Editorial

Aprendiz de déspota


O processo de reestruturação econômica comandado em todo o mundo pelo grande capital, associado ao que, eufemisticamente, convencionou-se chamar globalização, sugere estar gestando, no campo da política, um outro processo ainda mais perigoso. Os exemplos da Argentina, Peru e México parecem, cada dia mais, se tornar uma característica generalizável (ver África e ex-URSS).

A forma como a ordem institucional tem sido alterada para atender aos interesses dos administradores de plantão, sempre sintonizados com os programas econômicos (os únicos claramente expressos até aqui) formulados pelas instâncias internacionais de poder - FMI, OMC, BIRD, BID, G7 - é um sintoma relevante deste perigo.

A globalização estaria levando à criação de sociedades globalitárias? Estaríamos no final deste milênio testemunhando uma nova forma de totalitarismo? O caso do Peru, definitivamente, não é um acontecimento isolado ou postura de estadista míope, obtuso.

A implantação do programa neoliberal elaborado pelas instâncias internacionais de poder acima referidas é um processo, intervencionista, que encontra reação nos setores populares organizados. Engendra contradições e lutas sociais, cujo desenlace favorável ao capital é condição sine qua non para a continuidade do processo de sua reprodução ampliada em escala mundial. Portanto, para esses governos é fundamental cooptar os movimentos sociais ou esmagá-los se estes ameaçarem a execução desse objetivo maior.

Outro fator que pode dificultar a implantação do programa neoliberal é a deslegitimação do governo. Sobretudo quando este se apresenta sob a manta da honestidade e da honradez, ou ainda, como é o caso brasileiro, com o estigma da "onisciência" acadêmica.

É certo que a implantação do programa das instâncias internacionais do capital no Brasil vem enfrentando a oposição dos setores populares e operários. Inegavelmente, trata-se de uma reação frágil, pois talvez a classe trabalhadora urbana encontre-se desarmada; a sua força organizativa não chega a encetar lutas de repercussão econômica e profundidade política necessárias a derrotar o projeto neoliberal. Certa institucionalização e burocratização de suas instâncias e lideranças dificultam a iniciativa política da classe trabalhadora, sob as adversidades originárias do processo de reestruturação produtiva e organizacional das empresas.

O desgaste, a deslegitimação política do governo, por outro lado, têm sido levados a cabo com maior eficácia pelos movimentos "temáticos": os sem-terra, sem-teto, grito da terra, mulheres, camelôs, presos em rebelião etc, os quais têm contribuído para desnudar a verdadeira face social do governo FHC.

Mesmo a oposição liberal-democrática, que por ora se esboça, representada por juizes e juristas, tem feito importantes denúncias de que está em curso um processo de ruptura do modelo constitucional democrático instituído em 1988, para substituí-lo por outro, elaborado à imagem e semelhança dos atuais governantes.

Entretanto, ao que parece, a forma mais contundente de deslegitimação e a que se apresenta mais perigosa para a estabilidade política (no curto prazo) é a deslegitimação moral dos governantes. Que o diga nossa História recente. As fitas autênticas contendo conversas de Deputados Federais, que afirmam ter vendido seus votos ao Planalto, representado pelo Ministro das Comunicações, tesoureiro de todas as campanhas de FHC (além de sócio e amigo íntimo do Presidente, considerado nas rodas do poder como o seu alter-ego) são documentos indicadores da natureza corrupta dos métodos políticos do governo FHC: ele corre sério risco de passar à História com esta marca indelével.

Apesar da aparência de ineditismo desse episódio, a simples abertura do foco traz à cena personagens mui conhecidos dos escândalos ético-morais do país, o que logo nos convence da amplitude do rol de corruptores e corrompidos que cercam o Palácio do Planalto há muitos anos.

O Governo FHC está longe de ter sequer esboçado uma ruptura com essa história. Quem não se lembra de um certo Ministro da Fazenda, ainda durante a campanha de 94, que foi surpreendido pelas parabólicas afirmando é assim mesmo, o que é ruim a gente esconde, o que é bom a gente fatura. Ou ainda, eu não tenho escrúpulos. Falava, naturalmente, da manipulação eleitoreira do real para favorecer FHC.

