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Quilombo da Serra do Talhado (Paraíba)

Flor Teimosa


"Por um dia fomos hóspedes - no coração da serra - da resistência do negro." O relato de uma visita aos remanescentes de quilombo da Serra do Talhado.

Luiz Zadra


Bem cedo, deixamos para trás Santa Luzia - cidade pacata e humana do sertão da Paraíba, a 270 quilômetros de João Pessoa - e nos aventuramos pela Serra do Talhado, em busca dos remanescentes de um quilombo.

O velho jeep do Pedro vai arrancando os últimos fôlegos nas ladeiras da serra. Não sobrou quase nada inteiro desse velho pioneiro do sertão brasileiro. O maior carinho é o arame que segura os terminais da direção. Motorista de sertão é um pouco artista: consegue botar na estrada sobras de carro das muitas lides sertanejas.

Mas, afinal, vamos subindo, aos trancos e barrancos, penetrando nesse santuário humano escondido num lugar ermo, bem ao gosto dos antigos quilombolas. Quatro léguas de serra e muitas ladeiras nos separam dessa comunidade negra que se instalou aqui por volta de 1885.


A Serra do Talhado é como um vale de uns dez quilômetros de extensão que se abre depois de uma serra e nos separa do mundo. Em pequenos tabuleiros e lugares mais amplos vivem há muito tempo umas quarenta famílias, sobra de muitos anos de luta e resistência contra a seca e a solidão, e também sobra de muitos que já se foram para a cidade.

No coração da serra, Seu Sebastião recebe os visitantes em casa, com a maior satisfação. Faz cinco anos que não aparece padre por aqui.

É dura a realidade do sertanejo, que arranca do chão, com sacrifício, o que a terra pedregosa - mas fértil e generosa - oferece, e que os muitos invernos fracos maltratam.

Muita gente foi se retirando da serra. A seca de 1993 tocou para longe famílias inteiras. Percorro com a mente os mitos dos quilombos. Ainda hoje, as comunidades negras - sinal vivo dos quilombos - significam resistência ao eterno inimigo aperreio.


Enquanto o almoço é preparado em cima do tradicional fogão de barro e as panelas, também de barro, fumegam, tento conversar com os mais velhos. Não é possível reconstruir muita coisa, a não ser os fatos mais recentes. Os mais antigos já se foram, e a memória foi com eles. Só sobraram umas lendas e os de sempre "contam que".

Há desconfiança no ar. Acreditam que as notícias e retratos levados para longe rendem dinheiro e que os nativos nunca são beneficiados. Até lembram do filme "Aruanda", produzido pela Universidade da Paraíba nos anos 50, nunca mostrado na comunidade. "Eles fizeram um dinheirão às nossas custas, e aqui, nada", repara alguém.

De fato, a memória do povo vale ouro! Mas ouro que o tempo e o vento levaram, esse mesmo vento que nos persegue e varre a serra. Talvez tenha levado consigo as muitas dores de um povo cativo, mas altivo, que se defendeu na fuga e escondeu na serra a liberdade e dignidade reconquistadas.


A cor não nega o passado quilombola. São todos negros. Seu Sebastião fala com orgulho da sua terrinha e da sua gente: "Aqui é lugar de artista. Saiu violeiro, repentista e sanfoneiro que andam pelo mundo afora, e o povo faz da olaria uma arte".

Pedro, o motorista, que também é da serra e cuida da saude do povo como agente da prefeitura, garante que esse é um lugar sadio, onde só se morre de velhice. E aparece da cozinha a sogra, Dona Josefa, de 83 anos, cachimbo bem caprichado, de onde extrai lentamente saborosas tragadas, fazendo lembrar os anciãos das aldeias africanas. Andar vagaroso, caminha de um canto para outro e, silenciosa, espalha charme por onde passa.

A respeito das origens do lugar, Seu Sebastião lembra uma história que, com o passar do tempo, acabou virando verdade. "Perto de Santa Luzia tem um lugar, chamado Pitombeira, onde também só moram negros. Dizem que o povo de lá gostava de trabalhar o barro, mas não tinha barro, e que o daqui gostava de trabalhar a madeira, mas não tinha mata. Por isso, decidiram fazer uma troca."

Talvez seja um artifício para decifrar a ligação existente entre as duas comunidades negras, que conservam características semelhantes.


Seu Sebastião tem doze filhos, todos vivos, a maioria morando perto dele. Só dois estão longe, no Rio e em São Paulo. Manoel, Jeoval, Joacil, Terezinha, Cecília... Lembra com orgulho os 43 netos, que fazem a alegria de muitas moradas do vale.

