Quem sabe
faz a hora


Sociólogo e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro fala sobre o neoliberalismo e suas conseqüências para o Brasil e o mundo. A organização do povo pode mudar o rumo.

 Ivo Lesbaupin
Neoliberalismo é o nome que se dá a uma corrente de pensamento que reatualiza, no final do século 20, o velho liberalismo econômico do século 18.

A idéia mais importante pode ser resumida numa frase: tudo para o mercado, nada para o Estado - entendido este último como o conjunto de instituições governamentais de um país.

Explicando: segundo o neoliberalismo, a economia deve ser totalmente entregue ao mercado, devendo o Estado ficar fora da atividade econômica. Empresas públicas, por exemplo, devem ser privatizadas. Na onda de privatizações costumam entrar também a saúde e a previdência.

Isso significa o oposto do chamado Estado de Bem-Estar Social (Welfare State), que caracterizou a organização dos países desenvolvidos desde o fim da Segunda Guerra Mundial (1940-1945).

No Estado de Bem-Estar Social, o mercado é regulado pelo Estado. Segundo essa proposta, cabe ao Estado a tarefa de intervir na economia, buscando distribuir melhor a renda, investindo fortemente na área social através de serviços públicos nos campos da saúde, educação, transporte, etc., e procurando também garantir o acesso à moradia e ao emprego.

Na declaração "Vida com dignididade", divulgada durante a 35ª Assembléia Geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), em abril deste ano, os bispos alertam para a exclusão e a violência que perpassam a atual organização social brasileira.

Os bispos afirmam que "o quadro crônico de exclusão e de miséria em que tentam sobreviver milhões de brasileiros, especialmente crianças, é hoje conseqüência direta da ordem econômica neoliberal que sobrepõe o lucro e o capital à pessoa humana, ao trabalho e ao bem comum".

Nossa consciência ética e cristã - concluem - não pode aceitar os rumos dados pela economia neoliberal ao processo conhecido como globalização.

"A caminho de um novo milênio, reafirmamos a importância e a urgência de iniciativas e programas que resgatem a imensa dívida social de nosso país para com a maioria de nosso povo, visando à conquista da cidadania e à construção da democracia."

Como noticiado fartamente pela imprensa, a análise de conjuntura brasileira apresentada durante a assembléia dos bispos irritou o governo. É que Fernando Henrique Cardoso não gosta de ser tachado de neoliberal.

O texto da análise trazia a assinatura dos sociólogos Ivo Lesbaupin e Antônio de Abreu, ambos do Ibrades, um organismo ligado à CNBB. Reproduzimos uma entrevista concedida por Lasbaupin ao jornal católico "Mundo Jovem", de Porto Alegre/RS.


SF - Como se dá a implantação dessa coisa chamada neoliberalismo?

Ivo Lesbaupin - O Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial e o Grupo 7 (ou G-7, o grupo dos sete países mais ricos do mundo) estimulam e mesmo impõem as políticas neoliberais em nível internacional, pressionando os países para que adotem a redução do Estado ao mínimo.

O primeiro recurso para reduzir o Estado é se desfazer de suas empresas (as estatais, como a Vale do Rio Doce), demitir funcionários públicos e diminuir o investimento em políticas sociais - saúde, educação, transporte, emprego, moradia.

A política econômica dessas instituições e desses países tende a suprimir os obstáculos à circulação dos capitais, abrindo a economia dos países à concorrência de todos: é o chamado processo de globalização da economia, que pareceria significar que agora todos estão em pé de igualdade.

Ora, o que ocorre é exatamente o contrário: a economia se restringe cada vez mais aos ricos, às regiões ricas, aos ricos de cada país. Regiões inteiras ficam excluídas, países são marginalizados e, dentro de cada país, camadas inteiras da população são excluídas.


Que relação existe entre desemprego e neoliberalismo?

- Valoriza-se cada vez mais as empresas, a concorrência entre elas, a competitividade. As empresas enxugam seus quadros, de modo a diminuir os custo com pessoal. Aparecem os contratos em tempo parcial, temporários, a domicílio (é a "flexibilização" dos contratos de trabalho), para atender às necessidades das empresas que, assim, poderão encontrar no mercado de trabalho os trabalhadores de que precisam, na hora em que precisam.

As empresas passam a ter todos os direitos, enquanto os trabalhadores perdem, pouco a pouco, vários dos direitos que tinham (é a "desregulamentação"). Aumenta o desemprego, aumenta o emprego informal - sem garantias de saúde, férias, etc. Aumenta, pois, a exclusão social.

Isso está acontecendo no Brasil, no México, na Venezuela..., mas também na Inglaterra, na França, nos Estados Unidos. É isso que os neoliberais e seus defensores chamam de "modernidade".

