Editorial

Tropicalistas e transformistas
no Carnaval do Brasil


Dizer que o Carnaval brasileiro é uma das festas mais populares do mundo e que, dentre os carnavais estaduais, o que acontece na Bahia é um dos mais apreciados (só este ano foram milhões de pessoas na festa), não é nenhuma novidade. Como já se disse, "a música baiana é a trilha sonora oficial do Carnaval do Brasil". Tomá-lo como alegoria da sociedade, enquanto expressão da alegria, espontaneidade e criatividade da população também não. Daí o dito popular de que, nestas plagas, quase tudo acaba em samba/carnaval...


Olhá-lo, porém, sob a ótica da construção de uma certa hegemonia cultural, de um consenso que tem na produção artística sua matéria-prima e na mídia seu principal disseminador, já não soa tão óbvio assim. Aliás, um pensador italiano deste século, Antônio Gramsci, que provavelmente nunca brincou o Carnevale nem acompanhou corsos na sua vida, formulou uma teoria que talvez nos ajude neste olhar acerca da realidade brasileira: segundo ele, os intelectuais (considerados aqui num sentido amplo) seriam como que "organizadores da cultura" e do "consenso", sempre articulados a grupos sociais determinados e portadores de projetos políticos específicos. Não parece despropositada esta conexão: afinal, a estética sempre caminhou rente à política (de modo mais ou menos explícito), seja através das poesias libertárias de um Maiakovski, seja pelo imaginário racista do nazi-fascismo.


Acostumados a concebê-lo como uma festa eminentemente plural, caótica, desorganizada, espontânea ou, na acepção de um sociólogo baiano conhecedor das coisas do povo, "espaço de resistência popular através do lúdico", talvez tenhamos que reformular tal idéia, à luz da tendência apontada pelos últimos eventos. Neste sentido, o Carnaval de 1998 é paradigmático não só da própria festa mas dos rumos da sociedade brasileira neste final de século/milênio.


O ano de 1998 registra, aliás, algumas efemérides importantes para a cultura brasileira, de modo específico na sua vertente musical, por conta de movimentos que revolucionaram a estética então vigente. Quarenta anos de Bossa Nova, trinta anos de Tropicalismo. Com relação à Bossa Nova, não há controvérsias em relação à ausência de crítica social do seu ideário: os artistas e intelectuais de classe média que o compunham nunca procuraram esconder o ideário (que os animava) do "amor, do sorriso e da flor".


No caso do Tropicalismo, a história é um pouco diferente: ainda que diferenciado, desde sua origem, das esquerdas do fim dos anos 60, o movimento adotava uma explícita ótica contra-cultural, a ponto de eleger como ícone estético o modernista Oswald de Andrade. O "canibalismo cultural" então proposto implicava em mesclar elementos estrangeiros com aqueles da cultura nacional, num amálgama que deveria resultar num produto artístico inovador. Passadas três décadas, tudo indica que a antropofagia tropicalista chegou ao fastio, vivendo talvez a fase da "barriga cheia".


Como toda festa tradicional e de grandes dimensões, o Carnaval encontra-se recheado de mitos, continuamente atualizados: um dos mais importantes deles, por exemplo, insiste que a festa continuaria popular e democrática, na medida em que, nela, todos podem extravasar suas alegrias (as dores também). Ademais, justapõe-se a esse argumento "politicamente correto" um outro, mais moderno, ("economicamente correto", poder-se-ia dizer): a quantidade de emprego gerado pela festa, os lucros trazidos para a economia local etc. As cifras oficiosas (vazadas dos próprios órgãos governamentais e propagandeadas pela mídia de plantão) são fabulosas: para se ter uma idéia pálida, basta registar os valores apontados para o Carnaval de Salvador - US$ 500 milhões girando na economia, 240 milhões de faturamento líquido, 130 mil empregos diretos. Para além da fantasia astronômica destes dados, a realidade, contudo, transforma este discurso uma dúbia (e passageira) fantasia, fadada a virar cinzas antes mesmo da quarta-feira.


No Carnaval continua a vicejar a democracia dos ritmos musicais, é bem verdade: frevo, axé, afoxé, reagge, marchinhas, pagode, lambada, funk, baião, rock, brega e sertanejo continuam mesclando-se numa autêntica "geléia geral". No entanto, não vai muito mais longe tal "democracia"... Na medida mesma da profissionalização da festa, os agentes econômicos nela envolvidos (empresários artísticos, publicitários, comerciantes, entre outros) terminam imprimindo uma lógica excludente e seletiva, pouco afeita à própria dinâmica original: a propaganda cada vez mais se faz em torno da Organização, Limpeza, Conforto, Privacidade e Segurança do evento (os "5S" do Carnaval...). Ao lado deste aparato de marketing, a própria industrialização crescente impõe mudanças significativas aos diversos participantes do evento, com a sofisticação da tecnologia envolvida nos trios elétricos e demais carros de som, ....


