Editorial

Uma Involução Silenciosa


Nos últimos tempos, a grande imprensa tem se dedicado com muito afinco à tarefa de pincelagem da imagem do presidente da república, como lhe é bem próprio. Antigos Cadernos B dos grandes jornais ora dedicam números especiais às glórias de um jovem intelectual que alcançou seu estrelato maior; ora abrem espaços para depoimentos de personalidades, acadêmicas e não, acerca de suas virtualidades como professor e, hoje, como promitente estadista. Sim, um estadista em vias de constituição pela mídia, na ausência de recursos próprios. Um Churchill caboclo desta América tropical ou, como parece preferir o laureado, um Juscelino Kubitscheck, para que não se pareça tão dependente.


Claro. A esta altura não seria de bom alvitre compará-lo ao seu ex-colega Fernando Collor. Ainda que alguns antigos colaboradores deste, bem acomodados em alguns cargos-chave de seu governo, insistam em fazer esta comparação. Não se sabe se pela opção pelo espetáculo como método de condução dos negócios públicos, ou se pela fixação num projeto de integração subordinada ao movimento de capitais internacional. De qualquer modo, um outro figurino caberia melhor: o de Kubitscheck vem bem a calhar. Aliás, não parece sem sentido o fato da figura de desenvolvimentista e de pacificador vir sendo reivindicada por todos que têm passado por Brasília nos últimos 10 anos; inclusive pelo próprio Collor, se nos lembrarmos bem.


A fixação nessa imagem não é surpreendente. Juscelino foi um dos precursores do populismo desenvolvimentista, responsável pela disseminação de ilusões, inclusive entre as massas populares, capaz de cegá-las, às vezes ante as evidências mais sensíveis das desigualdades gritantes que se consolidavam no país. Sem apoio das mais sofisticadas agências de propaganda, valendo-se de um discurso genérico, mas convincente, o governo de Juscelino transformou o desenvolvimento no eixo principal de uma política à qual deveriam se subordinar todos indistintamente - trabalhadores e patrões, camponeses e latifundiários - como uma aposta de fé no futuro; no futuro de um país que procurava emergir como capitalismo associado dos grandes gigantes mundiais, absorvendo alguns de seus excedentes como investimentos naquele que poderia ser um dos parceiros leais de um sistema capitalista internacionalizado em constituição.


Utilizando argumentos simplórios - o desenvolvimento voltado para todos - o governo de Juscelino conseguiu moldar as aspirações populares; sem deixar de aliar uma repressão seletiva - dos resistentes - com a promessa de um futuro radioso, pós-consolidação do modelo. E não era um modelo para apenas cinco anos. Daí os apelos à paciência e à fé. Não é à toa a importância conferida à visita ao Papa Pio XII (1957-1960) pelos principais assessores presidenciais. Tratava-se de acreditar e ter boa vontade. Este era o recado dirigido ao povo: não adianta se rebelar, o futuro está diante de nós, como afirmava em outras palavras.


Cinqüenta anos em cinco, funcionou como um álibi. A tarefa era grandiosa, mas factível. Mas só podia ser concretizada com um desarmamento dos espíritos - belicosos! - ou com a paz social; a ordem, enfim, como condição de um progresso ininterrupto e para a felicidade geral. O mesmo que busca difundir seu almejado sósia político, Fernando Henrique, ludibriando as mais claras evidências, quando afirma, num lance de populismo bastante explícito que o Brasil do abandono e do atraso, da desesperança e da necessidade já pode sonhar com um Brasil de justiça, de progresso e de solidariedade.


Sempre a esperança. Sempre a mensagem de fé no futuro. Futuro que, se um dia foi encarnado em Juscelino, como um D. Sebastião brasileiro, volta encarnado na figura do atual presidente; como se, num passe de mágica, um novo desenvolvimentismo de estilo juscelinista pudesse ressuscitar trazido pelas asas do neo-liberalismo. A fé como passividade diante dos fatos, das irreversibilidades, do nada adianta fazer diante do novo que se anuncia como uma nova economia global. A mágica de transformar uma das mais pobres, desiguais e violentas sociedades capitalistas naquilo que provincianamente o diplomata Rubens Barbosa postula como a sexta economia do globo.


O novo Juscelino é incansável. Usa a retórica e manipula a estatística; e ainda tem a vantagem de saber sofismar, como é próprio de certa intelectualidade. Meu compromisso de governo é - para usar a expressão da filosofia da Grécia antiga - com a construção da felicidade do povo brasileiro. Este sonho está em nossas mãos(...). Nossos filhos merecem isto. Os filhos de quem?. A inspiração grega talvez seja a mais adequada, de fato, para quem não vê nada demais na convivência entre uma acrópole corrupta, simbolizada por Brasília, e as formas mais terríveis de escravidão ressuscitadas nos vastos campos desses país.