As crianças estão por todo lado, embora não muito familiarizadas no contato com os de fora. Talvez os gestos de carinho sejam escassos na serra, mas, sem dúvida, elas são pequenos reis nessa terra, que prepara para a teimosia e a resistência. Criança é dona do próprio nariz e vive embrenhada em tudo quanto é canto, em pequenos grupos que tudo conhecem e em tudo se metem.

Seu Sebastião lembra do Zé Bento, a cepa mais antiga, e do Chico Bento (o filho, mais conhecido por Ciço Bento), que já se foram, levando consigo muitas histórias e lendas. Ciço Bento foi quem trouxe o forró e o coco para a comunidade.

Mais duas pessoas entram na conversa. Indagadas sobre as secas que sempre perseguiram essas margens, lembram o jeito de o povo sobreviver no tempo da carestia: "Come-se xique-xique, flor de macambira, batata de imbuzeiro...".

Aqui, tendo chuva, tudo dá. Mas, no azar da estiagem, muita ruindade acontece. Seu Sebastião mostra o muito feijão guardado em dois tambores enormes, segurança e prevenção contra a possível longa estiagem, que não perdoa ninguém.


O almoço, servido na mesa grande, é festejado pelos visitantes. Povo generoso esse, rico em humanidade, mas aperreado que só. Em poucos minutos desaparece tanta fartura, lembrança dos tempos bons, dos invernos bons de chuva.

Na missa que celebramos no pequeno grupo escolar, o povo se apresenta e lembra os lugares que pontilham a Serra do Talhado: Balanço, As Almas, Poço da Cruz, Oiticica, Saco de Pedra, Riacho Grande, Macambira, Serrinha.

Os jovens visitantes da cidade animam a celebração com cantos, gestos e objetos afro. Mas o que deveria ser motivo de orgulho para os moradores da serra torna-se motivo de curiosidade e estranheza. Afinal, são filhos da resistência e teimosia dos antepassados, mas nem a escola nem a memória ajudou a conservar o gosto pela raça negra, as cores, os objetos e a ginga das lutas pela sobrevivência.

Pergunto se tem terreiro ou rezador no lugar. "O dono do terreiro foi embora" - respondem -, e só sobrou um rezador, segurança nos momentos de maior aperreio para esse povo que não sabe a quem recorrer nas horas incertas.


Todo mundo animado, porque está chegando a tão prometida luz elétrica. Muitas e falsas promessas amargaram esse povo, que, apesar de tudo, ainda não cansou de esperar. Um povo largado na serra, ao deus-dará. Um povo que, em tempos de eleição, vira gente para um poder irresponsável.

Mas, afinal, a boa notícia é capaz de trazer esperança. Ajuda a tocar para frente o barco no mar da teimosia. Há até quem alimenta o sonho de que os que já se foram se animem a voltar. Na cidade de Santa Luzia, os retirantes da serra formaram um grupo bem unido.

A vida, porém, não é triste. O bingo depois da missa anima a turma: momentos fugazes de ilusão. Futuro incerto pela frente, mas as crianças espalhadas pelo pátio testemunham o continuar da vida que sempre se renova. A vida que, embora tocada pela sina retirante, sempre brota, verde e colorida como as flores da coroa-de-frade que, no meio da seca das pedras, desafiam qualquer lógica.

Por um dia, fomos hóspedes - no coração da serra - da resistência do negro. De uma humanidade em extinção que, apesar de tudo, sobrevive. Na serra, animais, plantas e gente estão todos marcados pelo mesmo destino.

A vida é roubada da boa terra, escondida no meio das pedras e fecundada pela pouca chuva e pela muita gana de viver. Como o xique-xique, o povo criou casca dura e, às vezes, espinhenta, mas esconde no seu âmago o fiozinho da vida que sempre faz amostra de si, como as anônimas flores que nascem no meio das pedras. A vida sempre aposta na vida.


Deixamos para trás a serra, mas essa serra, com suas histórias e lendas, se apega na gente, como a poeira que nos persegue e envolve. Poeira das chapadas e serras do sertão é sempre carregada de sentido: é a cor que acinzenta e faz comungar o povo com a natureza. É algo que gruda e te marca com o seu gosto.

E o futuro desse povo?

É a pergunta que eu sempre gostaria de não enfrentar, de não ter que responder.

Na descida da serra, o olhar se perde no horizonte. No meio das pedras, teimosa, sempre aparece a flor da coroa-de-frade. Talvez seja uma resposta.


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Luiz Zadra, missionário comboniano, é autor do livro Caminhos do sertão (Loyola, 1993). As ilustrações da matéria são do desenhista e pintor piauiense João Batista da Cruz, no livro Saudade do Sertão, editado na Itália.

Textos extraídos da Revista
SEM FRONTEIRAS
(N. 249 - jan/fev 97 - pág. 18)