Chiapas, México

Solidariedade
custa caro

Diocese de San Cristóbal de Las Casas denuncia perseguição. E alerta: a solução da crise mexicana passa por uma solução justa para o conflito de Chiapas.



"Sim, estamos sendo perseguidos!" Poderia abrir com estas palavras a nota divulgada no final de junho pela diocese mexicana de San Cristóbal de Las Casas, em Chiapas, dirigida "aos irmãos de outras Igrejas cristãs, à opinião pública e aos meios de comunicação".

Os setores privilegiados de Chiapas - junto com políticos do partido oficial (o PRI), o exército e a polícia - declararam guerra à diocese. Acusam a Igreja de ser responsável pelos conflitos na região.

As agressões contra o trabalho da Igreja "vão contra o processo de paz e se opõem às legítimas esperanças de uma vida digna e justa para os mais pobres", afirmam os bispos Samuel Ruiz e seu auxiliar, Raul Vera Lopez, que assinam a nota junto com os responsáveis pelos principais organismos diocesanos.


Projeto de morte - A diocese convoca a sociedade civil a se opor à campanha de silenciamento do que ocorre em Chiapas, difundindo informações verdadeiras e denunciando "o projeto de morte daqueles que a todo custo querem manter os próprios privilégios".

A Igreja cobra das autoridades federais e estaduais uma mudança de sua atual política, de forma a buscar uma solução para as "verdadeiras causas" dos conflitos que vive o México.

"Da nossa parte, estamos dispostos a articular nossas ações com todas as instâncias que buscam defender a dignidade da pessoa e construir uma sociedade de irmãos, onde todos nos sentemos à mesma mesa para partilhar o pão da verdade, do amor e da justiça, presidida por nosso irmão maior, Jesus Cristo", diz ainda a nota, em seu final.

A seguir, a íntegra das duas primeiras partes do grito de socorro lançado pela Igreja católica de San Cristóbal de Las Casas.


FATOS


Nossa diocese de San Cristóbal de Las Casas, após a visita do presidente da Conferência Episcopal Mexicana e da Comissão Episcopal para a Paz no Estado de Chiapas, está sendo vítima de uma nova onda de ataques a seu trabalho pastoral.

Os ataques não são novos. O que surpreende é a insistência em acusações nitidamente falsas, como as que são dirigidas contra nosso bispo, dom Samuel Ruiz García. Ele está sendo acusado de ser o responsável pela violência e instabilidade política e social no estado, assim como de distribuir armas e de dirigir a insurreição.

Acusações semelhantes vem sendo feitas em diversos meios de comunicação contra nosso bispo-auxiliar, dom Raul Vera Lopez, contra os agentes pastorais que exercemos a ação evangelizadora em paróquias e missões, contra catequistas, pré-diáconos e diáconos.

Todos temos sido expostos a falsas acusações, agressões, ameaças de morte e processos jurídicos injustos, incluindo a privação ilegal da liberdade, como foi o caso de dois jesuítas e dois catequistas de Palenque, no dia 7 de março passado.

Preocupa-nos profundamente que várias organizações não-governamentais, respeitadas por seu trabalho em favor da paz e a serviço aos pobres, também estejam sendo hostilizadas e sofram acusações caluniosas.

Frente a esse quadro de perseguição, queremos expor brevemente os múltiplos casos de agressão a que temos sido submetidos desde janeiro de 1994.


Na chamada zona de conflito (Ocosingo, Margaritas e Altamirano), sofremos revistas de casas paroquias, perseguição e ameaças a agentes de pastoral, incluindo nesse caso o hospital de Altamirano, e isso se extendeu também às visitas que fazemos às comunidades. Soldados do Exército perseguiam, revistavam, filmavam e gravavam as celebrações.

Em muitas sedes municipais, supostas "marchas pela paz", encabeçadas por autoridades, dirigentes do partido oficial e fazendeiros, se converteram em agressões verbais e ameaças contra o bispo e seus agentes de pastoral.

Outro fato lamentável foi a tentativa de estupro de uma religiosa.

