Memória e resistência

Morte e ressurreição
de Canudos


Em outubro próximo, o massacre de Canudos completa cem anos. A maior luta civil do país foi distorcida pela história oficial. É preciso resgatá-la para se compreender o Brasil.


Texto: Saulo Feitosa
Fotos: Sérgio Marcos


Outubro de 1996. Um ano antes do centenário do massacre de Canudos, as águas da barragem do Cocorobó baixam, pela primeira vez, e os escombros da velha cidade emergem num apocalíptico cenário nordestino, sob o sol vermelho do sertão.

A torre da igreja construída por Conselheiro e seus seguidores, única parte em alvenaria a resistir aos canhões, reaparece solitária. Ao longe vê-se o cemitério, totalmente ressurreto. É como se reclamasse os milhares de cadáveres insepultos após o massacre final, quando os mortos foram queimados.

"De tudo isso partia um vago chiado de gordura e emanações enjoativas de carne assada em começo de putrefação. À noite, os ventres decompostos e putrefatos estouravam, e as lufadas mornas da aragem traziam o nauseante cheiro daquelas horríveis podridões...", como narrou uma testemunha.


Quem realmente somos

"Pouco ou quase nada se alterou na região onde um dia existiu Canudos. A seca é braba, a miséria é imensa, e muitos ainda prometem leite e cuscuz em abundância.

Cem anos depois, ainda é possível encontrar vestígios do maior conflito civil da história do Brasil. Marcas de um passado que persiste por ser ignorado.

Muito já se escreveu sobre o assunto, é verdade. Mas pouco se fez para que a população conhecesse e se identificasse com a tragédia vivida.

A Guerra de Canudos é um pedaço indisfarçável de nossa história e precisa ser levada ao mais inculto, ao canto mais afastado.

É assim que pensam, pelo menos, os que acreditam que somente dessa forma será possível entender quem realmente somos."

Cláudio Marques, no jornal "Coisas de cinema".


DUAS VEZES DESTRUÍDA - Canudos foi destruída em 1897 pelo exército brasileiro, depois de quase um ano de guerra intensiva contra seus habitantes.

Ao todo, 12 mil homens participaram da campanha militar, onde foram empregadas "sofisticadas" práticas de violência, já utilizadas na Guerra do Paraguai (1865-1870), contra a gente simples dos sertões. Ao término da campanha, as tropas militares estavam reduzidas a 5 mil soldados.

"Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a História, resistiu até ao esgotamento completo. Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu no dia 5, ao entardecer, quando caíram os seus últimos defensores, que todos morreram. Eram quatro, apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente 5 mil homens", narra Euclides da Cunha em "Os Sertões".

Como forma de apagar a memória daqueles que vivenciaram a experiência de terra livre, os prisioneiros adultos foram punidos com o crime da degola, e as crianças, vendidas para a prostituição.

Durante a ditadura militar (1964-1985), Canudos foi destruída pela segunda vez. No local, em 1969, foi construído o açude de Cocorobó. Com a cidade submersa, pretendiam eliminar todos os vestígios do mais cruel e sangrento episódio da história da República brasileira.


ESPERANÇA PARA OS DESERDADOS - Em sua breve existência, Canudos conseguiu aglutinar as aspirações materiais e espirituais dos povos desesperançados do Nordeste brasileiro.

Guardadas as devidas ressalvas, pode-se afirmar que constituiu uma sociedade camponesa pluriétnica e multirracial. Documentos históricos comprovam que negros e índios constituíram fortes agrupamentos da sociedade canudense.

Há registros de que pelo menos três etnias (Kaimbé, Kiriri e Tuxá) aderiram ao projeto canudense de comunidade. O responsável pelo atendimento à saúde era um índio tuxá, grande conhecedor das ervas e de suas propriedades terapêuticas.

Durante a resistência, o grande estrategista foi o "caboclo" Pajeú, que conseguiu derrotar várias expedições militares. No final, ao lado de muitos cadáveres foram encontrados arcos e flechas.

"De repente, parecia que todos os sertões queriam migrar para a nova Canaã. Eram pessoas de recursos que vendiam sua terra e seu gado, homens e mulheres paupérrimos, índios do aldeamento de Mirandela e Rodela, pretos libertados pela Lei Áurea, doentes mentais, aleijados e incapacitados", relata João Arruda, em "Canudos: messianismo e conflito social".


LEITE E CUSCUZ - Em 1896, Canudos era a segunda cidade da Bahia, com uma população aproximada de 30 mil pessoas vivendo sob a égide da propriedade coletiva.

Toda a área agricultável era trabalhada. Além da atividade agrícola em grande escala, os canudenses tinham vários curtumes de couro de bode. Considerados os melhores produtos da região, eram inclusive exportados para o mercado europeu, gerando receitas para o Estado.

