Editorial

PACOTE 51
CAÍMOS NA REAL...


Está a completar 500 anos que o almirante português, Vasco da Gama, a mando do rei Dom Manuel I, atingiu as tão sonhadas Índias. Como bem cantou o poeta Camões, eram bastante explícitas as recomendações reais: Possa à terra mandar qualquer fazenda. Com a dominação ocidental sobre Calicute, Goa e demais entrepostos comerciais das costas africanas, asiáticas e americanas, o mundo começava a globalizar-se através do primeiro modo de produção verdadeiramente universal: o capitalismo. Os lucros obtidos na pioneira viagem das quatro naus de Vasco da Gama, da ordem de 6.000%, dão bem o tom da escala ampliada de reprodução que o capital passaria a experimentar dali em diante: basta saber que o feito lusitano rendeu à mais do que um ano inteiro de viagens terrestres dos comerciantes venezianos ...


Exatos 350 anos depois (e muitas fazendas levadas às terras européias), dois estudiosos da sociedade moderna faziam uma conclamação aos trabalhadores do mundo inteiro. Escrito entre dezembro de 1847 e janeiro de 1848 por Karl Marx e Friedrich Engels, o Manifesto Comunista reconhecia que a descoberta da América e a circunavegação da África ofereceram à burguesia em ascenso um novo campo de ação e que, pela exploração do mercado mundial, a burguesia imprime um caráter cosmopolita à produção e ao consumo em todos os países. Ainda é outro grande poeta português (dessa vez, Fernando Pessoa) quem assinala: Deus quis que a terra fosse toda uma / que o mar unisse, já não separasse.


Não tratava-se, obviamente, de castelos de ar, antes de análises assentadas em rigorosa investigação dos mecanismos do capitalismo. Segundo seus autores, as crises deste sistema haveriam de ser cíclicas, por conta de uma tendência progressiva da queda da taxa de lucros, verdadeira alma deste modo de produção (Ai que saudades dos 6.000% dos tempos do almirante, diriam os capitalistas do mundo todo!). Passado um século e meio do Manifesto (e algumas graves crises também), não há dúvida que nos encontramos em meio a um destes momentos, de amplitude mundial e caráter estrutural, apesar de toda a tentativa dos analistas em reduzirem o fenômeno a uma escala regional e/ou conjuntural. Mesmo no coração do capitalismo: os últimos acontecimentos das bolsas de valores nos quatro cantos do globo e a sucessiva falência de bancos japoneses no fim de 1997 serviu para demonstrar a fragilidade da economia capitalista. É novamente Pessoa quem diz: tudo é incerto e derradeiro / tudo é disperso, nada é inteiro.


No Brasil, sub-globalizado cinco séculos atrás, a crise já não restringe-se aos comentários dos experts da mídia: caiu na boca do povo. Junto com a máscara do Real. Muitos se questionam: haverá luz no fim do túnel ? E com razão: malgrado os slogans de modernização que frequentam os outdoors e vídeos do país, a realidade desvirtuada é gritante: municípios falidos, estados endividados, escolas e postos de saúde fechando a cada dia. As taxas e percentuais são uma pálida imagem da angústia e falta de perspectiva de boa parte da população brasileira: 40% da população infantil vivendo em degradante miséria; 20 milhões de adolescentes (entre 15 e 17 anos) analfabetos; 30 milhões de trabalhadores sem a menor seguridade social. O governo, antes escorado na muralha de discursos e falácias, viu-se obrigado a revelar uma parte da fragilidade do modelo político e econômico adotado. E garante de pés juntos "não querer esconder nada" da população. Mas quem não se recorda de episódio do governo anterior, no qual foi melancolicamente desmascarado um dos mais "éticos" ministros de então, aquele que "escondia e faturava"?


De qualquer modo, a fim de "proteger" a antes inexpugnável moeda nacional, elevou as taxas de juro praticadas no país para, logo em seguida, ressuscitar uma das práticas dos tempos funestos da ditadura militar: o Pacote. Lançado no início de novembro, suas 51 medidas (que mesclam ajustes fiscais com cortes nos gastos públicos) tendem a agudizar ainda mais o quadro recessivo em que vivemos, a inflamar ainda mais a ferida que corrói nossas entranhas: o desemprego. O governo não tem rebatido enfaticamente os efeitos recessivos (até porque seria impossível convencer-nos do contrário), delegando ao seu batalhão de funcionários de segundo e terceiro escalões a (difícil) missão de defender as supostas benesses do plano oficial: ganho fiscal da ordem de 20 bilhões de reais, atração de outros 18 bilhões de reais em investimentos estrangeiros, etc, etc, etc. Para o povão, acostumado a um cotidiano muito mais real, a linguagem dos bilhões é intraduzível. A prova dos nove é, sem dúvida alguma, o dinheiro (melhor dizendo, as nicas) que sobra no bolso. E esse tem ficando cada vez mais "irreal". Até então a arma governamental mais poderosa, o Plano Real começa a mostrar seus furos, três anos depois. Como diz o ditado popular, o feitiço vira contra o feiticeiro ...


