Editorial

POLÍCIAS: QUEM AS REFORMARÁ?

 

As capitais brasileiras tiveram um inverno singular. Nas praças, policiais, sindicalistas, sem-terra e sem-teto. O corriqueiro, esperado, entretanto não acontecia. Sindicalistas e sem-terra não protestavam ou reivindicavam pela realização da reforma agrária ou contra  o desemprego. Por sua vez, os policiais não estavam ali para reprimir. Eram eles os manifestantes, os sujeitos das reivindicações,  das “badernas”, como diria o Presidente Fernando Henrique Cardoso. CUT e MST apareciam nestes atos apenas para apoiar, manifestar solidariedade com os novos “companheiros”.

Um  novo tipo de grevistas saiu às ruas e esquentou o inverno. Policiais, civis e militares, de farda e arma, encheram as praças e formaram cordão ao lado de  sindicalistas e sem-terra. O Brasil assistia boquiaberto durante semanas

O ineditismo dessas cenas em nossa história pós-64 contribuiu para acalorar o debate. A grande imprensa, como esperado,  não tardou em desqualificar os manifestantes e todos os que se solidarizaram com suas reivindicações. Responsabilizou os grevistas pelo caos da segurança pública, como se fossem os únicos ou principais responsáveis. Na mesma linha, âncoras e editorialistas acusavam CUT e MST de oportunistas e pescadores de águas turvas. A conjuntura que precedeu o Golpe Militar de 64 nunca foi tão invocada, como nessas semanas de inverno quente.

Os policiais não assumiram o lugar dos movimentos sociais por acaso. Aliás, alguns até se descobriram integrantes da horda dos sem-direitos, seja a moradia, salário, condições de trabalho...  É certo que o ajuste neoliberal (além dos descalabros administrativos e da corrupção) também significou o comprometimento das finanças públicas estaduais, com forte reflexo na remuneração dos servidores civis e militares. Com salários arrochados e impraticáveis condições de trabalho, os policiais ainda tiveram “dias difíceis” com as seguidas denúncias públicas de seus habituais métodos de atuação (Diadema, Favela Naval, etc). Nesse contexto, e ante a vitória do motim de Belo Horizonte, o movimento reivindicativo policial explodiu em todo o país.

O contraste entre os baixos salários da tropa e a imoralidade dos vencimentos de alguns Comandantes (engordado pela  incorporação de vantagens) contribuiu para minar a hierarquia e a disciplina. Vale lembrar que esse movimento também favorecerá os Comandantes mediante o reajuste salarial, o que explica  a “frouxidão” indicada pelo Comando Militar do Planalto em relação àqueles que deveriam garantir a disciplina nos quartéis. O amparo da CUT e  MST aos grevistas, apesar de toda exploração da imprensa, pouco representou para os policiais, se comparado ao apoio prático que emanava dos Comandos, evidentemente estes com razões bem distintas dos sem-terra e sindicalistas. Em alguns casos, foram os próprios oficiais que dirigiram as discussões salariais, tendo chegado inclusive a rifar os interesses de cabos e soldados na negociação com o governo de Pernambuco.

É questionável se por trás das reivindicações salariais das tropas não existem  interesses políticos de oficiais inescrupulosos. Certamente essa possibilidade existe. Todavia, as evidências mais significativas indicam a difícil situação econômica e social dos policiais como principal causa da insubordinação. Os policiais nas carreiras iniciais - nossos praças - foram abandonados à própria sorte; os baixos salários têm como corolário suas famílias habitarem favelas e invasões urbanas, zonas, em geral,  dominadas  por  grupos criminosos.  Quem navega nessas águas sabe: o que separa o marginal do soldado menos graduado talvez seja tão somente o uniforme. Desses ambientes os praças pulam para as praças, em greve por salário e dignidade.