No início do conflito, a diocese sofreu campanhas de desprestígio pelos meios de comunicação de massa - imprensa, rádio e televisão. Foram divulgados falsos testemunhos de pessoas que, chorando, acusavam o bispo, sacerdotes, missionários e catequistas de promoverem a violência.

Em um momento muito delicado dessa campanha, grupos ligados ao PRI em San Cristóbal - autodenominados "autênticos coletos" - organizaram um ataque contra a residência do bispo, sede da Cúria diocesana.

A perseguição chegou a tal ponto que missionários estrangeiros vivem sob constante ameaça de expulsão. As autoridades os pressionam, vigiando todos os seus movimentos, citando-os com freqüência no Departamento de Migração, privando-os de documentos e atrasando vistos.

Isso não tem se resumido a ameaças. Há casos concretos de deportação injusta e negação de autorização para regressar à diocese.

Atualmente, já são sete os sacerdotes (12% do total na diocese) exilados arbitrariamente. O caso mais recente é o do sacerdote escocês Henry McLaughlim. Alguns foram expulsos sob a acusação de exercerem atividades não condizentes com seu ministério, e, no caso do padre Henry, por celebrar a missa sem permissão do governo. O verdadeiro delito cometido por eles é servir aos pobres, como Cristo o fez.


A zona norte - Tila, Sabanilla, Tumbalá, Palenque, Salto de Água, Bachajón e Chilón - virou laboratório da Guerra de Baixa Intensidade. Templos e casas paroquiais têm sido alvo de atentados com bombas Molotov. São criados conflitos no interior das comunidades e entre organizações populares. Há a presença intimidadora de soldados e policiais, sem contar as agressões de grupos paramilitares, chamem-se "Chinchulines" ou "Paz y Justicia", cujos delitos continuam impunes. Há rumores e ameaças.

A idéia é fazer com que os conflitos políticos se transformem em enfrentamentos religiosos. Com esse objetivo, pretende-se associar os católicos ao zapatismo ou ao PRD, colocando-os em confronto com os irmãos de outras confissões religiosas, que são identificados com as "guardas brancas" do PRI.

Estas, as "guardas brancas", de uma maneira irracional, agridem e atacam católicos, expulsando-os de suas comunidades. Fecham, queimam e destroem capelas, imagens e qualquer símbolo religioso, chegando a profanar o Santíssimo Sacramento.

Os refugiados são testemunhas de como os paramilitares, em suas ações, têm contado com a proteção da Segurança Pública ou do Exército. Esses grupos armados ocuparam capelas e edifícios pertencentes à Igreja católica, e, em alguns casos, os mantêm sob seu poder.

Catequistas foram julgados sumariamente, torturados e encarcerados por se recusar a assinar documentos que acusavam o bispo e seus sacerdotes de passar armas para os rebeldes. Alguns foram assassinados. Quem se nega a fazer parte dos grupos paramilitares é obrigado a pagar multas de até 2 mil pesos, tendo que viver sob constantes ameaças.

No caso de qualquer tentativa de denúncia por parte da sociedade civil ou de reação contra os ataques nas comunidades, logo acusam os bispos e sacerdotes como os responsáveis.

Esse tipo de acusações tem sido feito também por oficiais do Exército. Inclusive, chegaram a levantar a calúnia de que abençoamos as armas dos zapatistas.

Os processos abertos na Justiça pela diocese contra essas agressões foram inúteis. Alguns agentes de pastoral tiveram que solicitar amparo judicial, mas continuam sendo irresponsavelmente acusados de diversos delitos. Informações veiculadas recentemente por alguns jornalistas da imprensa local fazem supor que nossos telefones estejam sendo grampeados, como forma de espionagem de nossas atividades.


Falamos até aqui de alguns dos ataques diretos à diocese de San Cristóbal de Las Casas. Seria impossível mencionar todos os casos. Longe de nós esquecer os sofrimentos de tantos irmãos e irmãs que, por lutarem por uma vida digna e justa e serem fiéis à sua fé católica, vivem sob constante ameaça, expostos a todo tipo de agressões.

Não são poucos os irmãos evangélicos que passam por situações semelhantes, e também nos sentimos próximos a eles.

