Daniel Comboni

O menino de Limone
apaixonado pela África

João Pedro Baresi


Início de outubro de 1881. A cena apocalíptica tem lugar numa região cheia de mistérios e pavores, no centro da África. Um longo período de seca deixou um número incontável de mortos, famintos, desesperados.

Nas últimas semanas, começou a chover sem parar e, com as chuvas, chegou também uma epidemia de febre que dizima os sobreviventes da seca.

A tragédia se repete desde sempre, mas há algo de novo dessa vez. É que, nos últimos tempos, apareceu por ali um grupo de homens e mulheres brancos que em nada recordam outros brancos muito conhecidos, portadores de tantas desgraças para os negros.

Esses são de fato diferentes. Não vieram para assaltar, massacrar idosos e levar os mais jovens como escravos para onde ninguém sabe. Estão ali, bem junto com as pessoas, na hora da dor, da doença e da morte. Em nome de um Deus de quem até agora não se tinha ouvido falar, eles dão provas de que estão do lado dos negros, enfrentando com valentia os mercadores de seres humanos. Perseguidos, tantas vezes derrotados pela doença e a morte, teimosamente voltaram em novas expedições.

E, agora, ali está o último grupo deles. Uma dezena de homens e mulheres, liderados pelo mais corajoso de todos, o abuna (padre) Daniel Comboni. Tudo indica que soou mais uma vez a hora da derrota. A epidemia os alcança a todos. Quatro deles morrem no espaço de uma semana, enquanto outros quatro estão de cama, delirando de febre. Só resistem o bispo Daniel e o padre João. Arrastam-se de um lado para o outro, acudindo os doentes, sepultando com uma prece os inúmeros mortos.

No dia 4 de outubro, é a vez de o abuna Daniel cair de cama. Na manhã do dia 10, ainda reúne forças para se levantar e ir à janela ver passar o enterro de mais um missionário. Chega a noite e, com ela, os sinais muito claros de que está no fim. Ele pressente. Aos sobreviventes que o rodeiam, deixa o seu testamento: “Desta vez, a morte me pegou. Mas a minha obra não morrerá”.

Às 22 horas do dia 10 de outubro de 1881 chega ao fim a existência terrena de um homem de 50 anos que tinha jurado viver e morrer pelos africanos.



Daniel Comboni nasceu em 15 de março de 1831 em Limone, pequeno povoado do norte da Itália, às margens do lago de Garda, o maior do país. Um lugarejo encantador, hoje muito procurado por turistas. Ainda mais depois que se tornou mundialmente famoso por um fato curioso: lá, livres de enfartes, as pessoas vivem mais do que em qualquer parte do mundo. O assunto inclusive mereceu destaque na mídia brasileira. Viver um pouquinho mais até que seria muito interessante para grande parcela da população nacional.

Tamanha sorte não tiveram sete dos oito filhos de Luís e Dominica, irmãos de Daniel Comboni, que morreram ainda muito jovens. Os pais eram pessoas humildes. Viviam do arrendamento de um pequeno sítio onde cultivavam oliveiras.

E qual não foi a surpresa dos pais ao notar que Daniel, o único sobrevivente, dava claros sinais de que sonhava mais longe. Aos 10 anos, manifesta o desejo de se tornar padre. Tem que sair de casa para estudar em Verona, a grande cidade perto da outra margem do lago. É acolhido num instituto fundado e dirigido por Nicolau Mazza, um sacerdote velhinho e todo cheio de bondade que dedica a vida à formação de jovens sem recursos.

Inteligente e sensível, com sólidos princípios religiosos adquiridos na família, Daniel se dá bem e avança rapidamente no caminho escolhido. Aos 15 anos, empolga-se com a leitura da história dos mártires do Japão, crucificados em Nagasaki em 1597. Haveria ideal mais atraente do que pregar o Evangelho e morrer por Cristo?

Três anos mais tarde, sacudido pelo relato de um missionário, o padre Ângelo Vinco, desloca o seu interesse para a África. Rostos sofridos de lugares nunca vistos conquistam o seu coração. Um verdadeiro amor à primeira vista. Ou melhor, “ao primeiro ouvido”.

O resto de sua vida serviu para demonstrar que esse amor nada tinha a ver com entusiasmo passageiro. Era uma paixão que tinha vindo para ficar. O primeiro amor da sua juventude foi pela “infeliz Nigrícia” (os povos do centro da África), confessaria mais tarde. Um amor do qual ele morreria, como se morre de uma doença incurável.



Aos 23 anos Daniel se torna padre e, aos 26, pede para integrar um grupo de seis missionários destinados à África. É o caçula de um expedição decisiva. Roma já não agüentava mais tantos insucessos e mortes de missionários. Parecia impossível a tentativa de implantar a missão na África. Nos anos anteriores já tinham morrido cerca de cinqüenta missionários. Só seriam permitidas mais duas tentativas: a de Nicolau Mazza e uma outra, de franciscanos. Caso fracassassem, a missão africana seria definitivamente encerrada. Era essa a decisão de Roma.

Os sinais de fracasso aparecem mais cedo do que previsto. Logo na chegada acontece a primeira baixa na expedição de Nicolau Mazza. Mais alguns meses, morrem outros dois e, dos três que sobram, dois estão seriamente enfermos. Daniel é um deles.

A expedição franciscana é ainda mais desastrosa. Em poucos meses morrem treze frades. Mas a fé teimosa dos missionários desafia o clima implacável e os iluminados raciocínios de Roma.

“Não larguem a obra iniciada. Mesmo que tenha que ficar um só de vocês, não desanimem.” O testamento do chefe da expedição ressoa aos ouvidos de Daniel como apelo a um juramento sagrado. E ele jura, de fato, a si mesmo, à Igreja e à África, que será fiel até à morte. Sela esse seu compromisso com um lema: “África ou morte!”.


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