E nisto vai mais uma semelhança - forjada ou proposital. Todo o modelo desenvolvimentista dos anos 50-60 prescindiu de qualquer alteração fundamental nas estruturas de poder no campo. Os latifundiários permaneceram intocados, pouco adiantando algumas tentativas de reformulação nas suas fontes de domínio político. O mesmo que pretende o atual presidente. O antigo calava as aspirações por mudanças no eixo rural com crescimento industrial, reproduzindo espacialmente um modelo capitalista em expansão. O novo duplo não consegue calar por essa via: são baixos os índices de crescimento industrial; e, ainda por cima, vê-se pressionado por um dos mais importantes movimentos de luta pela terra já existentes na história do país. Ao contrário dos anos 50, a impossibilidade de incorporação das massas de desempregados rurais nos meios urbanos torna a terra o único desaguadoro dos desesperançados e um contraponto das esperanças fabricadas como quimeras ideológicas.


Até recentemente, o governo não vinha conseguindo - inclusive moralmente - sair da defensiva nesse âmbito. As pressões massivas de populações marginalizadas, desconcentradas espacialmente - Pará, Bahia, Pontal (S. Paulo), Paraná - tornava o discurso oficial cada vez mais inócuo do ponto de vista político. Afirmar que nestes dois anos de governo, 100.000 novas famílias tiveram acesso à terra, em estrito cumprimento às metas do governo para a reforma agrária, pode representar um colírio para os olhos de quem insiste em não ver que a realidade é outra. Que mesmo esses assentados no papel, pelo governo, não dispunham minimamente dos recursos necessários ao acionamento produtivo das referidas terras, compondo uma nova categoria de marginalizados, de produtores "assistidos por organismos públicos"; um similar das políticas de reservas indígenas dessas paragens e da América do Norte.


Acuado, de um lado, pela sensibilidade cada vez maior das populações urbanas às reivindicações dos trabalhadores rurais Sem-Terra, e, de outro, pelos compromissos com os grandes proprietários da bancada ruralista e da já conhecida organização criminosa de base latifundiária, a UDR, o governo resolveu retomar a iniciativa. Num momento bem sintomático. Os assassinatos em massa - Corumbiara, e agora, em Ourilândia, no Pará, ao lado de outros massacres menores - estimulavam o espírito de negociação do movimento dos trabalhadores, ao tempo em que aguçavam a ofensiva armada em defesa da propriedade de negócios dos grandes proprietários, através de um verdadeiro exército de jagunços contratados para esses fim. Governo e grandes proprietários sentiram o momento como favorável e resolveram tomar a dianteira das iniciativas.


O fato é que, ao lado da repressão pura e simples aos movimentos dos trabalhadores, o governo resolveu lançar propostas. Primeiro foi o Programa Nacional de Agricultura Familiar - PRONAF, um programa destinado a criar empregos na área rural, cujas metas perpassavam o atendimento de 4,41 milhões de famílias em quatro anos (a partir de 1996), alocando-se para tanto recursos de aproximadamente R$11.940 bilhões. Mas, tal como outros desta natureza, até agora são pouco efetivos os seus resultados. Poucos recursos, dos prometidos, foram efetivamente liberados. É possível, contudo, que o governo esteja mirando bem mais longe, a uma interlocução, à distância, com os pequenos produtores com terras, simbolizados pela CONTAG, enquanto direciona suas setas para o verdadeiro objetivo: criar condicões de financiamento adequadas aos produtores modernos do complexo agroindustrial. De um lado, divertindo com o PRONAF; de outro, acenando com instrumentos efetivos de financiamento a uma agricultura capitalista moderna, através da chamada Operação 63 (ou Caipira), que permite a captação de recursos a taxas de juros vigentes no exterior e sua posterior transferência, com pequenos diferenciais, para os complexos agro-exportadores.


Não ficam por aí as medidas de retomada da iniciativa no campo. O denominado Projeto Lumiar - criação dos diversos órgãos de assessoria hoje amplamente disseminados - tem intensificado seus contatos de atuação em áreas dos Sem-Terra, com intuitos óbvios de conferir um cunho racional às sua práticas. O eixo tende a ser a garantia da sustentabilidade - uma relação adequada entre prática e meio ambiente, e a qualidade total, transferindo para as áreas assentadas aquilo que tem se transformado em moda no modelo de industrialização em desenvolvimento. O objetivo é a integração dos modelos implantados à lógica dos atuais mercados consumidores, aproximando as diversas práticas de tal modo a unificá-las segundo os mesmos parâmetros de eficiência e qualidade, eliminando qualquer veleidade de construção de modelos não articulados a uma perspectiva sistêmica.