Os movimentos policiais deste inverno, por outro lado, explicitaram, mais uma vez,  a ausência de controle das polícias por Secretários de Segurança Pública, Comandantes Gerais e, mais ainda, por Governadores. Além dos oficiais, outras interlocuções foram realçadas por esses movimentos. As associações de  cabos e soldados ou associações de policiais civis chegaram a ter certo destaque, inclusive negociando diretamente as reivindicações com as autoridades estaduais. Esse processo também içou alguns dos seus dirigentes à condição de lideranças, com direito a foto e trajetória política nos jornais. Diga-se, há dirigentes numa série que vai do ex-agente do DOPS carioca (atual simpatizante da CUT) até o vereador eleito pelo PT (MS) (declaradamente vinculado a setor moderado deste partido). O discurso comum pode ser resumido em “defender os trabalhadores e a lei”. Esses movimentos apontam para uma certa organização corporativa da categoria,  com pretensões, ainda que prematuras, de se articularem  nacionalmente com o apoio da CUT.

Por sua vez, a forma relativamente fria como o Planalto encarou esses movimentos levantam a suspeita que o Governo possa estar dando corda para em seguida tentar amarrar as duas polícias no projeto de reforma que as unifica, criando o Comando Único. Se for esse o caso, entraríamos na tendência internacional de reformas no aparelho policial militar, que em países de recente redemocratização como o Brasil necessita redefinir o papel de suas polícias para adequá-las ao estado democrático burguês. É preciso, para o conjunto das elites dominantes, passar da polícia que reprime indiscriminadamente o cidadão comum na rua, no local de moradia, confundindo-o com o marginal pelo simples fato de ser negro ou pobre,  para uma polícia que tenha noções rudimentares de teoria do estado e dos direitos humanos. Vale dizer, é necessária e urgente para essas elites uma polícia  mais capacitada para a defesa da ordem burguesa  sem os excessos do período ditatorial. É isso o que explica os recentes convites a intelectuais e políticos para ministrarem cursos de formação para oficiais e praças. Outra questão é se tal precisão e necessidade podem ser atendidas já. Se é do interesse dos oligarcas que têm, em muitas regiões, a polícia como aparelho privado à sua disposição e comando.

As questões abertas pelas greves e manifestações dos policiais, de toda sorte, continuam sobre a mesa, nas praças e nas telas de TV, neste segundo semestre. Entretanto, não devemos perder de vista que, após as turbulências de percurso, nas sucessivas mobilizações pelas ruas ou pelos campos, os policiais voltam a ocupar o seu velho e odioso papel de reprimir operários, sem-terra, sem-teto, os sem lugar nessa sociedade excludente. Da mesma forma, mesmo com os possíveis aumentos salariais, as famílias de cabos, sargentos, soldados continuam sobrevivendo em difíceis circunstâncias, justamente o contrário dos oficiais graduados que constituem parte privilegiada das elites. Especialmente, das burocracias  estatais federal e dos Estados, do Sul (com Minas no meio) e do Nordeste (Ceará, Pernambuco e Alagoas), estes com notável peso de elites coronelistas.
 
A utilização dos aparelhos de segurança pública como gangues privadas  de usineiros e oligarquias arrisca encontrar substituto apenas no uso privado da segurança pública pelas novas elites globalmente excludentes.
As funções de segurança pública entram assim na espiral da atual urgência de modernização: forçada até o limiar da catástrofe. Tem um setor exemplar. A participação de assessores militares norte-americanos no processo de reestruturação das policias em vários países latino-americanos - Bolívia, Colômbia, Peru, México, Brasil na mira, tem sido justificada pela necessidade do combate articulado ao narcotráfico no continente. No México, contudo, o objetivo já é claramente político. Combater  conjuntamente o crescimento do Exército Zapatista de Libertação Nacional - (EZLN) e mais recentemente, de outros agrupamentos políticos insurgentes, como o Exército Popular Revolucionário, (EPR), e  seu braço político, o Partido Democrático Popular Revolucionário - (PDPR), que unificou política e militarmente  14 organizações clandestinas deste país.

A reestruturação, a reforma das polícias no Brasil, que as greves certamente vieram impulsionar,  não acontecerá  indiferente ao processo de retomada do crescimento e da iniciativa política por parte dos movimentos sociais. Tudo faz crer que o processo de adequação do aparelho policial militar ao formato do estado democrático-burguês, continuará tendo como premissa  o controle policial de quaisquer grupos que pretendam contestar o projeto de desenvolvimento econômico capitalista ou seus governos democraticamente eleitos”. Afinal, essa é a pedra angular da democracia liberal.
 

Cadernos do Ceas
 
 
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