Num país que "gerou" mais 1.600.000 desempregados somente em 1997, o anúncio da demissão de 33.000 funcionários públicos (aliada à extinção de 70.000 vagas que estavam para ser ocupadas) faz com que muitos troquem de pergunta: será que este poço tem fim? Não foi preciso fechar o mês (de finados) e os impactos já começaram a se fazer sentir: fábricas falindo, indústrias concedendo malfadadas férias coletivas, etc. As taxas (oficiais) de desemprego permitem mensurar, ainda que friamente, a profundidade desta "ferida": somente na Grande São Paulo, os dados de novembro deste ano apontam para mais de um milhão e meio de desempregados, numa taxa recorde de 16,5%. Já a Região Metropolitana de Salvador (apesar de toda a propaganda de suas velhas elites econômicas e políticas) ostenta o infeliz título de "campeã do desemprego" entre as mais populosas cidades do país, com 22% da sua população sem arranjar emprego, número que cresce significativamente entre os jovens de 18 a 24 anos: 33%. Só para se ter um idéia, a estimativa de demissões no serviço público soteropolitano, em função das recentes medidas, é de nada menos que 3.000 funcionários públicos. Decididamente, não vai ser fácil para o povo engolir essa 51 ...


Mesmo os intelectuais afinados com a ideologia capitalista em sua vertente neo-liberal reconhecem a incapacidade crônica do sistema econômico, pelo menos na sua fase atual, de incorporar todo o contingente de jovens que produz anualmente, tampouco de suprir os idosos que outrora consumiu ... E as previsões - insuspeitas, pois formuladas por "gurus" do próprio neo-liberalismo - não são nada alentadoras: indústrias e serviços virtuais, por conta da acelerada informatização; redução ainda mais drástica do emprego no campo, como resultante dos avanços na biotecnologia. A exclusão social, antes subestimada como uma mera "disfunção" pelos profetas do liberalismo, aqueles que anunciavam o paraíso (na Terra) do pleno emprego, passa a ser progressivamente admitida como algo a ele inerente, uma espécie de subproduto do processo econômico. Diante dos persistentes índices de desemprego lá onde o capitalismo supostamente seria mais vital (Estados Unidos, Europa e Japão), não há mais como escamotear o destino destes milhares de homens e mulheres: de excluídos necessários (para o rebaixamento do nível de remuneração salarial, por exemplo) a excluídos desnecessários, para utilizar a terminologia de uma cientista político contemporâneo. Para alguma coisa ao menos servem as crises ...


Por outro lado, justamente nessas ocasiões de fissura estrutural do sistema dominante amplia-se o poder de reação das classes exploradas, sobretudo aquelas que o Manifesto Comunista qualificava como verdadeiramente revolucionárias. Quais seriam elas no contexto atual? Como transformar esta conjuntura numa autêntica hora da virada? Como articular os diversos segmentos explorados numa reação organizada? Não dispomos ainda de respostas concretas a estas indagações, mas resta o consolo de que, do lado dos arautos do capitalismo globalitário, também não se vislumbra saídas. É certo que vivemos um momento de refluxo das utopias (de novas sociedades, novas relações, novos mundos), mas é igualmente verdadeiro que a atual "ditadura do pensamento" (que vê em tudo globalização, modernização, etc) procura desesperadamente requentar velhos conceitos para ocultar a inconsistência de suas proposições: re-estruturação, re-conversão, re-trabalho, re-desenho, entre outros. Para não sair deste diapasão, que tal re-tomar outras palavras da língua do re, tais como revolta e revolução?


O desafio não é pequeno. Os últimos anos assistiram a uma crescente fragilização da organização sindical em suas diversas instâncias, chegando mesmo a partilhar a mesa com os patrões e o governo para compor as câmaras setoriais, de apoiar os falaciosos programas de geração de emprego e renda, a exemplo do que faz costumeiramente a Força Sindical. De outro lado, o inegável (inclusive pela mídia) crescimento do movimento dos sem-terra no país inteiro, seja em termos quantitativos, seja quanto à radicalidade das propostas, não conseguiu galvanizar a população brasileira (majoritariamente urbana) em torno da luta pela terra enquanto questão nacional, a ponto de provocar uma reação em cadeia contra este sistema excludente, de modo que ultrapasse o limite da "sensibilização" (o que, de fato, foi alcançado) para a efetiva "organização". A pretendida aliança com os que não têm casa para morar (os sem-teto), os desocupados da cidade (os sem-emprego) e mesmo com os milhões de trabalhadores do setor informal (os sem-carteira) parece ainda engatinhar. Talvez seja o momento de abandonar as identificações pela negatividade (sem-isso, sem-aquilo), buscando formular alternativas mais propositivas para o conjunto da sociedade, rompendo o círculo vicioso no qual nos situamos: para um crise estrutural (e coletiva), saídas conjunturais (e, em sua esmagadora maioria, individuais). Nada se fará de maneira indolor, porém: como vaticinava Fenando Pessoa (sempre ele) acerca dos grandes desafios, quem quer passar além do Bojador / tem que passar além da dor.


Abalos nas bolsas do mundo inteiro, cataclismos financeiros, choque de blocos econômicos ... Cada vez mais os analistas internacionais têm lançado mão de metáforas geológicas para (tentar) dar conta dos rumos do planeta neste fim de milênio. Recorramos a um especialista da matéria, o geógrafo Milton Santos, para nos lembrar que a transformação profunda vem de baixo, dos pobres, dos despossuídos... E é "de baixo" que vem estes versos, declamados por um paraibano anônimo:


Entra ano sai ano
Nossa gente no estrovo
Vivendo tão apertado
Igual a pinto no ovo.
E agora fim de século
Volta pacote de novo
Políticos fazendo nome
Com a miséria do povo.

Bom Natal e Feliz Noventa e Oito!


Cadernos do Ceas



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