Bíblia

"Das profundezas
   clamo a ti, Javé!"


Breve comentário do Salmo 130 (129).


Frei Carlos Mesters


1 Das profundezas eu clamo a ti, Javé: 
2 Senhor, ouve o meu grito! 
  Que teus ouvidos estejam atentos
  ao meu pedido por graça!
3 Javé, se levas em conta as culpas,
  quem poderá resistir?
4 Mas de ti vem o perdão,
  e assim infundes respeito.

5 Minha alma espera em Javé,
  espera em sua palavra.

6 Minha alma aguarda o Senhor,
  mais que os guardas pela aurora.
  Mais que os guardas pela aurora,
7 aguarde Israel a Javé.  
  Pois de Javé vem a graça
  e a redenção em abundância.
8 Ele vai redimir Israel 
  de todas as suas culpas.

O Salmo 130 tem duas partes. A primeira (versículos 1 a 4) traz uma prece em forma de grito que sai do fundo da alma do ser humano. Uma prece que revela uma nova experiência de Deus. Ele é graça e perdão.

A segunda parte (versículos 5 a 8) traz o resultado dessa prece, a saber, uma nova atitude de vida, que nasce da experiência de Deus. Essa nova atitude, aqui no salmo, se traduz em esperança e paz, tanto em nível pessoal como em nível de povo.


"Das profundezas eu clamo a ti, Javé! Senhor, ouve o meu grito!" . Não se vê ninguém. Apenas se ouve um grito. Uma voz suplicante que vem lá do fundo do poço. Uma voz firme, cuja prece nasce da certeza da fé em que Deus escuta o clamor do seu povo!

Esses primeiros versos exprimem a convicção de fé que acompanha os pobres ao longo de toda a história do povo de Deus. Essa convicção percorre a bíblia de ponta a ponta: sempre e a toda hora podemos nos dirigir a Deus com a certeza absoluta de que Ele nos ouve.

A ideologia dominante da época, porém, chegou a colocar em dúvida essa certeza central da fé. Ela ensinava que Deus manifesta a sua justiça recompensando os bons e castigando os maus. Segundo essa ideologia, o sofrimento deve ser visto como um castigo de Deus pelas nossas culpas. E é assim que se ensinava aos pobres: "Se vocês sofrem, é porque pecaram! Vocês são pecadores!".

Essa falsa imagem da divindade fazia com que o relacionamento com Deus fosse marcado pelo medo do castigo. Ela levava o povo a ter idéias erradas e mentirosas sobre a própria vida humana (cf. Jó 13,7).


O salmista - ou a salmista - não concorda com essa terrível doutrina, que marginaliza os pobres e os exclui como pecadores. Uma imagem de Deus que conta mentiras sobre a vida humana, declarando que pobre é pecador, não merece respeito e não vem de Deus!

O coração e a intuição de fé nos dizem que Deus não é assim. De dentro do salmista nasce uma outra imagem de Deus, que o leva a fazer este pedido, tão bonito, de graça e de perdão: "Que teus ouvidos estejam atentos ao meu pedido por graça! Javé, se levas em conta as culpas, quem poderá resistir? Mas de ti vem o perdão".

A nova imagem de Deus nasce no coração, a partir da experiência do perdão (cf. Jr 31,34). Ela faz o povo se relacionar com Deus por amor e respeitá-lo novamente: "E assim infundes respeito!" .


"Minha alma espera em Javé, espera em sua palavra". O novo sentimento que nasce no coração humano tem origem na esperança. O salmista espera de Deus uma palavra amiga, que o faz sentir-se acolhido e não rejeitado. Uma palavra libertadora, que dilata o coração por dentro.

"Minha alma aguarda o Senhor, mais que os guardas pela aurora". O guarda vive na escuridão da noite, mas sabe que a luz do dia vai chegar. Tão certo como o sol que se levanta de manhã é a vinda de Deus na vida do salmista.

A justiça de Deus é misericórdia que perdoa e acolhe. A redenção que Deus traz se define como perdão e graça. "De Ti vem o perdão! De Javé vem a graça e a redenção em abundância".


A nova experiência de Deus não faz a pessoa se fechar sobre si mesma. Pelo contrário, faz com que ela se abra para o povo e para a situação da nação. O que ela vive, o povo deve poder vivê-lo igualmente: "Minha alma aguarda o Senhor, mais que os guardas pela aurora. Mais que os guardas pela aurora, aguarde Israel a Javé".

E o salmo termina com o olhar voltado para o povo: "Ele, Javé, vai redimir Israel de todas as suas culpas". Não é a culpa que afasta Deus do povo. Pelo contrário. Ela atrai o perdão e a graça.

Este salmo é um marco na curva da estrada do povo da bíblia. Jesus veio comprovar e completar a intuição de fé que aqui transparece: "Vão aprender o que quer dizer 'Misericórdia é que eu quero, e não sacrifício'" (Mt 9,13).

E São Paulo canta a alegria desta nova descoberta do rosto de Deus: "Quem vai nos separar do amor de Cristo?!" (cf. Rm 8,35-39).


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Frei Carlos Mesters é biblista, autor de diversos livros. Há anos acompanha a caminhada das comunidades eclesiais do Brasil. Atualmente, trabalha no Instituto Bíblico de Angra dos Reis/RJ.