Editorial

CONTRA OS ANALFABETISMOS:
EDUCAÇÃO E FRATERNIDADE


A foto de uma sem terrinha na cadeira escolar, meio assustada frente à câmara de Sebastião Salgado, é cartaz e capa no Texto Base da Campanha da Fraternidade da Igreja Católica para 1998. Essa menina, no seu olhar desconfiado, é uma chave de leitura do VER, JULGAR e AGIR proposto pelos bispos em 142 páginas.


No VER, tipicamente panorâmico, a Igreja destaca em primeiro plano 19 milhões de analfabetos com idade que supera o período escolar. Esse número é oficial, do IBGE, que logo acrescenta os analfabetos de idade escolar, dando a soma total, segundo a Fundação Getúlio Vargas, referendada pela Organização das Nações Unidas: 32 milhões de brasileiros analfabetos. "Quadro de vergonha", notamos com os senhores prelados, que imediatamente vão atrás dos sem-vergonha-mor. Ficam nessa evidência os (mal)administradores legais dos recursos:


"Os últimos dados do Tribunal de Contas da União afirmam que houve uma redução real nas despesas com educação com respeito às realizadas em 1995. Por lei, as áreas de erradicação do analfabetismo e de universalização do ensino fundamental deveriam receber ao menos 50% do total, mas receberam apenas 1%." Sobra para os agentes pastorais identificar inúmeros Pittas e Malufes nessa lista de desvios, municipais e estaduais.


A ponta da pirâmide escolar mostra, do outro lado, a percentagem de jovens entre 18 e 24 anos que conseguem entrar no ensino superior. Ela cai de 11,3% em 1990 para 9,3% em 1997 (março). Com esse e semelhantes traços acaba armando-se o corpo inteiro e real de uma educação seletiva e desigual, de baixo a cima. Desigualdades "iníqüas" que revelam os "resultados decorrentes do processo de extrema concentração de renda e níveis elevados de pobreza". De novo o Ver da hierarquia católica estende horizontes e passa ao lado de "desigualdades" mais próximas: por exemplo, as sabidas concorrências entre escolas particulares e públicas, por vagas e - antes - por verbas, que continuariam a chegar da propalada privatização. As escolas particulares - católicas na frente - não parecem, porém, mostrar na educação dos filhos do povo o mesmo dinamismo que ostentam na educação da elite. Estreita-se, em todo caso, o pescoço ou gargalo de garrafa no desenho de um sistema de ensino condenado, por cima a criar melhor aparelhados empreendedores, e nos baixos sempre mais amplas camadas de "novos escravos". É o reflexo, e a reprodução "cultural" ativíssima, dos sistemas social, econômico e político, a caminharem sempre mais de cabeça para baixo.


É nessa relação complexa e perversa, mesmo que vista a olho de águia, que se configura para a Igreja Católica o assim batizado "analfabetismo amplo", raiz do analfabetismo "técnico". Tão amplo qualitativa como quantitativamente. O pessoal "culto", mas que "não sabe tomar conta da própria vida". Os que nada entendemos de "economês", nem de linguagem "digital" ou de inglês. Os analfabetos "televisivos - (que) só vêem". Os "analfabetos políticos" (bem que os bispos poderiam ter lembrado aqui o centenário neste 1998 de Bertolt Brecht). Os que perdem a sua "cultura original..." Difícil saber o que tais reticências escondem. Mas se alude em seguida a "espertos analfabetos sabidos" tentando manipular de todo jeito os setores majoritários de analfabetos supostamente mais doidos, caipiras. Um subsídio bíblico para esta Campanha introduz o evangelho de Lucas com o conhecido fato: os rapazes que em Brasília queimaram o índio Galdino Jesus dos Santos freqüentavam as melhores escolas. Abrem-se as matrículas para letrados nas escolas comunitárias dos 'caipiras'?


Revemos - e nos deixamos re-olhar por - aquela aluna sem-terrinha agora em vias de promoção a professora. Ela fica lá, entre calada e muda, 'obra aberta' abrindo o novo capítulo, JULGAR. Este é sermão quaresmal da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. Discurso sisudo que desdobra a história bíblica, o "ser humano no Projeto de Deus", do Gênese aos Evangelhos. A família do paraíso e a de hoje, os povos em êxodo, sob a lei pedagoga, os escravos na Babilônia dos faraós, pragas de profetas, denúncias atuais, pescadores educando-se entre o Templo e o Carpinteiro de Nazaré...


Entendemos que nossos pastores capricham na elaboração de um elementar abecedário, com renovada pedagogia, para "ajudar a 'ler'. Ler em sentido amplo: ler os textos dos livros, ler a vida, ler as relações, aspirações e afetos humanos, ler a correlação das forças políticas, ler direitos e deveres de cada situação, ler as implicações do que é veiculado nos Meios de Comunicação Social e, principalmente, ler os 'sinais dos tempos', descobrindo neles os apelos de Deus. Todos nós, neste sentido, estamos sempre nos alfabetizando e somos chamados a colaborar no processo de alfabetização dos irmãos." (p. 65-66).