A prosperidade do arraial era tanta, que entre as populações regionais corria a notícia de que o rio Vaza-Barris era de leite e suas margens, de cuscuz. Lá ninguém passava fome.

O esvaziamento das grandes fazendas provocou a crise da mão-de-obra rural e também acabou com as milícias particulares. Os jagunços migravam para Canudos, onde se convertiam em cidadãos.

"O impacto de Canudos era crescente", escreve João Arruda na obra citada. "Num espaço de poucos meses, num raio de mais de 100 quilômetros do arraial, as vilas e povoados pareciam ficar desertos, tal a migração maciça para o santo povoado."

O autor continua: "As fazendas vão se esvaziando. O sistema produtivo da região, quase todo baseado no trabalho semi-servil, ameaça entrar em colapso. As elites locais passam a entrar em pânico. Estava em jogo o próprio poder tradicional, poder este que se estruturava a partir de um conjunto de relações tácitas de dominação/subordinação, produto do monopólio da terra e da relativa abundância de mão-de-obra barata nos sertões."


AMEAÇA NACIONAL - Não resta dúvida alguma quanto às causas reais da destruição de Canudos. O modelo de sociedade ali experimentado foi transformado numa "ameaça nacional" pelas elites brasileiras.

Os jornais do Rio de Janeiro - então capital federal - e das principais cidades brasileiras desencadearam uma enorme campanha contra os canudenses. A alegação: tratava-se de um reduto anti-republicano, financiado pelos monarquistas.

É assim que conseguiram convencer a opinião pública da necessidade de intervenção do exército. Diziam que era preciso garantir a consolidação da recém-proclamada República (1889).

Jamais se conseguiu provar a existência de relações dos grupos monarquistas com Antônio Conselheiro e seus seguidores. Tudo não passou de uma farsa.

Entre os escombros da cidade destruída foram encontrados escritos de Antônio Conselheiro. Dentre esses, o discurso de despedida, feito nos últimos dias de sua vida:

"É chegado o momento de me despedir de vós. Que pena! Que sentimento tão vivo ocasiona esta despedida em minha alma. Adeus, povo! Adeus, aves! Adeus, árvores! Adeus, campos! Aceitai a minha despedida, que bem demonstra as gratas recordações que levo de vós, que jamais se apagarão da lembrança deste peregrino."

Considerando-se o cenário de destruição e as desgraças da guerra que naqueles momentos finais pairavam sobre o arraial de Belo Monte - como era chamado -, o adeus do Conselheiro revela quão bela e promissora fora Canudos. Um sentimento que era de todos que ali viviam.


CANUDOS SEMPRE - Por esse motivo, Canudos permanece viva na memória popular. Da Bahia ao Ceará - Estados que integraram o itinerário do peregrino -, as comunidades rurais conservam benditos, repentes e hinos evocativos de fatos envolvendo a história de Canudos.

O local para onde os guerrilheiros canudenses atraíam tropas do exército e as encurralavam é decantado em versos.

Um dos benditos ainda hoje cantados é dirigido ao mestre Conselheiro como um aviso, um alerta:
"Meu Antônio Conselheiro
que mora no pé da Serra
olhai o som das trombetas
e olhai o toque da caixa de guerra".

É como se fosse possível retroceder no tempo histórico, na tentativa de proteger o mestre e o povo dos horrores da guerra anunciada.

Canudos permanece viva na luta dos povos Kiriri, Kaimbé e Tuxá. Na luta dos remanescentes de quilombos. Na luta dos trabalhadores rurais sem terra. Em todas as lutas populares, no campo e na cidade.

Mais do que nunca, os referenciais de terra livre permanecem presentes, na aproximação do dia em em que se cumprirá a profecia: "E o sertão vai virar mar".

_______________________
Saulo Feitosa é secretário nacional
do Conselho Indigenista Missionário (Cimi).


A história na tela

O cineasta Sérgio Rezende está filmando A Guerra de Canudos, a maior produção já realizada no país. Só para a pesquisa e realização do roteiro foram gastos 80 mil reais e três anos de trabalho. A produção total está estimada em 6 milhões de reais.

O filme conta com um elenco de grandes estrelas, como Marieta Severo, José Wilker, Paulo Betti e Cláudia Abreu.

Não é um documentário. A guerra é mostrada através de um casal de sertanejos (Paulo Betti e Marieta Severo) e pela filha (Cláudia Abreu). Enquanto o casal segue Antônio Conselheiro (José Wilker), a filha decide fugir de Canudos. O lançamento do filme está previsto para o segundo semestre deste ano.