Semana dos Povos Indígenas

Índio não cabe
no projeto lá de cima


"Povos indígenas: resistência no neoliberalismo." Com este tema, os povos indígenas do Brasil celebram a sua semana, de 14 a 19 de abril. O que diz o texto-base, elaborado pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi).


Dimas A. Künsch


Os povos indígenas são "prescindíveis". Eles "não têm nenhum papel" no projeto neoliberal do governo Fernando Henrique. Se não existissem, não fariam falta alguma. Como no caso de outros setores da população, que compõem o numeroso e desventurado bloco dos excluídos.

A denúncia do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) é parte do texto-base para a Semana dos Povos Indígenas de 1997, que tem como tema: "Povos indígenas: resistência no neoliberalismo".

Na análise do Cimi, um organismo da Igreja católica no Brasil, o neoliberalismo contribui para agravar, e muito, a situação indígena. Sobram pobreza, doenças, analfabetismo, desnutrição e alcoolismo. Crescem os números da violência contra a população indígena


As novas caravelas


Neoliberalismo tem a ver com globalização da economia. O mundo se transforma num grande mercado, onde os bens de consumo e o dinheiro não têm pátria. Cai de moda a idéia de que o Estado - governo e suas instituições - deve zelar pelo bem comum, com ações, investimentos, projetos.

Quanto menos Estado, melhor! "Enxugamento do Estado", "privatização" e "abertura do mercado" viram conceitos mágicos, ocupando a agenda diária dos profetas da "nova ordem".

E é assim que a economia brasileira leva a pior e os interesses transnacionais fazem a festa - na visão do Cimi. Fiel ao novo modelo, o governo reduz investimentos nas áreas sociais. Terra e renda se concentram, e quem já é rico não tem do que reclamar. Trabalhar fica sendo um privilégio reservado a poucos, e o valor pago pela força de trabalho despenca.

"Neste contexto, os povos indígenas enfrentam mais uma onda de agressões a suas formas tradicionais de organização sócio-cultural e de produção, à sua integridade física e étnica, ao usufruto exclusivo de suas terras e recursos naturais, ao seu direito à autonomia."

O Cimi apresenta uma lista de problemas que ameaçam a integridade indígena nesses tempos de euforia neoliberal. A mineração, a implantação de grandes projetos, a exploração de madeira e de outros recursos naturais, por exemplo. E também a pirataria da sabedoria milenar dos povos indígenas com relação às plantas medicinais, o "ecoturismo" e a criação de zonas francas - ou de livre comércio - próximas a áreas indígenas.

Os efeitos, reais e possíveis, podem ser imaginados: espoliação das terras tradicionais indígenas e dos seus recursos naturais. O índio, de repente, vira assalariado. Ocorrem divisões no seio das comunidades indígenas. A identidade desses povos fica comprometida.


Ímpeto preservacionista


Preservar é bom e faz bem pra todo mundo. "Não há dúvida de que é importante preservar espécies ameaçadas de extinção", afirma o Cimi. O problema é o modo como isso é feito. Uma política preservacionista baseada apenas em princípios de ordem econômica, feita de cima para baixo e desconsiderando a presença humana no contexto da preservação ambiental, essa política não serve.

"O pior é quando os recursos da selva são comercializados sem o consentimento dos povos e comunidades indígenas ou rurais, cujo conhecimento secular do meio ambiente e de técnicas de produção milenar não é reconhecido, nem compensado, pelos governos e corporações internacionais interessados em seus recursos."

Nesse contexto, uma nova ameaça pesa sobre os povos indígenas: a de serem removidos de seus territórios tradicionais, tendo em vista a "necessidade de criar zonas de proteção para a 'preservação' de espécies animais e vegetais".

"Não é que os povos indígenas se oponham a partilhar seus conhecimentos em benefício da humanidade, ou que a ciência, sobretudo a biotecnologia, não tenha que se desenvolver."

Mais uma vez: o problema está no modo como isso vem sendo feito. Quando quem manda é o dinheiro, deixando-se de fora tudo o que tem a ver com princípios éticos, perdem os povos indígenas, perde o Brasil e perde o mundo.


Turismo alternativo


A proposta de preservação ambiental é atraente, como também é atraente o chamado "ecoturismo", "turismo ecológico" ou "turismo orientado à natureza". A intenção parece ótima. Segundo os defensores da idéia, trata-se de uma forma alternativa de turismo, que preserva ao invés de destruir. Representa uma mudança de comportamento. Melhora a qualidade de vida das pessoas.

