Natal
A Festa!

O MENINO JESUS


A noite estava muito fria. Nas colinas das vizinhanças, os pastores estavam embrulhados em seus mantos. Suas ovelhas estavam bem abrigadas dentro das grandes paredes de pedra do curral. No alto, no céu escuro, brilhavam estrelas cintilantes. Todo mundo dormia. Só Maria e José andavam à procura de um lugar para descansar. "Vamos ficar aqui!", disse José ao chegar em frente a uma gruta usada para abrigar os animais durante a noite. Entrou, arrumou uma cama de palha para Maria e lá ficaram juntamente com bois e burros. Ali, Maria deu à luz o seu filho. Um anjo lhe tinha dito, muito antes, que ele deveria se chamar Jesus.

O menino Jesus foi lavado, embrulhado em paninhos e enfaixado com tiras de pano de linho. Este enfaixamento ajudava os membros a crescerem certinhos. Jesus foi colocado numa manjedoura de pedra. Ali estava abrigado e quentinho, na sua cama de palha.

"Jesus" quer dizer "Deus salva". O menino Jesus tinha sido enviado por Deus para salvar o seu povo. Assim nasceu Jesus Salvador, não num palácio real, mas numa estrebaria, em Belém.

No céu houve uma grande festa. Os anjos começaram a cantar a voz alta e seus gritos de alegria chegaram a acordar todo o mundo. Na gruta não cabia mais ninguém. Chegava gente de todos os lados: pastores, moças que tinham trabalhado o dia inteiro nos bares e restaurantes, cachaceiros sem rumo, vagabundos sem dinheiro e lugar para dormir. Vinham ver o menino e desejar tudo de bom para seus pais. Diziam: "Ele é o Rei que vai transformar o mundo. Um Rei que vai aproximar Deus dos homens. O imperador e os reis não sabem nada dele. Também não é de sua conta. Para nós esta criança vale mais que todos estes mandachuva juntos. Para ele vamos tocar nossos instrumentos e cantar. A gente não consegue segurar a alegria."


NAS TREVAS BRILHOU A LUZ


Conheci Vicentina no Natal. Após a missa da noite, ela entrou, suja, descalça, gritando muito, empurrando as pessoas, exigindo comida. Uma apresentação dramática, um conhecimento forçado, no meu primeiro Natal na comunidade, o meu primeiro Natal como padre. Vicentina era uma mulher de rua, negra, alta, forte, seu corpo volumoso se movia com dificuldade, embebido em álcool.

Vicentina era doce e violenta, andava com uma enorme faca, para exigir o que queria. Com a faca na mão entrava na padaria, no açougue, e com ela apontava o que queria e depois batia com a lâmina no balcão, esperando a generosidade forçada, que chegava à sua mão em forma de carne ou pão.

Vicentina gostava de conversar e contar a sua vida. Dizia que tinha sido cozinheira de forno e fogão e que, na casa em que trabalhava, fora acusada de roubo e levada para a prisão. Perdeu os filhos, que foram para a Febem, e nunca mais os encontrou. Saindo da prisão, se tornou moradora de rua embaixo do viaduto Guadalajara, no bairro do Belém, em São Paulo.

Cozinhava bem, buscava ingredientes, temperos, fazia cardápios reais e imaginários, convidava para comer. Muitas vezes encontrei Vicentina ferida, embaixo do viaduto, suja, faminta, embriagada, chorando ou cantando, enlouquecida, violenta e doce.

O relacionamento com seu companheiro de rua, o Jair, era de conflito e fidelidade. O Jair escritor, poeta e beberrão, apanhava da mulher, às vezes batia também, mas se amavam de um jeito próprio, difícil de entender.

Com o tempo, Vicentina foi se tornando amiga. Freqüentava as celebrações litúrgicas. Empurrava as pessoas para entrar na igreja e arranjar um lugar no banco. O povo da comunidade não entendia. O bairro inteiro era contra. Só um grupo de senhoras passou a compreendê-la e a exercer o acolhimento para com ela. Costuravam vestidos para ela. Cortavam as unhas de seus pés, davam banho, alimentavam e vestiam-na.

Embaixo do viaduto moravam outros homens e mulheres da rua, onde realizávamos encontros com o grupo, e onde fizemos até novena de Natal.

A prefeitura cedeu o lugar para a construção de um centro comunitário. Pensávamos no que fazer para envolver os moradores de rua no projeto, como envolver Vicentina, de certa forma líder do grupo que já estava lá. Convencer Vicentina era necessário. Envolvê-la, imprescindível. Conviver com ela já era nossa tarefa, assumida como missão.

Ela não entendia nada de comunidade. O que entendia bem era de um prato de feijão com farinha, um abraço, um beijo... Mas seus olhos negros, sofridos e ao mesmo tempo carregados de esperança, levavam todos a acreditar no impossível.

Um dia pela manhã, no centro comunitário, eu celebrava a missa, pensando em Vicentina, quando o grupo que com ela morava entrou às pressas na igreja, indo direto ao altar para me dizer em coro:

- A Vicentina morreu.

- O quê?

- A Vicentina morreu, embaixo do viaduto, hoje de madrugada. Deu um grito, espumando pela boca, e morreu. A polícia já levou.

Terminei às pressas e fui para lá. Era verdade. O Jair chorava, não sabia como explicar. Fomos até o hospital do Tatuapé. Lá a encontramos, imóvel, emudecida. Trouxemos o seu corpo à igreja para ser velado e para celebrarmos a missa de corpo presente.

Ao chegar na igreja, me lembrei que no domingo anterior Vicentina tinha participado da celebração, entrando, como de costume, empurrando as pessoas. Sentara no último banco e, irrequieta, me olhava no final da homilia. Já esperava por tudo, quando ela gritou, lá do fundo:

- Olha eu aqui! Você nem me viu?

- Eu vi você, Vicentina, e nós a amamos muito. Um beijo pra você.

Foi a nossa despedida.

O povo da rua veio para o velório e a missa. Enterramos ela no cemitério da Vila Formosa.

A missa de sétimo dia foi embaixo do viaduto. O povo da rua limpou, varreu, fez um altar de caixotes, enfeitou, fez até fogueira. Havia mais de trezentas pessoas do bairro na celebração. No final, muitas velas acesas formavam um círculo no chão. Toda a comunidade fez a promessa de ajudar a construir ali o centro comunitário para o povo da rua.

Vicentina foi a semente, a luz que brilhou na escuridão.

Vicentina, no Natal conheci você; em seu rosto negro e sofrido, Jesus reconheci! Não foi fácil, foi difícil, abrir o meu coração para você. Mas não tinha outra escolha. Não dá para contemplar o rosto do menino Jesus sem fixar o próprio olhar nos olhos do povo sofrido.


Júlio Lancellotti



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