Tudo isto termina elevando sobremaneira os custos da festa: neste ano, uma escola de samba paulista exigiu um investimento médio de 1 milhão de reais; as cariocas, mais que o dobro disto, em média. Na Bahia, somente o camarote de Daniela Mercury custou, para os cinco dias da festa (em que esteve repleto de políticos, empresários, socialites, intelectuais, artistas, desportistas etc), a "bagatela" de um milhão de reais (em parceria da cantora com empresas privadas, obviamente)


Nunca como agora ficou tão evidente a tendência à privatização: cartelização dos espaços (antes públicos) através dos camarotes, arquibancadas, estacionamentos, passarelas. Hoje, na Bahia, não só deixa de ir atrás do trio-elétrico quem já morreu, mas, sobretudo, quem não tem dinheiro, emprego e amizades influentes. Isto em virtude dos preços dos blocos e dos camarotes, da limitação dos espaços populares, com a construção de verdadeiros "corredores baianos". A padronização das barracas (o colorido caótico dando lugar ao bem-comportado cinza e branco), assim como a alta taxa de instalação das mesmas (cerca de 150 reais para colocar um mero isopor, outros 800 para montar uma barraca), dão bem o tom de quem tem acesso a esta economia apenas formalmente "informal". O que se assiste hoje na Bahia é a vitória do modelo privatista (porque considerado mais eficiente), muito próximo ao que fazem os grandes nomes da nossa pós-tropicália, como Carlinhos Brown, Banda Eva, Chiclete com Banana e Daniela Mercury, todos eles não mais apenas músicos (como nos tempos de Caetano, Gil, Gal e Bethania), mas, sobretudo, empresários ciosos muitos mais de suas marcas (autênticas grifes) que de suas rimas e acordes.


Não se trata de uma ruptura efetiva, contudo: até mesmo os mais "autênticos" representantes do movimento teorizam acerca desta elitização, como o próprio Gil, que afirma, sem constrangimento: "O Carnaval no Brasil sempre foi assim (...) É uma festa feita pelo povo para as elites". Retomando Gramsci, seria um exemplo de "transformismo" de um intelectual que, se antes simulava uma ligação orgânica aos grupos populares (de modo especial o segmentos negro-mestiço), agora orienta-se explicitamente por outros interesses e perspectivas. Não está sozinho, contudo: mais do que nunca, parece estar selada a aliança, na Bahia, da "classe" artística com as elites no poder há décadas, o que confere ao Carnaval e ao disseminado "orgulho de ser baiano" o caráter de antecipação do jogo eleitoral de fim de ano. Não à toa, um dos blocos soteropolitanos que ainda persistem numa postura política crítica, a Mudança do Garcia, trazia um cartaz deveras significativo: "Trinta Anos de TropiCarlismo" ...


Dada a sua dimensão cada vez mais ampla, extrapolando os limites geográficos (vez que espalhou-se pelo país todo), temporais (em virtude da constância dos grupos em vários momentos do ano) e penetrando cada vez mais nos espaços da mídia, não há dúvida com relação ao imenso poder simbólico dos profissionais do Carnaval (cantores, compositores, músicos, produtores, jornalistas etc). Seguramente, representam atualmente um dos mais consistentes segmentos "formadores" de hegemonia cultural no Brasil. Diante disto, torna-se cada vez mais evidente a aliança ideológica destes intelectuais com os grupos políticos e as elites hoje no poder: no Rio de Janeiro, afora a prosaica articulação com certos grupos empresariais, pelo menos quatro Escolas de Samba obtiveram financiamento direto de Estados e Municípios por elas homenageados em seus enredos.


Inegavelmente, a aliança com os políticos (no poder, é claro) faz parte cada vez mais do show: no camarote principal do Carnaval baiano, a presença do triunvirato pefelista (o prefeito da Capital, o governador do Estado e o senador da República) apresentava fôlego próximo ao dos rebolados abundantes das louras e das morenas. Como brinde, a companhia (ainda que não tão festejada, politicamente estratégica) do prefeito de São Paulo, Celso Pitta. E com direito a um discurso pouquíssimo antropofágico de Mister Brown, ao modo de um profeta apocalíptico, ao afirmar, em alto e potente som do seu trio elétrico, que "estava escrito que, no final do século, três homens iriam aparecer [no governo da Bahia] para colocar ordem nessa terra e administrá-la de maneira democrática e generosa". A concessão, por parte do BNDES, de um empréstimo (a fundo perdido) da ordem de 730 mil reais para as "obras sociais" do próprio Brown num bairro popular de Salvador parecem confirmar a referida profecia ...


Até mesmo os grupos negros (afros, afoxés), nascidos muitos deles a partir dos anos 70, numa crítica contundente à "sociedade capitalista branca e racista", resistem cada vez menos ao intenso processo de cooptação acionado por grupos empresariais (sobretudo imobiliários e turísticos), cedendo, não raro, a fim de conseguirem o patrocínio para os blocos e carros de som, construção das sedes sociais, financiamento de projetos pedagógicos etc. Entretanto, continuam ainda desfilando somente nas madrugadas, no vácuo dos "eugênicos" blocos da louras baianas ...


De fato, num ano eleitoral como este, as escolas de samba do Rio de Janeiro aliaram temas "politicamente corretos" (como negritude, Coluna Prestes, crítica à corrupção etc) à rotineira adesão aos caciques políticos de plantão. E como estamos num ano de Copa do Mundo (e a vitória brasileira não é de todo improvável), é possível que tenhamos mais um Carnaval temporão: não nos espantemos, portanto, que um outro Rei Momo, muito mais magro e sem graça que o de praxe, queira aproveitar os eflúvios da festa para entronizar-se por muitos e muitos carnavais. O que não vão faltar são carnavalescos "transformistas" e "travestidos" para engrossar o seu cordão ...


Cadernos do Ceas



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