Saboreada a beleza do parágrafo, redondo, fica-se à espera do instrumental prático para AGIR. Será tal ferramenta "A" cartilha para guiar-nos rumo ao apregoado próximo milênio? Do lado da sem terrinha é que lemos novo - e confiante? - elevar-se dos olhos como que a balbuciarem frente à milenar Mãe e Mestra: "Desçam de suas eminências, pelo menos das eminentíssimas, meus caros alfabetizandos..." E, de fato, esse grande convite geral da Campanha de 1998 a respeitar os "saberes menores", as "artes menores" - faltou a cultura oral? - em contraposição aos dos "letrados", sentimos que consegue suscitar muito bom propósito, passos, embora vacilantes, de muitos "membros da Igreja" hierárquica, reconhecidamente necessitada deste gênero de conversão e quarta-feira de cinzas. Pode-se pensar em reciclagem inculturadora.


Por virtude ou por necessidade, por reajustes impostos de todo lado, o educador vai sendo re-educado. Nas igrejas, como nas mais ou menos amplas camadas da sociedade aberta, talvez recomeça um ciclo de troca, ampliação e força das linguagens. As hierarquias formadoras de opinião, com suas mídias; o bispo e clero e pastores baixos, na viva voz e de a pé, ao lado de religiosas em inserção popular, animadores(as) de comunidades, no meio de movimentos (oportunamente citados) como os dos sem-letras, sem pratas, sem-terra, sem-teto, sem-emprego, sem-segurança etc. Um processo de re-alfabetizações pode estar engrossando nas fronteiras entre grupos, entre classes sociais mesmo, cansados do isolamento, dos desentendimentos, das crescentes infernizações pelas violências, das persistentes "anestesias" sem-saídas.


Desses cansaços e esgotamentos renascem - em crua inevitável simplificação - dois impulsos com seus dois respetivos métodos de re-leitura. Aos fonemas da fraternidade a partir dos abcdkxy da vida em situações de crianças, jovens, mulheres e homens, negros(as), sempre mais injustiçados, excluídos, desempregados inempregáveis, empobrecidos, correspondem as renovadas e seculares cartilhas feitas de segurança e privilégios, particulares ou institucionais. Como poderia essa violenta tensão deixar de permear o ver-julgar-agir tão oportunamente benevolente da Igreja Católica no Brasil e alhures?


O reino da fraternidade - igualdade - liberdade, católicas ou não, sofre essa violência intestina, também no momento em que apela para o desbloqueio recíproco de vida e palavra, em que apela para o mundo como uma "casa comum" sob as crescentes proclamações de solidariedade global. As desigualdades educativo-sociais descortinadas no primeiro VER são, com efeito, contrabalançadas, já na conclusão daquele capítulo, com uma visão sintomaticamente otimista do neoliberalismo - palavra meio-imperial de deus. Das economias e políticas nele geradas condena-se apenas os traços "exacerbados", "selvagens". Os sinais que ele nos dá são de "ambigüidade visível" que exige "aguçado senso crítico". Recomenda-se que cada comunidade e região aliste as "conseqüências positivas e as menos positivas". Tudo seria positivo afinal de contas...


Com certo corretivo. Porque se acrescenta indicadores - sinais um pouco mais polarizados (educativo-moral(izantes)?). Os positivos, como "o espírito de colaboração..., a valorização da mulher, a sensibilidade ecológica, a retomada da dimensão espiritual..., o diálogo entre culturas, religiões e governos, a valorização dos grupos étnicos e das maiorias". Os negativos (também com destaque moral genérico), como "os comportamentos de evasão, dispersão, superficialidade, desencanto, .apatias e passividades..., desânimo..., vazio e vida trivial..., corrupção dos poderosos..., empobrecimento do povo..." (p. 36-39) Tais "desafios para a educação" ficam enquadrados na palavra geradora mãe, em abstrata esfera de valores, chamada a fáceis purificações, desligadas de chãos onde implantar a desejada alfabetização ampla.


Semelhante evaporação é patente na passagem do julgar para o AGIR, que leva como subtítulo justamente: "encurtando a distância entre a proposta bíblico-pedagógica e a prática educativa". Distância entre a doutrina e suas puras aplicações? Distância, muito mais, entre duas leituras bíblicas, dois julgamentos e como que dois projetos que comandam ações de dois conjuntos de educadores, sujeitos ou atores sociais.


Toma claramente a frente o bloco globalizador, a orquestra dominadora da alfabetização homogeneizante, adestradora. É o projeto - proposta dos "possíveis mutirões em nível nacional": "alfabetização, tarefa de todos", "Criança na escola", "Economia solidária"... As redes internacionais, as parcerias com o Governo, em Conselhos Comunitários e Tutelares (de saúde, educação, cidadania, imperialmente "contextualizadas") atropelam claramente os muitos e vários "saberes e poderes menores". Tudo parece se atrelar aos programas de calendários oficiais em marcha com "Toda criança na escola", "Brasil em Ação", "Comunidade Solidária" etc. Quanto às "eleições", "nossa Igreja (sem restrição adjetiva - nota este editorial) não faz opção partidária alguma". E nem lembra a corrupção oficial que ela mesma ajudou a denunciar meses atrás na hora da emenda da reeleição.


