Soldadinhos de fraldas


Eles têm menos de 15 anos. Carregam fuzis que disparam 600 balas por minuto, fuzis estes mais pesados do que eles próprios. Matam qualquer um com muita violência. São as crianças-soldados. No mundo inteiro existem 50 mil, ou até muito mais. São levadas por exércitos sem escrúpulos e enviadas em primeira linha com a ordem de matar.


Ye tem 14 anos. Carrega nos braços um M 16, pesado fuzil americano que ele aprendeu a usar em pouco mais de duas semanas. Órfão de pai e de mãe, Ye encontrou uma segunda família no Karen National Liberation Army (KNLA), um movimento de guerrilheiros que combate desde 1949 para a autonomia da região de Karen do governo de Yangun, capital da União de Mianmá (ex Birmânia). É ele o chefe de uma dúzia de garotos entre 10 e 15 anos que devem vigiar um trecho da fronteira entre a Mianmá e a Tailândia.

Ye não é um voluntário. Foi "seqüestrado" pelos adultos e obrigado a vestir a farda para substituir os soldados que fugiram ou morreram em combate. Fala de morte e violência o tempo todo. Nos momentos livres, joga baralho com seus colegas. Como um adulto, dá ordens a seus subalternos. Mas dá o exemplo. Na hora de combater é o primeiro da fila. Tem coragem para dar e vender. Só uma coisa o aterroriza: ser morto por um sodado inimigo da mesma idade.


A ESCOLA DA MORTE


Ye e seus colegas fazem parte daquela massa de garotos que na África, na Ásia e na América Latina são arrolados por exércitos de guerrilheiros sem escrúpulos e transformados em matadores cruéis.

Antes de combater, as crianças-soldados são submetidas a um adestramento duro e massacrante. Em Moçambique, são penduradas de cabeça para baixo ou obrigadas a incendiar as cabanas das próprias famílias.

Para demonstrar que estão dispostas a tudo, têm que matar os próprios pais e beber sangue humano. Em outros lugares os métodos são menos duros mas trazem graves conseqüências na psicologia e na moral da garotada. Muitas vezes, em vez de sangue é oferecida uma droga como antídoto contra a ânsia e o medo. Em duas semanas de lavagem cerebral e de provas que beiram a loucura, a lição da violência e da crueldade é assimilada definitivamente. Rajab Hassanein, inscrito na organização de Hamas, grupo terrorista da palestina, persegue o sonho de se tornar, aos 22 anos, um terrorista suicida. Espera o dia em que, recheado de explosivos, será um mártir da revolução.

Uma das razões do alistamento das crianças é a conveniência econômica. Os custos são mínimos. Na Libéria, as crianças-soldados podem contar só com um salário: aquilo que conseguem roubar da população civil durante as invasões. Em outros países, a garotada ganha somente um prato de comida por dia. A situação melhora um pouco na União de Mianmá e na Uganda. Na primeira, os garotos ganham uma farda e três pratos de comida por dia, um verdadeiro luxo para quem vem da miséria da roça. Na segunda, os garotos alistados têm chance de estudar, chegando até à faculdade.

Tudo isso, porém, é uma violação da Convenção Internacional dos Direitos da Criança, aprovada em 1989 pela Organização das Nações Unidas (ONU) e assinada por 174 países. A Convenção estabelece que a idade mínima para o alistamento no exército é de 15 anos.


OS DIREITOS DAS CRIANÇAS

Para impedir a exploração de crianças em conflitos armados, a ONU propõe estabelecer os 18 anos como idade mínima para o alistamento no exército. Infelizmente esta proposta encontra a oposição de muitos países, entre os quais estão os Estados Unidos, a Inglaterra, a Holanda e a França.


MARCADOS PARA SEMPRE


As crianças-soldados são mais de 50 mil, chegando até a 200 mil. Só na Libéria há 6 mil. Aprendem rapidamente a linguagem da violência. Os piores crimes registrados em Moçambique durante a guerra civil foram cometidos por crianças menores de 8 anos.

Mais ou menos da mesma idade são os soldados convocados pelos guerrilheiros do Sri Lanka, do Sudão e de Angola.

Samuel Bull também tinha oito anos quando foi convocado pela Frente Patriótica Nacional da Libéria. Tornou-se um atirador de elite cruel. "Matei três pessoas e uma mulher que não queria me dar comida", confessa a um grupo de jornalistas. "Adoro o barulho da metralhadora. Parece música". Por sua "coragem", foi congratulado e promovido a capitão pelo chefe da guerrilha, Charles Taylor. Após quatro anos de combates, sentiu-se enojado e se entregou a um grupo da ONU.

As crianças obrigadas a combater ficam marcadas para sempre. É o caso de Rodrigo, convocado pela Renamo, o grupo de guerrilheiros que ensangüentou Moçambique até 1992. Seus colegas tinham em média 12 anos.

Arriscou muito para fugir. Se fosse preso, acabaria diante de um pelotão de fuzilamento. A guerra deixou nele sinais permanentes: uma cicatriz no peito e um estilhaço ainda alojado debaixo do olho esquerdo. E também muita vergonha pelo que foi obrigado a fazer. Hoje se sente livre de um terrível pesadelo: "A guerra é só uma lembrança muito triste. Matei e roubei. Mas não quero falar disso. Agora só penso em encontrar um emprego e formar uma família." Voltou para a escola com muita vontade de aprender e recuperar os dias perdidos. São poucos os garotos que como ele conseguem se libertar do passado. A vida militar deixa sinais inesquecíveis. Muitos garotos com passado militar guardam o instinto da prepotência e da violência gratuita. A melhor terapia é conseguir uma família. Entre as paredes de uma casa acolhedora, ainda é possível esquecer os barulhos, os gritos e as atrocidades da guerra.


Valério Bocci



A CONVENÇÃO INTERNACIONAL

No dia 20 de novembro de 1989, 174 Nações assinaram a Convenção Internacional dos Direitos da Criança. Ela estabelece que toda criança tem o direito de ser protegida de qualquer tipo de exploração econômica, violência e abandono. Apesar disso, 14 milhões de crianças com menos de 5 anos morrem todos os anos por causa da guerra, da fome e das doenças; 200 milhões de crianças entre os 5 e os 15 anos são exploradas no trabalho; 100 milhões de crianças vivem nas ruas e uma criança em cada 5 é obrigada a trabalhar antes do tempo.



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