Editorial

1 9 9 7: Brasil a baixo custo


Leitores destes Cadernos do CEAS compartiram conosco dias atrás a dificuldade de dar aquele sincero Feliz Ano Novo. No constrangimento do realista pessimismo, 1997 nos obriga a dar por cima aquela volta à renovada procura do "como" ser feliz. Além do carnaval. Rei Momo resiste a entregar o comando do ano, quem sabe do fim de século, aos Ministros do Real: salve-se a moeda mesmo que todo o resto se perca.


Abrimos as agendas.


A do Governo Fernando Henrique já está cheia e enchendo jornais e televisão e sacolejante paciência de bastante telespectador. Mas é imponente e se impõe. Reeleição em processo de montagem. Reformas ditatoriais como a da Administração. Fritar e repor ministros. Setor Vendas: da Vale do Rio Doce (com algumas ações para as famílias Itamar e Sarney); da Telebrás; do Brasil aos pedaços (vai - não vai - vai como?), entregue aos monopólios multinacionais. É o pagamento das dívidas e(x)ternas, em negociação e alianças, calculadas. Desse jeito Brasil a baixo custo entra a fazer parte do mercado, das forças multilaterais, talvez do Conselho de Segurança da ONU.

Lá de fora, Europa prolonga a gestação da união monetária. Nações Unidas, os 7 Grandes, marcam os Fóruns internacionais. Cúpulas não-neo-governamentais. Pesam no conjunto os medos, as previsões, as ajudas humanitárias do primeiro aos quartos mundos. Acabar com a metade da fome e extermínios que se espalham por África, ex-URSS, América Latina, até 2020 parece pouco, mas serve a curto prazo. Será pelo menos suficiente para melhorar a presente sensação de insegurança do norte?

O Papa, que anunciou visita ao Brasil e a Cuba no fim do ano, lança também nos calendários do Brasil católico o Grande Jubileu do Ano 2000: em nome do Filho (1997), e do Espírito Santo (1998), em nome do Pai (1999). A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil abre tais celebrações ecumenicamente ao Conselho Nacional das igrejas cristãs.

Não esqueçamos a agenda esportiva, que, do ritmo semanal e das várias Copas, decola para a competição prévia (Rio favorito) pela sede das Olimpíadas 2004.

Curiosa abrangência de programação das macro-instituições (algumas milenárias) rumo ao 999. Essa será outra ou a nossa própria história? A Bahia, e nela nossos Cadernos, está revivendo já o centenário do 6 de outubro 1897 - 1997: "Canudos não se rende".

Nosso chão social balança sempre mais entre os impactos das economias políticas governistas (ou políticas economicistas?) e o das várias torcidas, esportivas ou não. Dos (mil)reis para os cinco reais, cresce a desestabilização pelo desemprego em processo. A reforma administrativa dispõe-se a cortar milhões de funcionários, federais, e com mesmice de imposição, de estados e municípios. O novo ano anuncia, através do caminho dos déficits sucessivos, o "inferno" da fuga de capitais. Efeito Tequila? Não suportaremos tamanha dor de cabeça ...

Políticas sociais, só as estritamente de governo: de compensação mínima aos amplos estragos da saúde, de remendos na moradia, migalhas do "Solidariedade" para os ganha-pão, educação, segurança de crianças e adolescentes, mulheres e homens. Amenização (quando não apenas mascaramento) do genocídio, em todo tipo de massacres (das cadeias aos setores de trabalho escravo, que chamam irregular) já denunciados fora do Brasil. Temos dentro nossos Zaires e Ruandas para o global leilão humanitário do marketing social.

Setores mais organizados do Brasil 2, vieram obrigando os 3 poderes clássicos (além do militar e o das comunicações) a revelar um eixo medular dessa sua estratégia social: a desmobilização. O governo dito social-democrata desmobiliza e breca sindicatos de trabalhadores na produção e nos serviços. Constituído mais que constitucional, refaz leis e Constituição para flexibilizar, submeter, as relações vitais do emprego. Reinstaura, por exemplo, o Ministério da Reforma Agrária para desmobilizar os Movimentos de milhões de sem-terra, enquadrando-os em leis de segurança. Criminaliza lideranças populares, esconde e deixa esconder seus assassinos com as marcas dos assassinatos.

À desmobilização ativa, exercida pelo poder dominante a duas mãos (aliciamento e repressão), vão correspondendo, nos níveis de dirigentes do movimento popular, o adesismo, o medo, as acomodações. Não podemos deixar de tomar consciência atual desse "realismo" de boa parte dos inteletuais (ex)orgânicos do movimento popular: desmobilizados corações e mentes. Ou ameaçados de desmobilização: trabalhando sem meios em diretorias de associações e sindicatos, meio voluntários em assessorias na educação popular, entidades afro, ONGs pequenas e até médias; em geral com salários arrochados, sem maior horizonte: no vermelho (financeiro!).

É dos limites impostos por essa constatação da desmobilização, ativada de cima, que sentimos o imperativo de 'voltar'. Estamos nos voltando, no CEAS como em outras entidades, para os milhões de semi-cidadãos - agora redescobertos como "clandestinos". Esse povão é meio enigmático, sem agenda e sem paradeiro, sem condições mas não sem força, vitalidade e número. Contra a propalada fragilidade do movimento popular, percebemos que nem tudo dele se desmancha no ar...

