tantos que morrem de fome.


<< (1ª parte) <<


Participantes da Oficina 4

Heitor Frisotti (Coord.)
Angel Ortiz
Antonio Olímpio de Sant'Ana
Betania Figueroa
Djalma Antonio da Silva
Djalma Rosa Torres
Edir Soares
Geraldo Rocha
Hilário Pandolfo
León Trejos Ramírez
Robson de Oliveira Lage
Vilson Caetano de Souza jr.
Zélia Soares de Souza

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1. Cf. ASETT, Identidade negra e religião. Consulta sobre cultura negra e teologia na América Latina, Rio de Janeiro - São Bernardo do Campo, CEDI-Liberdade, 1986, p. 47.








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