América Latina - Japão

Viagem de muitas interrogações

Missionário espanhol há 28 anos no Japão vem à América Latina para conhecer melhor as raízes dos imigrantes com quem trabalha do País do Sol Nascente.


Cirilo Orradre


Entre 1995 e 1996, passei um período na América Latina, onde reencontrei muitos amigos e tive a oportunidade de fazer experiências significativas numa Igreja local bem diferente daquela em que trabalho.

Sempre tive um grande interesse e desejo de conhecer a Igreja latino-americana, desde os tempos em que freqüentava o seminário para as missões, na Espanha.

A presença amiga, na América Latina, de tantos companheiros com quem vivi os anos de minha juventude na Espanha me oferecia uma ocasião privilegiada para me aproximar dessa Igreja a partir da base.

Tinha em mente, quando retornasse à Ásia, estar em melhores condições de ajudar a tantos brasileiros e peruanos que trabalham no Japão. Achava importante conhecer de perto suas raízes.

Desde o início estava claro para mim que se tratava de um ano sabático, e não de uma viagem turística. Escolhi, portanto, os países que poderiam melhor responder às minhas expectativas.

A viagem durou oito meses. Confesso que tive o tempo todo a tentação de querer comparar tudo o que via e experimentava com a realidade japonesa.

Continuava a me perguntar: será possível fazer a mesma coisa no Japão? Por que, lá, isso não dá certo? O que falta aos cristãos japoneses, ou o que eles têm em demasia, para não serem capazes de viver dessa maneira?

Os amigos terão percebido em meu modo de falar uma estranha mistura de espanhol com japonês, difícil de definir. Não é por menos. Depois de ter vivido 26 anos na Espanha e 28 no Japão, eu mesmo já nem sei dizer com certeza quem sou.


NICARÁGUA - No dia 19 de agosto de 1995, colocava pela primeira vez os pés na Nicarágua. Já no caminho que leva do aeroporto ao seminário nacional me dei conta de estar num país devastado por uma guerra que durou dez anos, tendo provocado a morte de 50 mil pessoas numa população de 5 milhões de habitantes.

Em Manágua, para o transporte coletivo, eram utilizados os mesmos ônibus amarelos que trinta anos antes eu tinha visto carregar estudantes na Califórnia. Ainda conservavam a escrita em inglês, School bus, ao lado de outras palavras que me chamaram a atenção: "Deus é amor", "Jesus Cristo, o único Salvador"... Dizia com meus botões: uma coisa dessas seria simplesmente impossível no Japão.

Em Jalapa, perto da fronteira com Honduras, onde passei vinte dias, vi algo que me faz refletir até hoje: dois colegas de meu instituto trabalham numa paróquia que tem sessenta comunidades espalhadas pelas montanhas, de difícil acesso. Ali, uma vez por mês, 85 ministros da Palavra dedicam um fim de semana inteiro ao estudo e à reflexão.

Os "ministros" são o braço direito do sacerdote, que visita as comunidades apenas uma ou duas vezes por ano. Mesmo na ausência do padre, porém, domingo é dia de se encontrar para rezar. Celebram-se casamentos e funerais, preparam-se crianças para a primeira comunhão... Tudo graças aos leigos. Muitos deles não sabem nem ler e escrever.

Significa que onde existe fé e o desejo de trabalhar pelo Reino é possível superar qualquer tipo de obstáculo?

Em muitas comunidades japonesas, é grande o número de pessoas com títulos universitários, enquanto os analfabetos não existem. Mas onde estão os ministros da Palavra?


JAPÃO - No Oeste de Osaka, numa região com meio milhão de habitantes, somos apenas dois sacerdotes, com duas paróquias e pouco mais de mil católicos. Não deveriam ser todos ministros da Palavra?

Será que falta a eles uma formação humana adequada para o desempenho desse serviço? Ou talvez o que falta é fé e desejo de trabalhar pelo Reino? Ou será que é porque nós, sacerdotes, sempre fizemos e continuamos a fazer tudo sozinhos? Ou, ainda, é porque os fiéis andam preocupados demais com o amanhã, sem tempo para si mesmos e muito menos para o Reino?

O que está acontecendo com nossa Igreja japonesa, que mantém enterrado um talento tão valioso? "Porque a todo aquele que tem será dado e terá em abundância, mas daquele que não tem, até o que tem será tirado" (Mt 25,29).

O fato de que os jovens não participam da vida de nossas Igrejas significa que essas palavras de Cristo estão se realizando?


PERU - Da Nicarágua, onde chove todo dia, viajei para Lima, onde nunca chove. Uma diferença enorme. Deus deu ao Peru uma natureza muito hostil, pelo menos no que se refere à parte que vi - o deserto e a sierra.