Alguns dos ataques não vêm diretamente de funcionários do governo. Existem outros atores. Mas a impunidade de que estes gozam, apesar das denúncias feitas, torna as autoridades responsáveis e cúmplices.

Tudo isso gerou um clima de linchamento que põe em perigo contínuo nossas vidas e coloca obstáculos a nosso trabalho de evangelização, reconciliação e promoção humana. Por isso, achamos que essa situação constitui uma verdadeira perseguição à Igreja, não só à nossa diocese mas à Igreja católica no México.


INTERPRETAÇÃO


A leitura desses fatos no contexto da atuação do governo em relação à diocese, nos últimos anos, nos autoriza a dizer o seguinte:

Lamentavelmente, a lógica de atuação das autoridades civis e militares demonstra que não se está procurando uma saída política, como se prega. Pelo contrário, prosseguem as ações de força, ou estas ficam impunes. Isso propicia o aparecimento de uma situação que poderia ser considerada irreversível, legitimando dessa forma uma solução militar.


Concluindo, acreditamos que o que se pretende é desacreditar uma instância que pode significar um freio a uma ação de massacre e genocídio contra o povo chiapaneco.

Estamos convencidos de que a superação da crise generalizada que vive atualmente nosso país passa pela solução adequada da crise em Chiapas. Sem uma solução real para Chiapas, nunca haverá uma solução real para o México.

A esta diocese que quer servir ao povo e continuar defendendo os direitos dos pobres coube a tarefa de partilhar com eles sua sorte.


Para entender os conflitos

Tudo parecia correr bem para o México na data escolhida para seu ingresso no Nafta, o Tratado de Livre-Comércio com os Estados Unidos e o Canadá: 1º de janeiro de 1994.
Nessa mesma data, porém, aconteceu o que o governo menos desejava: o levantamento indígena no estado de Chiapas, o mais pobre do país.
Não se pode dizer que Salinas, o então presidente, não esperasse pela revolta. Sinais havia, mas o México oficial, embalado pelo sonho do Primeiro Mundo, resolveu não levar a sério.
As imagens dos rebeldes do Exército Zapatista de Libertação Nacional percorreram o mundo. Cansados de séculos de opressão e desprezo, os indígenas pegaram em armas para exigir mudanças, não só para si mas para o país.
Foi o primeiro grande choque para o PRI, o Partido Revolucionário Institucional, no controle do governo e das principais instituições do país há quase sete décadas - é o único partido do mundo que ficou tanto tempo no poder neste século.
O outro grande choque ocorreria em dezembro do mesmo ano de 1994: a derrocada da economia, afundando o México no caos e assustando os países que optaram pelo modelo neoliberal, incluindo o Brasil (o famoso "efeito tequila").
Assim que estourou a rebelião, as tropas do exército mexicano invadiram imediatamente a região de Chiapas, perseguindo os rebeldes e, no processo, também a população civil.
Sobrou também para a Igreja católica em San Cristóbal de Las Casas, a diocese do bispo Samuel Ruiz, conhecida por seu trabalho pastoral de cunho popular.
Fazendeiros, políticos do PRI, soldados e policiais se articulam na caça às bruxas. Oficialmente, fala-se em diálogo de paz. Na prática, segue valendo a lei do fuzil.
Incapaz de reconhecer as verdadeiras causas do conflito - a marginalização, a opressão e a miséria -, o governo tem tentado, até agora sem sucesso, derrotar a resistência indígena na base da força.
O domínio absoluto do PRI sobre um país em frangalhos - com altas taxas de desemprego e uma economia em petição de miséria - começou a ser quebrado no início de julho passado, nas eleições para o Congresso e o governo do Distrito Federal.
A vitória avassaladora do oposicionista Cauhtémoc Cárdenas, do PRD (Partido da Revolução Democrática), eleito governador do Distrito Federal, e a perda da maioria na Câmara Federal representaram o mais duro golpe político na história do PRI, um partido autoritário e corrupto.
"Assistimos a uma rebelião desarmada", pelo voto, disse o cientista Lorenzo Meyer, do Colégio do México, em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo. Nas primeiras eleições livres do século, o 7 de julho, segundo os mais otimistas, ficará para a história como o dia do fim do regime do PRI.