Filipinas

A bênção,
meu Cristo Negro!


A imagem do Cristo Negro de Quiapo, talhada no México no século 17, atrai uma multidão de filipinos para uma das maiores procissões religiosas do país. Vale tudo para agradecer e pedir bênçãos a Nosso Senhor.


Texto e fotos: África G. Gómez


Todo ano, o economista Ariel Ortilla tem um compromisso inadiável em sua agenda lotada. Não é nenhum encontro com empresários, conferência ou aula de economia na universidade. O compromisso é em Quiapo, um distrito de Manila, a capital das Filipinas. A origem é uma panata (promessa ou voto) pessoal para com o Nazareno Negro.

Ariel nunca fugiu desse compromisso, desde que o pai o levou pela primeira vez à procissão. Ele nasceu com um problema no coração, e os médicos garantiram que, se não fosse operado, não passaria dos 7 anos de idade.

A mãe, uma médica, se opôs à cirurgia. Era muito arriscado. O pai, homem de uma fé inquebrantável, levou então o filho à procissão do Nazareno.

"Acredito profundamente que o Nazareno me ajuda", confessa Ariel. "Se não fosse assim, eu não teria motivos para participar todo ano da procissão desde que o meu pai faleceu."


LUTA PARA CHEGAR PERTO - Ariel é apenas um dos milhares e milhares de devotos e seguidores de "Nuestro Padre Jesús Nazareno" que todo dia 9 de janeiro acompanham a imagem do Cristo sofredor pelas ruas e becos de Quiapo. Trata-se de uma das procissões mais concorridas, mais espetaculares e representativas de uma fé que os seguidores do Nazareno expressam ao seu estilo.

Com camisa branca, calças arregaçadas, pés descalços e uma toalha branca amarrada à cabeça, uma multidão incontável de homens cerca o andor que leva a imagem, com a intenção de realizar o ato supremo de glória: ajudar a carregar esse andor, ainda que por uns poucos segundos.

Enquanto isso, muitas outras pessoas se aproximam o mais que podem para passar uma toalha ou lenço no rosto de Nosso Senhor. É como se quisessem ajudar a diminuir o seu sofrimento. É, também, para receber a sua bênção.

Muitos outros, ainda, tentam se agarrar a uma das duas longas cordas presas ao andor.

Receber uma bênção especial do Cristo Negro vale qualquer esforço: o calor insuportável, a dificuldade para respirar, os empurrões e as cotoveladas.

Ariel explica que se sente "muito espiritual" toda vez que vê o andor sair ou entrar na igreja. Chega a chorar. Não tenta subir no andor para tocar o rosto do Cristo, porque ficaria pesado para os carregadores. "Sempre que consegui carregar o andor por uns segundos, me senti muito forte. Nunca senti nenhum tipo de fraqueza."


DIA INTEIRO DE FESTA - A procissão começa ao meio-dia e não termina antes das nove ou dez da noite. Nosso Senhor Jesus Nazareno visita as igrejas do distrito na companhia dos seus fiéis devotos. Ao cair da noite, a multidão acende velas. Entre as luzes das velas caminha também a Virgem, Mãe de Deus, num andor decorado com produtos do campo, flores e plantas.

Réplicas do "autêntico" Nazareno são carregadas por diferentes confrarias e irmandades. Centenas de estandartes de fundo vermelho-escuro e letras douradas ou negras dão um colorido especial à procissão. Aqui e ali aparecem outras imagens veneradas pelo povo, como a do Menino Jesus.

A procissão termina altas horas da noite, mas a festa continua, com muita música, danças, barraquinhas. Tudo em honra do Nazareno.

Os vizinhos se reencontram, familiares e amigos dão uma prova da simpatia e cordialidade do filipino. Vale dançar, rir e, inclusive, tomar uma ou outra cerveja a mais...


PRESSÁGIOS - Os ritos em honra ao Nazareno têm início no dia de Ano-Novo, com uma curta e bem organizada procissão pelas ruas de Quiapo. Dependendo da cor e do movimento da imagem, os devotos do Cristo Negro captam diferentes mensagens. Uma cor mais clara é bom sinal. Um semblante mais escuro, Deus me livre!