Assim, a corrupção neste Governo é genética. Lembremo-nos, o Governo FHC jamais permitiu uma investigação séria sobre evidências de corrupção. Foi assim com o Projeto SIVAM, com o sistema financeiro, e com a compra de votos não será diferente.

O episódio da compra de votos no Congresso com o objetivo de aprovar as reformas constitucionais e, sobretudo, assegurar a emenda da reeleição em proveito do atual Presidente, além de governadores e prefeitos, é a prova inequívoca da linha de continuidade entre os governos de D. Fernando I, o ingênuo, e D. Fernando II, o ilustrado.

Por esse caminho, o governo acumula desgastes em várias frentes. Seu processo de deslegitimação vai se dando pela crescente interferência no processo legislativo e no Poder Judiciário (deslegitimação institucional); pela inexistência de um projeto social que atenda aos desvalidos, às maiorias vulneráveis e vulneradas (deslegitimação social); pela crescente mobilização social agrária, que também passou a embalar os movimentos urbanos sindical, estudantil, desempregados etc (deslegitimação política).

O governo vive, portanto, um processo crescente de isolamento político-social que já é expresso nas pesquisas de opinião sobre sua popularidade. A única fonte significativa de apoio popular continua sendo a estabilidade monetária, que para o povão é representada na possibilidade de comprar uma TV 14", com controle remoto, pagando 10 reais de prestação mensal. "Não interessa quantos meses, agora tenho TV tá lá em casa".

Contudo, a julgar pelo crescimento vertiginoso no déficit das contas externas do país, mesmo essa fonte de legitimação tem seus fluídos comprometidos. Até quando os problemas cada vez mais evidentes do Plano de Estabilização Econômica poderão ficar ocultos das massas?

É neste contexto de perda crescente de legitimidade que devemos interpretar as declarações de FHC no ato de posse dos novos ministros da Justiça e Transportes. Naquele momento, o Presidente procurava se defender das denúncias de corrupção no núcleo central do poder, que, além de Sérgio Mota, envolvia governadores e Luís Eduardo Magalhães, todos do PFL, e o fez atacando o MST e os Movimentos Sociais. Este discurso poderia ter sido inspirado pela máxima atribuída a Washington Luís ("a questão social é um caso de polícia e como tal deve ser tratada com as patas dos cavalos"). Mas, ao que parece, esse pronunciamento é tributário direto da Ditadura Militar. Nesta, como sabemos, a questão social foi tratada principalmente pelos brucutus e baionetas.

Aliás, a maior eficiência e poder das baionetas foi a referência explícita presidencial nessa cerimônia de posse. Não que os brucutus tenham sido esquecidos . Afinal, todos nós assistimos ao uso deste símbolo da ditadura no episódio do leilão de privatização da Cia Vale do Rio Doce, semanas antes, pelas ruas do Rio de Janeiro, esguichando seu canhão de água contra os manifestantes.

Não há diferenças essenciais entre esse discurso de FHC e os pronunciamentos dos Generais da fase de abertura do regime militar. Se trocarmos a defesa da "democracia" de um e o libelo em prol da "abertura segura e gradual" dos outros, teremos um conteúdo, em ambos, essencialmente voltado para defesa da lei e da ordem, das virtudes republicanas, da estabilidade, por um lado; e o ataque às badernas, à oposição, à anarquia etc, por outro. É bom que se diga; pelo menos nos pronunciamentos oficiais, os generais não costumavam esmurrar a mesa com fez FHC. Que fraquezas se escondem atrás do destempero deste gesto?

Enfim, como se observa, a arrogância interna do Governo só encontra paralelo na sua submissão aos interesses do capital internacional, manifesta político-economicamente na transferência anual líquida de US$ 35 bilhões à seus agentes político-financeiros e aos sócios menores brasileiros.

Neste rumo, o desenvolvimento futuro da limitada democracia brasileira não está assegurado por FHC. Ao contrário, a perda de legitimidade do governo e a sua submissão aos interesses neoimperialistas, além da personalidade arrogante do Presidente, estão levando a uma ruptura da ordem constitucional. A reação à implantação do programa neoliberal e aos efeitos desta, se colocar em perigo os interesses maiores do capital internacional, poderá conduzir a uma metamorfose deste Governo, patrocinada e dirigida por este capital. Da aura de Príncipe arrogante vai brotando um déspota globalitário, que, acuado, invoca maiores poderes às baionetas.

Cadernos do Ceas



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