Editorial

DE CANUDOS AOS SEM-TERRA
 
 
Amanhecia o dia 6 de outubro de 1897. Na véspera, o massacre final de Canudos. Por entre a trincheira de corpos, argamassada de sangue e pus, o Exército Brasileiro enfim descobria o cadáver de Antônio Vicente Mendes Maciel, o Antônio Conselheiro, enterrado fazia mais de uma semana. A descrição é de Euclides da Cunha, no desfecho de Os Sertões:

Desenterraram-no cuidadosamente (...) Fotografaram-no depois (...) Restituíram-no à cova. Pensaram, porém, depois, em guardar a sua cabeça tantas vezes maldita (...) Uma faca jeitosamente brandida cortou-lha (...) Trouxeram depois para o litoral, onde deliravam multidões em festa, aquele crânio. Que a ciência dissesse a última palavra.

Cortada a cabeça, estaria a alma apartada das mãos? Os olhos restariam afastados dos pés?  Talvez julgasse assim a ciência oficial da época, a Medicina-Legal. Antes mesmo do Conselheiro, o salteador Lucas Evangelista tivera a cabeça decepada em Feira de Santana; décadas mais tarde, seria a vez de Lampião e seu bando perderem as cabeças, isso já no tempo do legista Estácio de Lima. A propósito, o coronel Antônio Moreira César, chefe da Terceira Expedição, derrotada pelos canudenses no início de 1897, possuía o sintomático apelido de “Corta-Cabeças”.

No entanto, para apagar a lembrança de Canudos, as elites da época não contentaram-se em cortar cabeças (apesar de terem largamente praticado a degola, inclusive com prisioneiros de guerra). Decidiram que seria preciso muito mais: incendiar as casas, salgar os campos, arrasar a terra. Mais tarde, quando a cidade ressurgiu, afogaram-na pelo Açude de Cocorobó, isso em 1968, justo no momento mais cruel de outra  ditadura militar da história brasileira.

Ainda assim, Canudos não se rendeu. Passados cem anos, as águas do açude baixaram, fazendo aflorar as terras, as ruínas, as memórias do Belo Monte, de sua resistência e do seu massacre.

Canudos se deixa ver de novo. Como enxergá-la, porém?

Desde o calor da hora, múltiplas foram as leituras propostas: para a Igreja, seriam fanáticos; monarquistas, para os governantes; subversivos, para o Exército; retrógrados, para os intelectuais. Tudo em vão: por entre as fumaças dos tiroteios (e dos sucessivos incêndios), a questão central que as elites (econômicas, políticas, religiosas) procuravam ocultar enfim revela-se: a terra (e, junto com ela, a mão-de-obra).

Até mesmo um pensador conservador, como Euclides da Cunha, reconhece que “o homem dos sertões, mais do que qualquer outro, está em função imediata da terra”.

Não só no cenário nordestino de cem anos atrás, mas em todo o Brasil, ainda hoje a terra continua concentrada nos latifúndios (“engolfantes”, no sábio dizer de um camponês), mal-repartida e disputada numa guerra que parece não ter fim. O mesmo vale para as políticas agrícolas das antigas e novas Repúblicas - principalmente em tempos de Real -, inimigas do homem e da mulher do campo.

Canudos não ficou no passado, nem se limitou ao Sertão. Ou melhor, no dizer de Guimarães Rosa, “o sertão está em toda parte”. O fim do século XIX, Canudos no meio, deflagrou uma série de  contradições na história deste país, cujos desdobramentos contemplamos agora com mais clareza: Norte x Sul; Interior x Litoral; Atraso x Modernidade.

Muitas novas Canudos sucederam-se de lá para cá: Contestado, Caldeirão Grande, Pau de Colher, Ronda Alta, Corumbiara, Eldorado dos Carajás. Nas veias de um povo, as veias abertas da terra inteira. Nomes, heróis e lugares do Brasil de ontem e de hoje, sonhados, marcados, abençoados e amaldiçoados. Nos sertões, nos cerradoss ou nos gerais, milhões de sem-terra - os inempregáveis de sempre - cultivando sonhos de liberdade no pão de cada dia.

A continuidade se faz em meio às diferenças. A Terra Prometida de ontem, às margens do Vaza-Barris, onde se aguardava rios de leite e barrancos de cuscuz, transformou-se nos assentamentos de beira de estrada, nos quais luta-se por escolas, postos de saúde e crédito para produzir.

Aliás, como afirmam certos estudiosos da Guerra, muitos dos soldados do Exército brasileiro que retornaram da batalha, relegados à miséria pelo Governo da República, foram obrigados a ocupar os morros cariocas, batizando-os com o nome de uma das localidades da cidadela recém-destruída: favela.

No Brasil de 1997, a luta pela terra prossegue, no campo e na cidade. E a experiência de Canudos tem servido de emblema para uma boa parte dos movimentos sociais contemporâneos:

Eu conheço esse Antônio Conselheiro. Há muitos anos eu ouvi os mais velhos falarem que ele era o homem da terra. Os mais velhos falavam que ele dava conselho prá lutar prá sair da escravidão dos fazendeiros.
[Zé Grande, membro de um acampamento no sudoeste da Bahia]

Canudos não morreu. Renasce das cinzas e das águas, neste outro fim de século, fim de milênio também. Das favelas e mocambos das cidades, dos acampamentos dos sem-terra, continuam ecoando os gritos abafados por tantos anos.

Neste número especial dos Cadernos do CEAS dedicado a Canudos, as falas e façanhas de Antônio Conselheiro, João Abade e Pajéu misturam-se com as de Zito, Lua, Dámaso, Dionísio, Zé Grande, Chalana, Dinha e tantos outros, construindo novos e velhos Belos Montes por este Brasil afora. Segundo a proposta de um militante do MST : transformar o homem e a mulher num novo homem e numa nova mulher .

Coincidência ou não, ainda neste 1997, outra exumação teve lugar, no interior da Bolívia, bem no coração da América: o corpo de Ernesto Che Guevara, abatido há exatos trinta anos nas selvas bravias de Lacandona. As mãos que deceparam-lhe, então, podem enfim religar-se ao corpo e aos pés. Quem haverá de restituir-lhe a alma?

De uma forma ou de outra, o 5 de outubro (de 1897) e o 9 de outubro (de 1967) revivem no imaginário popular:

Che, Zumbi, Antônio Conselheiro,
na luta por justiça,
nós somos companheiros!

Não esperemos, como Euclides, que a ciência dê a última palavra. A memória de Canudos clama por um testemunho concreto, aqui e agora. Mas é sempre necessário decidir qual Canudos se deseja visitar: como diria Rosa, Sertão ou Sertões, é questão de opiniões.
 

 

Cadernos do Ceas
 
 
 
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