No dia da festa de Quiapo, os fiéis ficam de novo atentos. Não é nada bom quando o Cristo Negro demora muito para sair da igreja. Uma leve inclinação da imagem para o lado esquerdo, durante a procissão, indica que algo terrível pode acontecer.

"Não sei se existe gente que acredita nessas coisas", responde Ariel, quando interrogado sobre o assunto. Não está preocupado com isso. "O que eu sei é por que venho aqui, há mais de 25 anos: para agradecer ao Nazareno por me manter vivo."

Dar graças, pedir bênçãos... A festa em honra ao Cristo Negro é uma manifestação da fé popular. Ali se pode perceber muito bem como o filipino comum sente e vive a própria fé. É preciso agradecer pelo ano que passou. É preciso pedir bênção e proteção divinas para o ano que inicia.

O Cristo Negro merece mais do que umas horas ou uma manhã. Um dia inteiro na companhia dele. Vale a pena!


BATISTA DESALOJADO - Talhada e pintada por um artista asteca, a imagem do Cristo Negro chegou a Manila de barco, no século 17, diretamente de Acapulco. Um século depois foi parar em Quiapo, a pedido do então cardeal-arcebispo de Manila, Basílio Sancho.

O padroeiro da igreja de Quiapo - que desde 1988 virou basílica - era São João Batista. Pouco a pouco, porém, o Nazareno foi ganhando celebridade. Hoje, preside o altar, e o Batista pode ser visto numa das laterais da igreja.

Para a praça da basílica de Quiapo convergem ônibus e lotações do próprio distrito e de povoados vizinhos. Por ali passam diariamente milhares de veículos, sob o olhar atento dos santos Felipe, Simão, Estêvão, Santiago o Maior e Santiago o Menor.

As ruas, vielas e becos de Quiapo são cheias de sabor e de vida, a vida cotidiana do filipino comum. Nas feiras e mercados pode-se encontrar de tudo: calçados, velas, estampas, frutas, roupas, loteria... Na entrada da igreja, vendedores ambulantes oferecem todo tipo de objetos religiosos: cruzes, imagens, medalhas, santinhos, velas e também os clássicos colares de sampaguita, flor nacional muito usada para enfeitar e perfumar santos e imagens religiosas. Os vendedores mirins são os mais insistentes.

Também há lugar para a "medicina tradicional", com seus líquidos milagrosos e uma infinidade de amuletos. Pode-se comprar ali, bem na porta da igreja, tudo quanto é "produto mágico": ervas misteriosas, remédios para todos os males, pomadas, talismãs da sorte...


DEVOÇÃO E ALVOROÇO - É engano pensar que a devoção a Nosso Senhor Nazareno só se manifesta uma vez por ano. A igreja de Quiapo está sempre abarrotada, em qualquer hora de qualquer dia do ano. Às sextas-feiras, porque tem novena. Aos domingos, porque tem missa. No resto dos dias, porque os fiéis sempre encontram um tempinho para uma visita ao Nazareno.

Mulheres caminham de joelhos do fundo da igreja até o altar. Outros fazem fila para beijar os pés do Cristo Negro, que já estão brancos de tanto beijo e de tanto lenço esfregado sobre eles.

A igreja de Quiapo é um contínuo vaivém. Gente que se ajoelha, que se senta para rezar, meditar, pedir bênçãos ao Senhor. O incessante "tráfego" que há dentro do templo é um reflexo do tumulto e alvoroço do lado de fora.

Espiritualidade e vida cotidiana se misturam ao redor da igreja, de maneira muito normal e espontânea. O povo de Manila integra gestos e manifestações religiosas à vida de todo dia: jovens carregam escapulários pendurados ao pescoço, há gente que reza o rosário nas lotações, não se deve passar perto de uma igreja sem fazer genuflexão...

Quiapo e seus arredores são um retrato fiel do modo de ser do povo de Manila. Gente por tudo quanto é lugar. Transeuntes sem rumo fixo, como que perdidos. Estudantes, donas de casa, empregadas domésticas, aposentados...

Em Quiapo e sua igreja, todos se sentem acolhidos. Dentro e fora, devoção e tumulto, numa mistura dos mundos espiritual e material.

(África G. Gómez, p. 33)