Parece-nos aí que a arma da crítica "aguçada" faz esquecer a crítica das armas, com nosso ver e nosso julgar globais escancarando, terraplenando espaços a negociações imaginárias virando bem prováveis negociatas. Os desejados "sinais dos tempos", em vez de lugar teológico concreto, podem ficar esse lugar comum, sinalização - mesmice dos mesmos becos sem saída dentro do pensamento, cultura e convivência brutal dominantes. Não se queria uma "partilha menos vertical de saberes e poderes"? Sentimos que muita coisa pára, ou desanda, e voltamos à correnteza do darwinismo social em que a sobrevivência é dos mais poucos e mais fortes em "cultura, poder e dólar dominantes".


Propostas foram crescendo recentemente, mais delimitadas, a partir de grupos, com predomínio popular, concretos. Em territórios definidos por costumes e lutas próprios. Nas comunidades de periferia, nos terreiros, nos Canudos e Quilombos que sobraram, nos assentamentos de terra e nos acampamentos até por vagas na escola - com seus contextos e ritmos, cartilhas e textos próprios - os elementares abecedários de escola e vida se multiplicam e garantem lugar cultural. A diferença das cartilhas únicas, por mais que elas se reciclem, estes "abecedários" chegando a leituras - julgamentos - ações bem mais próprias, autonomizantes cultural e socialmente.


Um grupo de biblistas populares - sem deixar de ser rigorosos -, com mestre Carlos Mesters entre eles, vem alimentando a vida deste método alternativo como o ir-e-vir do povo, passando por espaços territoriais concretos (povo, tribos, de Deus nos torrões bíblicos e nos de hoje). São os Círculos Bíblicos, entre as conversas reflexivas e a ação em lutas comuns. Os textos sagrados, como os ditados populares nordestinos, são reportados ao vivo dos contextos, também bíblicos e atuais. As inter-relações se abrem aos desdobramentos concretos e ficam declaradas, expostas: entre elites e injustiçados, fariseus da legalidade a serviço do Templo privado e sábios pescadores da Galiléia, dos bairros, das escolas comunitárias etc). Heterogêneos, desiguais, em conflito, os vários atores sociais deixam de ser máscaras, para ser caras, dos filhos do homem ou dos seus inimigos. Os limiares ou fronteiras são demarcados, respeitados, postos em relevo como des-a-fios às palavras e vidas congeladas. Na raiz cristã, o deus globalmente transcendente se torna deus passo a passo e a caminho com o seu povo; e o paraíso vai se con-temporizando, transpondo-se dos começos da criação para um presente de responsabilidades comuns.


Pedagogia alternativa é a entreajuda nessas "travessias" por dentro, para além e para fora, das situações de conflito e apartações, cansaços e exclusões, que se multiplicam e engrenam de cima a baixo. Em reação inevitável, até pelo instinto de sobrevivência, cada carência (de casa, paz, emprego e ganho, educação, terra e dignidade etc) faz surgir uma fila de demanda, sempre menos satisfeita. A fila vira aglomerado e roda bate-papo sobre interesses próximos, e luta por um lugar nos vários planos da vida. Nos degraus inferiores e imensos da escada de poderes, esse processo é o dos "movimentos sociais", que estão gerando outras tantas cidadanias, também sociais - do campo às periferias das cidades, do aglomerado de favelas às sempre mais visíveis "cidades de lona".


Nessas lutas é que múltiplos grupos populares se e nos re-alfabetizam, elaboram gramáticas (orais e escritas, mudas ou explícitas) conjugando valores, direitos e deveres com interesses vitais. Não é tão arriscado prever, a meio prazo , sintaxes interculturais, inter e intra-classes, de impacto.


Sem que o CEAS proponha matrícula geral na escola dos sem-terra, vem ao caso valorizarmos um "sinal dos tempos" localizado justamente nesses contexto. Para essas centenas de milhares de famílias, e claro que para setores crescentes da sociedade brasileira toda, a sua relação com a terra "invadida" transitou e faz transitar da "criminalização" secular para uma "legitimação" tão recente como crescente. "Auto"legitimação, de partida. Reconhecimento dessa legitimidade, com histórico e natural atraso, por quem de direito. No caso, da parte da Mãe Mestra - como aparece "alfabetizada" no recente Documento do Pontifício Conselho de Justiça e Paz de14.01.98.


As novas boas cidadanias se constroem cada vez mais nesses "mutirões" da invenção. Valores são gestados e nascem das lides do povo, para depois serem "anunciados" mais institucionalmente. Não precisam eles de muita "propaganda fidei" (ou ainda tem 'pagãos'?) para traçarem (precisa relembrar que quase sempre sobre pegadas de sangue?) eixos de novas releituras e transformações da realidade. O citado Documento - reconheceu D. Luciano Mendes na sua coluna da Folha de S. Paulo - "é sem dúvida de evidente atualidade para o Brasil". De atualidade também como ratificação da leitura, ação e pedagogia alternativas que esperamos para a Campanha da Fraternidade aberta neste 1998.


Cadernos do Ceas



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