Editorial

Os Cinco Cês

A língua do C nos persegue: Candelária, Carandiru, Corumbiara, Caruaru, Carajás ...

Como conciliar com carrascos? Como chamar chefes certos criminosos? Cada caso comove-nos. Cada chacina corrói. Cada crueldade compunge. Com certeza, calarão comentários, constrangerão civis, comutarão culpas. Cabe combatê-los. Cada crime clama correção.

Preferem outra linguagem as nossas elites. Entre sibilos e cicios, sussurram os "esses" que nos deveriam levar ao Terceiro Milênio, conduzir-nos para além do Terceiro Mundo. Falam de um outro Tempo, de uma nova Idade. Trombeteiam o advento da Era do Fim do Emprego e já não titubeiam em soar o alarme: em breve, segundo tais apóstolos, dois mundos se oporão. De um lado, os globalizados, linkados ao planeta, navegantes da Internet. De outro, os outros. (Existem até alguns mais cínicos, para os quais pertencer a um destes mundos será mera questão de escolha ... ).

Curiosamente, estes mesmos arautos mesclam o tom catastrofista do discurso com a promessa de um Eldorado. Para tanto, sacam do filósofo Bill Gates em sua previsão da "melhoria da qualidade de vida para todos" no século XXI. Seria uma elementar perversão da lógica, não fosse a metáfora náutica que dá sentido à integralidade prenunciada: neste novo mundo, enquanto uns navegam, os demais se afogam. Omitem, contudo, a situação intermediária de boiar. Além do que, é sempre bom ter em mente, nem tudo que bóia é alga ...

É mais embaixo o nosso Eldorado. Situa-se cerca de quatro graus abaixo da Linha do Equador, na estrada que liga o sul do Pará a Belém. Aí, na tarde de 17 de abril último, dois pelotões da Polícia Militar (num total de 200 homens) cercaram 1200 trabalhadores rurais sem-terra - que bloqueavam a referida rodovia em ato de protesto - e abriram fogo cruzado, num saldo (oficial) de 19 mortos, mais de 40 feridos e a suspeita de crianças e mulheres desaparecidas.

Corpos caídos. O parecer do legista da Unicamp (um dos mais reputados do país) não deixa dúvidas: trata-se de uma execução deliberada, de extermínio intencional dos sem-terra. A geografia das balas é inequívoca: disparos à queima-roupa, crânios esmagados, tiros pelas costas e na região da nuca. A economia dos projéteis, ainda mais cruel: nada de rajadas de metralhadores e sim não mais que três ou quatro perfurações por pessoa. Precisas.

Corpos crivados. Tudo indica estarmos diante de um massacre seletivo, qualificado e premeditado. Como explicar que policiais militares de serviço não portassem suas devidas identificações? Como entender senão deste modo a cautelosa recomendação do major no sentido de que se queimasse o habitual registro de cada arma utilizada?

Corpos cadáveres. Diante dos latifúndios deste país, já nos alertava o poeta João Cabral para "os roçados da morte", para a "terra que abriga e veste", para o chão "que se abre e te fecha", para a morte que vem "de velhice antes dos trinta, de emboscada antes dos vinte". Oziel Alves Pereira, goiano, era líder dos Sem-Terra desde a adolescência e foi abatido com quatro tiros. Tinha menos de 18 anos.

O massacre de Eldorado dos Carajás se constitui num dos episódios desta política de extermínio. Nem o primeiro, tampouco o último. A propósito, em dezembro de 1987, na vizinha Serra Pelada, 30 foram os mortos, 133 os desaparecidos ... A impunidade, por sua vez, é não-somente urdida como legitimada. Ressoam altas as afirmações dos fazendeiros acerca da infiltração de "assassinos" no MST. O próprio relatório do Ministério da Justiça defende a hipótese de que a tragédia teria acontecido por conta dos trabalhadores rurais, supostamente os primeiros a atirar. Por fim, a ressurreta TFP (Tradição, Família e Propriedade) faz publicar na grande imprensa nacional uma "latifundiária" matéria de quase página inteira onde responsabiliza os sem-terra pelo conflito do Pará, na medida em que suas ações seriam "mais de guerrilheiros do que de trabalhadores rurais". Em verdade, quando se apregoam os cinco "esses" da qualidade total, só conseguimos apreender estes três: servilismo, simulacro, sordidez ...

Para além destas várias versões, reemerge no centro dos debates a insepulta questão da terra no Brasil. Em editorial de janeiro deste ano, insistíamos no tema da Reforma Agrária como "a mais antiga problemática sócio-estrutural do país". Os acontecimentos presentes apontam para a persistência da brutal concentração fundiária brasileira, com apenas 1% dos proprietários detendo cerca de 44% das terras, ao passo que mais de 50% dos proprietários se acotovelam em minúsculos 2,6% de terras.

No meio do redemoinho de opiniões (cogita-se em dividir as terras da Igreja, do Exército, da Aeronáutica, nunca os latifúndios...), o parecer da bancada ruralista (ex-UDR, atual Frente Parlamentar da Agricultura) choca pela explicitação: "O governo sabe que os projetos não passam!".

Entre a sem-cerimônia dos fazendeiros, a sem-razão da TFP e o sem-fim de promessas vãs, o governo FHC prossegue em sua performance cênica. Numa solenidade "prá inglês ver", promove o lançamento do Programa Nacional dos Direitos Humanos, que tem tudo para ser mais uma bela carta de intenções. Afinal, um dos seus itens nevrálgicos, justamente o combate à impunidade, através do deslocamento para a Justiça Comum da competência para processar e julgar os crimes cometidos por policiais militares nas funções de policiamento ostensivo (caso de Eldorado), além de se encontrar modificado com relação ao projeto original de Hélio Bicudo (aprovado na Câmara mas mutilado no Senado), esbarra em franca resistência da própria base governista quando de sua reapreciação pelos deputados. Somada ao decreto federal (de janeiro deste ano) relativo à demarcação das terras indígenas - em razão do qual foram apresentadas mais de mil contestações de áreas já regulamentadas -, tais posturas não deixam dúvida para quem se estende a mão espalmada do presidente, bem como quais as prioridades que seus cinco dedos enumeram.

Não bastasse tudo isso, chega-nos a notícia de que estrategistas do mundo todo, reunidos na Califórnia (EUA), formulam uma mirabolante previsão (não isenta de temor) acerca das potências do próximo milênio, batizando-a de teoria ABC (A de Austrália, B de Brasil, C de China). Não espanta que tal alfabeto encerre na letra C: de cinismo.


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