Portanto, viva o ecoturismo! Que venham os estrangeiros, com os seus dólares, apreciar a beleza de nossas florestas, rios, cachoeiras! Venham conhecer e se deliciar com a originalidade do modo de vida indígena! Tudo muito bonito e gostoso!

O Cimi alerta: é preciso tomar cuidado! A grande dúvida é saber quem se beneficia realmente com essa proposta "alternativa".

Fonte importantíssima de divisas para os países que adotaram essa forma alternativa de turismo - como Costa Rica, Quênia, Equador e Venezuela -, o ecoturismo "não necessariamente beneficia as populações locais". Essas populações são afetadas pela presença dos mais variados tipos de turistas, que nem sempre viajam apenas para ter contato com a natureza, observar, se deliciar.

"É difícil saber o quanto os turistas ecológicos estão de fato interessados em conservar - e não contaminar, depredar ou piratear - os ecossistemas, pouco explorados e alterados, por onde transitam, e muito menos em respeitar os direitos e valores, os padrões e o modo de vida da população humana local."

A população local - continua o texto-base -, "muitas vezes, é objeto de intervenção, manipulação, folclorização (o uso dos costumes indígenas como espetáculo), comercialização e exploração sexual".

Ecoturismo ou turismo tradicional, massivo? Na análise do Cimi, fica difícil saber os limites entre um e outro. Uma coisa é certa: como indústria em expansão, o turimo, no ano 2000, pode virar a maior fonte de dinheiro no mundo. Um negócio da China!

E turismo - mesmo o ecoturismo -, por enquanto, depende de agências de turismo, atalhos, pistas de pouso, hotéis, centros de treinamento e profissionalização de intérpretes e guias, restaurantes, postos de saúde, instalações sanitárias, etc. O Cimi acha complicado conciliar os interesses de toda essa máquina de fazer dinheiro com as idéias de preservação ambiental e de respeito à população local.


Agressão vem de longe


O Cimi quer saber se o governo "é capaz de administrar e manejar as áreas naturais, se dispõe de uma legislação correta sobre a matéria, se tem um planejamento adequado e políticas claras e concretas sobre a questão".

Uma política correta - explica o texto-base - deve preservar, de fato, a natureza e a população local. Deve também levar em conta, "principalmente, a perspectiva do autodesenvolvimento, a autonomia e o respeito ao direito territorial-cultural dos povos indígenas".

O Cimi questiona: "Poderá o ecoturismo ser compatível com a demarcação das terras indígenas, conforme estabelecem a Constituição e o direito originário dos povos indígenas?".

A idéia do ecoturismo ganha adeptos no Brasil. De acordo com o Cimi, os governos de Goiás, Amazonas e Bahia, entre outros, querem transformar as áreas indígenas em locais de turismo ecológico. A implementação do projeto de construção do Museu Aberto do Descobrimento, na Bahia, "vai reduzir a área indígena pataxó, no município de Coroa Vermelha, e transformar os índios em peças de museu".

O texto-base da Semana dos Povos Indígenas cobra uma mudança de ótica. O que acontece é que o projeto neoliberal torna presente, sob novas formas, "a relação colonial, autoritária, integracionista e etnocida que há quinhentos anos o Estado brasileiro e as classes dominantes mantêm com os povos indígenas".

O Cimi convoca para a solidariedade. Lembra que os povos indígenas não estão parados, de braços cruzados (veja matéria seguinte). E faz uma profissão de fé: "Apesar das adversidades, os povos indígenas marcam, junto a outros setores excluídos da sociedade, um sinal de esperança, rumo à construção de uma nova sociedade, justa e pluriétnica".


(Dimas A. Künsch, p. 13)



POPULAÇÃO INDÍGENA
NO MUNDO

INUIT 100.000
AMÉRICA DO NORTE 1.500.000
MÉXICO E AMÉRICA CENTRAL 13.000.000
INDÍGENAS DAS TERRAS ALTAS 17.500.000
INDÍGENAS DAS TERRAS BAIXAS 1.000.000
SAAMI 80.000
RÚSSIA 1.000.000
ÁSIA OCIDENTAL 7.000.000
ÁSIA ORIENTAL 67.000.000
ÁSIA DO SUL 51.000.000
SUDESTE ASIÁTICO 30.000.000
NÔMADES DA ÁFRICA OCIDENTAL 8.000.000
PIGMEUS 250.000
NÔMADES DA ÁFRICA ORIENTAL 6.000.000
SAN E BASARWA 100.000
POVOS DO PACÍFICO 15.000.000
ABORÍGENES AUSTRALIANOS 250.000
MAORI 350.000
TOTAL: 219.130.000
FONTE: "IWGIA - EL MUNDO INDIGENA 1995-96"


Veja também: Cobrando mudanças