O bispo de Huacho, que passou uma semana no Japão e esteve em minha casa, me disse: "Os peruanos que trabalham no Japão devem encontrar muitas dificuldades. Deve ser muito duro para eles. Mas, pelo menos, têm uma consolação: podem contemplar uma natureza maravilhosa, com paisagens de rara beleza".

Calcula-se que Lima, com 7 milhões de habitantes, tenha 1 milhão de vendedores ambulantes nas ruas. Não imagino quem são os consumidores, mas o fato é que em Lima se vende de tudo. Dizem que 80% das mercadorias são roubadas.

Não vou conseguir esquecer jamais as crianças de 8, 10 anos, pedindo esmola pelas calçadas. Observei, mas não vi ninguém dando um trocado para elas.

Quanto deve trabalhar a fantasia para encher o estômago! É claro que essas crianças deveriam estar na escola, e não na rua. Mas, e os pais delas? Será que conhecem seus pais? O que pensará uma criança dessas, ao ver que ninguém está nem um pouco interessado em saber se ela tem o que comer?

Muitas vezes escutei dos peruanos que trabalham no Japão: "O Peru é um pobre sentado em cima de uma mina de ouro". Os pobres são bem visíveis. As jazidas de ouro, menos.


JAPÃO - Da janela de minha casa, observo um grupo de alunos da escola católica de Hiraoka. Brincam ao ar livre. Chegam as mães para buscá-los. Sorrisos e reverências.

Os pequenos, apertando as mãos das mães, contam para elas o que aconteceu durante o dia. Uniformes limpos, mochilas nas costas, carinhas cheias de saúde - será que vão conseguir saber um dia que existem outras crianças de sua idade que passam fome?

Qual é nosso papel aqui, nesta sociedade disposta a lutar com todos os meios para que a renda média per capita, de 21 mil dólares, não diminua?

Que linguagem iremos utilizar para fazer essa gente entender que aqueles que mendigam sobre as calçadas do Terceiro Mundo são nossos irmãos?


BRASIL - No dia 17 de janeiro de 1996, disse adeus ao Peru e voei para o Brasil, um país imenso, com uma língua diversa de meu espanhol. Espontaneamente surge uma pergunta, ao ver um país tão rico e cheio de possibilidades: por que os brasileiros vão trabalhar no Japão? Somam 8 mil os dekaseguis (brasileiros de descendência japonesa) na diocese de Osaka e 250 mil em todo o Japão.

Uma outra coisa me marcou. Em plena segunda-feira, a igreja católica da paróquia de São Pedro de Mauá estava cheia de carismáticos, cantando, agradecendo a Deus, invocando curas. A igreja fica sempre de portas abertas para eles, ainda que possa existir algum problema, porque a opção oficial da Igreja católica no Brasil é por uma linha de maior compromisso com o povo.

A quinhentos metros da igreja católica, a Igreja Universal do Reino de Deus realiza um rito para expulsar o demônio. Trezentos metros mais adiante está a Igreja Deus é Amor, com seus alto-falantes transmitindo a todo volume o sermão do pastor. Tudo isso ao mesmo tempo, na mesma noite.

O rápido aumento do número de fiéis desses novos movimentos religiosos está preocupando a Igreja católica da América Latina.

"O povo fica doente e não tem dinheiro para comprar remédio", explicou o cardeal-arcebispo de São Paulo, Paulo Evaristo Arns. Por isso, busca milagres. Busca uma solução para os inúmeros problemas que enfrenta.

Quando existirem condições de vida digna para todos - pensa o cardeal -, isso já não terá mais razão de existir. Nem os brasileiros terão que vir trabalhar no Japão, penso eu.


JAPÃO - Eu me pergunto: com que cara devemos receber esses imigrantes, a maioria católicos, em nossas comunidades aqui no Japão? Como e quem deve favorecer essas "condições de vida digna"? Os responsáveis principais por esse problema não são os países ricos, que continuam a comprar os produtos dos países pobres a preço de banana?

Lembro o que me contou um lavrador: o preço do café vendido aos Estados Unidos caiu 30% nos últimos cinco anos, enquanto o preço de um trator importado do Japão subiu 40% no mesmo período. "Quem consegue viver desse jeito?", ele me perguntou.

E nós? Seremos um dia capazes, em nossas reuniões, de deixar de lado pequenas questões litúrgicas para ver o que se pode dizer e fazer no sentido de resolver problemas de vida e morte para tantos irmãos?

O ano sabático me deixou esta e muitas outras interrogações. Em meu coração, sinto enorme gratidão pelos companheiros que lutam por uma sociedade mais digna. Rezo por eles.


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Cirilo Orradre, missionário do Instituto Espanhol de Missões Estrangeiras (Ieme), é responsável pela paróquia de Hiraoka, na diocese japonesa de Osaka, onde acompanha também a comunidade de brasileiros. O texto foi publicado originalmente por "Misiones extranjeras".