IX Intereclesial
CEBs: Vida e Esperança nas Massas
São Luís, MA - 1997


Cartilha


CATOLICISMO POPULAR

João Maria Van Damme
Assessor do Secretariado do 9º Intereclesial


1. A religiosidade dos colonizados.

Nos fins do século 15, portugueses e espanhóis invadiram um continente desconhecido. Pensaram que estavam chegando na Índia. Por isso chamaram os habitantes da terra de "índios". Na sua bagagem, os colonizadores trouxeram uma religião. Para eles, era a única verdadeira. Por isso, todos os povos que moravam nas terras sob seu domínio, tinham que conhecer e adotar esta única fonte de verdade: a religião católica.

Os povos indígenas e os escravos negros tinham suas próprias crenças e práticas religiosas. Por muito tempo, eles resistiram à insistência missionária dos católicos. Os colonizadores proibiam seus cultos, danças e rezas. Os nomes dos seus deuses não podiam ser pronunciados. Todos tinham que ser batizados, assistir missas e outros atos religiosos, como procissões, a reza do terço e de ladainhas em latim.

Negros e índios procuravam formas de continuar vivendo sua religiosidade original. Isto não era fácil, porque os senhores colonizadores tratavam com muito violência quem não adotava a religião dominante. Não ser católico significava ser um rebelde e desconhecer a autoridade dos "reis católicos". Os povos dominados assistiam portanto durante o dia as rezas dos brancos. A noite tornou-se o espaço deles. Utilizavam as imagens dos santos para manter o culto aos seus espíritos e orixás.

Entre os colonizadores havia também famílias pobres, que traziam suas tradições para a nova pátria. Sobretudo santos e santas eram importantes para eles. Eram venerados nos oratórios familiares, um pequeno canto, mesa ou altar dentro da casa, nas capelas dos povoados ou fazendas ou ainda nos santuários mantidos por congregações e irmandades. Os leigos, mais do que o clero, lideravam estes cultos. Achavam que era melhor pedir a Deus por intermédio dos santos do que fazer o pedido diretamente. Consideravam Deus muito distante.

Na Igreja Católica, todos os ministérios eram ocupados por homens. As mulheres ocupavam, e ocupam até hoje, posições inferiores. Nas religiões afro e indígenas nem sempre é assim. As mulheres costumam exercer as principais funções nas celebrações e ritos. São elas que garantem muitas vezes o contato com as divindades. A "mistura" religiosa e principalmente a importância das mulheres na vivência religiosa católica popular que nascia desta "mistura", não agradavam à hierarquia eclesial. Por isso, o poder central em Roma decidiu retomar o controle sobre a religiosidade. O primeiro Concílio no Vaticano (Vaticano I) iniciou um processo de romanização das práticas religiosas católicas.


2. Vaticano I e a romanização

Uma das principais medidas que os bispos, reunidos no Vaticano em 1869-70, tomaram foi de unificar a maneira de celebrar liturgias e sacramentos. Não foram mais toleradas expressões próprias dos povos: sua língua, danças, festas. Os "novos" santos que a hierarquia introduziu (Sagrado Coração de Jesus, Nossa Senhora de Lourdes, da Imaculada Conceição, etc.), marginalizam as devoções tradicionais. Como conseqüência, o catolicismo perde importância como culto comunitário e ele se privatiza. Rezas e cultos comunitários perdem lugar. O padre é uma figura central. Ele tem o poder de fazer a ponte entre Deus e a pessoa. O padre pode aproximar-se do altar Ele fala com Deus e vira as costas para o povo. Todos os atos religiosos considerados importantes tinham o padre como ator principal. A prática religiosa do povo era taxada de "superstição".

A fim de fortalecer sua influência, Roma se empenhou ainda na multiplicação das dioceses. Assim, havia mais bispos para controlar este grande território que era o Brasil. Seminários foram abertos, paróquias criadas. A estrutura eclesial vinha para acabar com a independência da rezas populares.


3. A religiosidade do povo revalorizada

Muitas comunidades de cristãos, durante séculos, viviam distantes das matrizes paroquiais e raramente foram visitadas por padres e missionários. As desobrigas eram os únicos momentos em que padres passavam nos povoados para administrar os sacramentos. Em muitos lugares, no entanto, o povo continuava rezando do seu jeito: ladainhas, danças de São Gonçalo e outras. Na vida cotidiana, a partilha e a solidariedade, que são os principais valores evangélicos, eram prática comum.

Com a eleição do Papa João XXIII, um vento novo começou a soprar na Igreja. João XXIII desceu do trono papal, recusou as honrarias e a coroa. Ele voltou sua atenção para os problemas e a vida do povo. Procurou reconhecer os sinais dos tempos. Convocou o segundo Concílio do Vaticano, que ele próprio não pode mais assistir, porque faleceu antes de seu encerramento. Mas preparou os alicerces para uma profunda renovação na Igreja, onde os leigos e os pobres teriam mais lugar e participação.

A romanização da Igreja foi freada. Não se celebrava mais em latim, a língua oficial da estrutura eclesial. O povo começou a ter acesso à Bíblia. Pelo outro lado, o Vaticano tentou diminuir a importância do culto aos santos e suas imagens foram banidas das igrejas. Muitos cristãos não concordavam com isso e continuavam fazendo promessas e pedindo a intervenção de santos e santas para obter a proteção e a ajuda de Deus.

Com estas mudanças, os cristãos leigos começaram a ter maior influência na própria vida da Igreja. Com sua prática de partilha, ajudaram a descobrir novamente o princípio fundamental do cristianismo. Deram sua contribuição nas reflexões sobre as leituras bíblicas. Sua vivência do amor e da solidariedade e suas idéias lançaram uma visão crítica sobre a organização do mundo. Descobriu-se que a Bíblia fala em Justiça e que o mundo estava repleto de injustiças. A Bíblia fala em perdão e o mundo vivia a vingança. A Bíblia fala em Libertação e o mundo estava marcado pela opressão e pela escravidão. A Bíblia diz que deve haver Igualdade. No mundo só se vê exploração e competição. Estávamos longe do sonho do Reino do Amor.

A religião do povo trazia tudo isso para dentro da Igreja. Exercia uma crítica ferrenha ao mundo e suas estruturas. A religião, que estava a serviço da opressão durante muitos séculos, começou a ser mais popular. Deus é dos pobres. A prática religiosa inclui uma vida voltada para o irmão. Esta mensagem brotava da religiosidade do povo e foi confirmada através de muitas declarações oficiais da hierarquia.

Hoje devemos nos perguntar qual será o futuro desta religiosidade. Os meios de comunicação e os poderes econômicos e políticos dão hoje mais importância ao consumismo e à competição. Será que eles conseguirão destruir o sentimento religioso cristão do povo? Na Igreja também h uma tendência de centralizar novamente o poder em Roma e nas mãos da hierarquia. Será que no futuro teremos novamente uma massificação da prática da religião, sem efetiva participação popular? Quem responderá a estas duas questões será a história. E quem faz a história somos nós. Depende de nós, da nossa luta, do nosso empenho, da nossa voz e da nossa ação, o rumo em que a religião do povo caminhará.


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Colaboração: Missionários Combonianos, Salvador, BA