Os movimentos sociais de favelados, agora também nas cidades médias, de migrantes em massa, de aposentados, biscateiros de todo beco (muito negro nessa situacão branca), domésticas, mães chefes de família lutando em clubes e grupos de vizinhança pelos filhos (menos abandonados que os pais), doentes reclamando na frente dos postos de saúde sem remédio nem enfermeira, funcionários de todo nível, desempregados de toda obra...

Chamam nossa atenção nesse meio, os blocos crescentes de "irresponsáveis" - loucos violentos e manifestos em vário grau, que parecem apenas reagir a loucuras mais instaladas, sofríveis, violentas. Massa de "clandestinos" mesmo (50 milhões sem documento algum), bandos de sub-cidadãos, gangues: apertam apenas o gatilho no armamento das polícias, dos seguranças, nas discriminações, na bem montada ou tolerada exclusão. Talvez seja esse o público alvo mais largo a que os bispos da CNBB se dirigem na Campanha da Fraternidade - 97: "A fraternidade e os encarcerados", os externos não menos que os internos.

Procuramos experimentar e entrever nessas bandas da rede social malha fina, das maiorias, até de classes perigosas, novos eixos da mobilização social e política, muito além da partidária, sindical etc. Nossos termos de referência, econômico-políticos, em geral macro, exigem certamente uma complementação dos locais, culturais, religiosos, cotidianos, raciais e étnicos, de gênero... Como?


Carrega-se a tensão entre
o centro de Estudos e o da Ação social.


Nossa redação recebe numerosas colaborações de centros acadêmicos. Material de rigor científico, com bibliografia garantida, todo o leque de opiniões a respeito de cada questão debatida. O que não satisfaz é mais que a falta de enfoque interdisciplinar. Está ausente certo posicionamento con-creto. Essa pesquisa con-cresce com quem? Precisa ser redefinida, nos nossos ambientes sociais, a tal de neutralidade científica. A academia vai aderindo aos grandes passos das programações da empresa, das Fundações com donos e financiamentos diretivos, de grandes ONGs, do Banco Mundial, da ONU e seus Fóruns. É a crescente órbita das solidariedades amplas, de reconhecido valor, mas reduzidas e redutoras.

Não as perderemos de vista, mas, da nossa parte nos voltamos para os movimentos populares. É com eles que vamos tentando convivência e confronto de experiências.

Em primeiro lugar, os que dão menos manchete e torcida, refugiados nos Cotidianos e Páginas Policiais. Suspeitamos que os chamamos movimentos in-formais, ou mais des-organizados, apenas por ser-nos grandes desconhecidos, distantes das "nossas formas" mentais, ideológicas, culturais; distantes das "nossas lógicas" de organização e mobilização políticas. Justamente por isso eles podem ser, talvez mestres. O educador nesses meios, não teria a necessidade (ou a capacidade) de ser educado (verbal e adjetivadamente)? De partida, basta aos irrequietos galileus da mudança social uma discreta dose de desconfiança para com os próprios dogmas solares.

O medo aos riscos da unidade uniformada pelas instituições, da esquerda a direita, vira pânico instituído. As hierarquias, querendo ou não, implantam subserviências paroquiais, no pior sentido da palavra. Acontece nas burocracias, descaradamente. Imita-se nas igrejas do reino universal. Os vários sujeitos mal sustentam a incerteza inevitável nas verdades do dogma junto da conveniente insegurança na ação social. Mas o mundo multiforme as impõe.


E vão surgindo algumas escolas.


É antiga no Brasil e na América Latina a do variado movimento indígena, ligado a inspirações ecologistas, e sobretudo à sobrevivência, também étnica. Vacilam os tratores às ordens de terra arrasada.

Grupo emergente e mais organizado, sem deixar de ter os pés no "lumpen", o Movimento dos Sem Terra ostenta mais amplamente alguma dessas novas "lógicas": negociação x pressão, unidade de direção nacional x diversidade de jeitos regionais e estaduais (de ocupar, resistir, produzir, comercializar). Quase tudo o que a Globo esconde e brilhantemente reduz em "O Rei do gado". Muita coisa que "se sabia" faz muito tempo, que se ensinava nos compartimentos universitários (economia - sociologia - antropologia - história mesmo) sobre o tema da reforma agrária.

Mas é agora que os interessados, carentes e precisados, meteram mãos e pés, cabeça e coração, na obra. Assunto de muito sangue misturado, na terra e nos céus da Internet, bem além da tese PHD mais transdisciplinar.

É do fundo da terra e do alto dos céus que se invoca hoje Zumbis e caboclos, Bom Jesus Conselheiro, energias dos cristais, Tupã e Olorum, Pai, Mãe, Pachamama. Em nome de tanta estrela em constelação, Axé.

Feliz fim de século.

Cadernos do Ceas



[ Índice 1996 ] [ SUMÁRIO n. 167 ] [ Índice 1995 ]

[ Home Page - Cadernos do CEAS ]