A nova exclusão social vem se somar à nossa velha exclusão - a miséria, a pobreza dos baixos salários, dos serviços públicos mal servidos e insuficientes. A nova exclusão é a daqueles que, embora dispostos e capazes de trabalhar, não encontram emprego ou só encontram emprego precário.


Como o neoliberalismo se manifesta no dia-a-dia das pessoas?

- Os pais de famílias pobres já não conseguem enxergar um futuro melhor para os filhos, e estes, muitas vezes, já não têm esperança de uma vida melhor. Essa mistura de situação de pobreza e falta de perspectivas aumenta a probabilidade de alternativas à margem da lei, no crime, na violência. Não é sem razão que a violência cresce nas cidades grandes, tanto aqui como nos Estados Unidos.

Mais grave do que a própria política neoliberal, porém, é a cultura, a ideologia neoliberal, segundo a qual o rico é aquele que é competente, aquele que venceu a concorrência, enquanto o pobre é o incompetente, o incapaz, o que não deu certo porque não tem mesmo condições da dar certo.

Nós sabíamos que os pobres e miseráveis não são assim porque não trabalham ou trabalham pouco, mas porque ganham um salário de fome. Agora, procuram tirar a responsabilidade das elites dominantes, dos exploradores do trabalho da maioria, afirmando que a culpa não é da exploração, do baixo salário. A culpa, segundo o neoliberalismo, é do próprio pobre, do próprio miserável.


De que modo essa ideologia se impõe?

- Os neoliberais difundem facilmente suas idéias porque dispõem de um amplo apoio dos meios de comunicação. Tem havido uma quase unanimidade da mídia em defender os pontos de vista do governo e de seus aliados. Ao mesmo tempo, o que se opõe ao governo tem sido literalmente censurado pela imprensa. Manifestos de juristas, declarações de magistrados, da CNBB, manifestações públicas contrárias a atos governamentais ou não são publicadas ou o são em espaço reduzido. Nunca saem na íntegra.

Uma das idéias mais difundidas pelos neoliberais é a de que tudo isso é inevitável: a globalização, o desemprego, a exclusão. É fruto da economia internacional. Todo mundo está praticando as políticas neoliberais - eles dizem.


E não é verdade?

- Nada mais falso. Não existe um só caminho, determinado de uma vez por todas por uma economia internacional. Não existe determinismo na história, ao qual o homem deva se curvar.

O que existe, sim, são políticas decididas por governos que se direcionam no sentido do neoliberalismo. Evidência disso foi o empenho ativo do governo atual pela venda da Companhia Vale do Rio Doce. Isso não foi imposto por um determinismo de fora, foi decidido por este governo. O Chile, por exemplo, decidiu não vender sua estatal de minério. E o Japão, modelo de país capitalista avançado, nunca foi neoliberal.


Que alternativas existem?

- O neoliberalismo, mais uma vez, não é fruto de um determinismo. É fruto da decisão de certos governos, de instituições internacionais, de bancos e empresas multinacionais.

Isso significa que esse rumo poderá ser alterado, poderá sofrer interrupções, poderá ser obrigado a mudar para outra direção, se os movimentos sociais, os trabalhadores, os estudantes, os aposentados, em suma, a sociedade civil, se levantar para defender seus direitos, para defender a liberdade de opinião e de expressão, o direito ao trabalho, a uma justa remuneração, o direito à vida, enfim.

Isso já está acontecendo em vários países. A Inglaterra acaba de derrotar o neoliberalismo pelo voto. Na França, Alemanha, Coréia do Sul, os trabalhadores fizeram greves e manifestações e têm obrigado seus governos a recuar em decisões que lhes são prejudiciais.

Entre nós, vários movimentos estão se organizando em defesa do patrimônio público, em defesa da reforma agrária, de um salário digno, e assim por diante. Essa capacidade de resistência se expressa muito bem no Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra e sua recente marcha a Brasília.


O que mais se pode fazer?

- É preciso manter o espírito crítico, não acreditar piamente no que a mídia divulga, pesquisar, procurar saber, estar atento ao que acontece em outros países e também no nosso. Estar atento, por exemplo, à concentração cada vez maior da riqueza nas mãos de poucos, enquanto o salário continua baixo e o desemprego aumenta.

É preciso resistir a essa avalanche de unanimidades. O ideal da humanidade não é a lei da selva - onde só sobrevivem os mais fortes -, pois não somos animais selvagens.

O ideal que buscamos, a sociedade que queremos, não é essa dividida em dois, que buscam nos impingir como inevitável - uma pequena parte incluída e uma grande massa de excluídos.

A sociedade que queremos será construída por homens e mulheres - não pelo destino -, em solidariedade. Nela haverá liberdade e também justiça, democracia e também igualdade.

Somente nessa sociedade os direitos humanos serão plenamente respeitados.