RETRATOS DO COTIDIANO

"Entre onças e gatos"

Martin Merz

Dona Pureza: mulher da roça e mãe de cinco filhos, 54 anos, trabalhadora, lutadora. Num pequeno pedaço de terra ela produz tijolos. Em outubro de 1997, Pureza Lopes Loyola viaja da sua cidade, Bacabal, no interior do Maranhão, para Londres, na Inglaterra, onde será premiada com o Anti-Slavery Award em homenagem à sua luta contra o trabalho escravo no Brasil. "Em 1974 um gato levou o meu irmão", conta Dona Pureza. "Ele sumiu no sul do Pará, nunca mais a gente recebeu notícia dele." Vinte anos e uma geração depois, no dia 4 de março de 1993, o filho mais jovem de Dona Pureza, Abel, saiu da casa em Bacabal procurando emprego. O rapaz de 18 anos dormiu numa pensão de uma cidade vizinha. Chegou um empreiteiro (mais conhecido como 'gato'), pagou a conta do rapaz, levou-o junto com outros homens num caminhão 'pau-de-arara' para roçar o campo na fazenda Agronunes, no meio da mata. Era um regime de escravidão: horário de trabalho do nascer ao por do sol, hospedagem numa barraca de lona preta, apenas arroz e feijão na refeição diária, e a obrigação de comprar a alimentação no barracão da fazenda por preços absurdos. Em vez de pagar um salário, o gato apresenta dívidas ao trabalhador: o pagamento da pensão, a alimentação, a hospedagem. "Tem de trabalhar mais para pagar", avisa. "Você não sai daqui sem pagar a sua dívida". Um pistoleiro armado faz as palavras do gato valer. Os companheiros escravizados lembram-se do assassinato de um trabalhador pelo gato. Numa noite, Abel foge da fazenda sem receber salário, para acabar no regime forçado de uma outra fazenda no Pará. Ele é um escravo do século vinte: um dos 2.487 casos registrados no ano passado nas fazendas e carvoarias espalhadas por algumas regiões do Brasil.


Dona Pureza não se conforma com o sumiço do filho. Deixa a casa e o trabalho para procurar Abel. Percorre todo o Maranhão e o Pará, entra nas fazendas e carvoarias, encontra trabalhadores escravizados, gatos e fazendeiros. "Passei fome, dormi no chão, não tinha nem um tostão no bolso. Mas sou uma filha de Deus". É a fé que mantém em Dona Pureza a coragem. Ela faz parte da Assembléia de Deus, desde que "o meu senhor Jesus me salvou de uma onça". Não teme nada e ninguém: "o gato é rico e violento, ele se acha poderoso, mas Deus é mais poderoso, Ele está acima dele."


Voltando para Bacabal, ela denuncia os regimes de trabalho forçado à Comissão Pastoral da Terra do Maranhão. Assim foram liberados 86 trabalhadores escravizados na fazenda Agronunes, onde também o filho Abel levou algum tempo escravizado. Dona Pureza acaba de conhecer de perto o sofrimento dos homens, viu a sepultura de um trabalhador assassinado por tentar fugir de uma fazenda. "Isso me chocou. Tem de chocar todo o Brasil". Além de sentir a preocupação de mãe pelo filho, Dona Pureza compreende a crueldade do crime de escravidão.


Um primo empresta a Dona Pureza uma máquina fotográfica e um pequeno gravador para documentar o que vê e ouve nas suas caminhadas: ela tira fotos dos trabalhadores escravizados e grava as conversas com os gatos através do aparelho escondido na blusa. Dona Pureza procura, com as provas, chamar a atenção das autoridades: de procuradores da justiça, de deputados e governadores. Aos políticos do Maranhão, entrega uma carta com as assinaturas de mães de filhos escravizados. Ela viaja três vezes para Brasília e entrega ao Presidente da República um documento com uma foto daquele homem assassinado. E denuncia: "até hoje a justiça está de braços cruzados". Não há nenhuma condenação por exploração de trabalho forçado no Brasil. Um projeto de lei que sugere a desapropriação das terras dos que exploram este tipo de trabalho espera há um ano e meio a votação no Congresso, em Brasília.


Abel, que estava numa fazenda no Pará, na região de Santana do Araguaia, soube da procura desesperada da mãe, que já tinha, inclusive, recebido a notícia da morte do filho. Ele foge da fazenda ameaçado pela perseguição dos pistoleiros. Na madrugada do dia 27 de maio de 1996, Abel bate na porta de sua casa, em Bacabal. "Sou uma mulher rica", diz Dona Pureza, "tenho o meu filho em casa". Abel, um rapaz sempre calmo, agora fica calado. Com muita dificuldade fez seu depoimento para o advogado da CPT. Passou por muito sofrimento, estava doente, sem receber tratamento e remédio, trabalhou duro, sempre temendo as punições dos empreteiros e pistoleiros.


Dona Pureza fala: "vou contar tudo e para todos lá em Londres". E depois? Vai voltar a produzir tijolos. "E vou continuar lutando".


Martin Merz



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