Coroa suas intenções, até aqui, o novo ITR e a aprovação do rito sumário. O governo afirma serem as duas medidas peças das mais importantes da revolução silenciosa em curso. Revolução só não perceptível, segundo seu Ministro da Reforma Agrária, por quem não quer ver as grandes transformações vividas pelo país. O Ministro, mais enfaticamente do que o seu chefe, deixa clara sua intenção de afrontar ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra, quando coloca o novo imposto e o rito sumário como os caminhos para um reforma agrária pacífica e ordeira. Sem dúvida, um alerta para quem vem se conduzindo segundo lógica inversa, no entender do referido prócer governamental.


Por que um alerta? Porque, como deixa implícito em seus discursos e recados, o governo não abdica da aliança que constitui sua base principal de sustentação. Ao colocar o ITR como um novo Estatuto da Terra, o Ministro da Reforma Agrária traduz o espírito de continuidade em relação aos governos militares, promovendo uma modernização pelo alto, com retoques superficiais na estrutura da sociedade. Sempre com o cuidado de não atingir os interesses sedimentados dos grandes proprietários de terras.


Ora, a mecânica de funcionamento do imposto representa mais do que um retrocesso em relação ao que já significava uma aberração da situação anterior. Imagina-se que, com a possibilidade decretada de que os próprios latifundiários declarem suas áreas produtivas e improdutivas com a finalidade de tributação, a contribuição do ITR, que já era diminuta - 0,02%, aproximadamente da arrecadação fiscal -, venha a se tornar ainda mais insignificante. Nada mal para os grandes patrimônios.


Mas, não fica só por aí. O governo ameaça, atendendo aos apelos de seus parceiros da bancada ruralista - a face parlamentar da UDR - inviabilizar legalmente a desapropriação fundiária de áreas que tenham sofrido ocupação pelo Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra. Via pela qual tornaria quase sem sentido a aprovação do rito sumário, considerando que parte significativa das terras desapropriadas no país o foram nos últimos anos mercê da luta do referido movimento, cuja estratégia passa, justamente, pela ocupação das terras ociosas dos grandes latifundiários e proprietários absenteístas.

O governo está decidido. Seu projeto para o campo é muito claro: acabar o Movimento dos Sem-Terra, restabelecer a paz nos campos sob a hegemonia de uma capa moderna em termos capitalistas, reafirmando o direito à grande propriedade como inconfundível. No momento, tenta dividir os interesses dos pequenos com acenos de projetos propagandísticos, como o PRONAF, o LUMIAR ou o SOLIDARIEDADE. Tenta, de fato, ganhar tempo, chamando para seu campo - o campo da ordem estabelecida - toda e qualquer iniciativa. Seu intuito é o de desgastar, com apoio de toda a imprensa oficial e oficiosa, qualquer movimento na direção contrária; até não restarem nada mais do que uma base esgarçada e submissa e uma cúpula razoavelmente coesa, assegurados os direitos fundamentais de gozo da propriedade dos bens e das pessoas, sem limites bem definidos e sem contestação.


O projeto está sendo tão bem conduzido que a direita brasileira, em sua grande maioria, não tem dúvidas que os atuais gestores devem permanecer nos seus postos, a fim de cumprirem as metas de conversão estabelecidas. O mesmo argumento de Menem na Argentina e de Fujimori no Peru. A desmontagem leva tempo e não pode sofrer contratempos. Este é o argumento.


Se a paródia tem sido objeto de matérias jornalísticas, há que se considerar os impactos de sua realização. O governo pensa como gregos da Acrópole ateniense, mas age como qualquer coronel de interior. Uma síntese do moderno empreendedor neo-liberal e o feitor das grandes propriedades escravistas: lucros no curtíssimo prazo de um lado e passividade e submissão de outro.


Voltando às comparações, o modelo econômico tem se apegado à imagem de Juscelino como reforço de suas aspirações continuístas. Mas, bem observado, seu modelo político tem assimilado cada vez mais imagens da ditadura militar. O que, aliás, vem sendo norma em quase todos os chamados tigres da atual economia globalizada - Coréia, Tailândia, Indonésia, enfim. Todos combinando regimes duros e milagre econômico.


O sacrifício das aspirações democráticas dos sem-privilégios às exigências integrativas é o caminho mais curto para o autoritarismo. Isto é tão mais grave quanto a nova direita tem transformado esse caminho numa quase-obsessão. Lutar contra sua efetivação ou apoiar movimentos insurgentes é hoje quase um dever. Deixar morrer a luta é deixar o caminho aberto para novos e infames milagres que, no passado como no presente, só beneficiaram uns poucos privilegiados.


Cadernos do Ceas



[ Índice 1996 ] [ SUMÁRIO n. 168 ] [ HOME PAGE ] [ Índice 1997 ]