Soldados-mirins

Brincando de matar

Exércitos e grupos guerrilheiros de vários países utilizam crianças na linha de frente dos combates.


PAULO PEREIRA LIMA

Embora apenas com 14 anos, Samuel Bull pode ser considerado veterano de guerra. Aos 9, foi recrutado pela Frente Patriótica Nacional (FPN), um dos grupos rebeldes da Libéria, país da costa oeste africana.

Durante três anos, viveu embrenhado na selva, participando de duros combates, lado a lado com soldados adultos. Por sua coragem e facilidade em manejar um fuzil AK-47, chegou a ser promovido a capitão. Ele lembra os "inimigos" que matou e diz que "gostava de ouvir o som das armas, pois parecia música".

Há menos de dois anos, depois de sobreviver a um pesado ataque de forças inimigas, Samuel passou a sentir um medo terrível da guerra. Foi então que aproveitou a visita de um grupo de observadores das Nações Unidas para depor as armas e mudar de vida.


Mais de 250 mil


Quantas são as crianças que, como Samuel, são transformadas em autênticos guerreiros nos quatro cantos do mundo?

Ninguém sabe ao certo, mas são milhares. Poderiam chegar a 250 mil, segundo cálculos de organizações humanitárias de peso internacional.

As estimativas indicam que esse número cresceu nos últimos anos. Em 1988, os soldados-mirins somavam 200 mil em todo o mundo.

Em seu relatório sobre a situação mundial da infância em 1996, o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) chamou a atenção dos governos para o que constitui "um dos abusos em aumento e o mais deplorável desses últimos anos".

No auge da guerra civil na Libéria, pelo menos 6 mil menores estavam metidos nos combates. A FPN contava com um regimento especial para crianças e jovens de 6 a 20 anos, o Small Boys Unit, onde o capitão Samuel desenvolveu melhor que muitos companheiros a arte de matar.


Armas fáceis de usar


A Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Crianças proíbe o recrutamento de menores de 15 anos para o combate. Mas a brutalidade humana costuma passar facilmente por cima de leis internacionais, sobretudo em tempos de guerra.

Os especialistas explicam que uma das causas para o fenômeno está na proliferação de armas cada vez mais leves e fáceis de usar. Com poucas lições, um menino liberiano, colombiano ou cambojano com menos de 10 anos adquire a prática de montar e desmontar um AK-47, de fabricação russa, ou um M-16, estadunidense.

São armas que custam relativamente pouco e fáceis de ser encontradas no lucrativo mercado da guerra. Só para se ter uma idéia, após a guerra civil moçambicana havia cerca de 6 milhões de AK-47 no país - em média, um fuzil e qualquer coisa para cada três habitantes.

A maior parte dos soldados-mirins - tanto dos exércitos regulares quanto dos grupos guerrilheiros - não pega em armas porque quer.

Tirados os que são forçados pela violência a tomar essa decisão, há também os que combatem para vingar a morte de pais ou parentes ou para proteger as suas famílias. Guerra é guerra.

Há ainda o fato de que, para muitas dessas crianças, a possibilidade de fazer parte de um "grupo poderoso" também funciona como um forte apelo.


Lei da sobrevivência


A situação de pobreza e miséria também joga um peso importante. Para uma criança pobre, entrar para o serviço militar pode significar uma forma de subir na vida. Recebe um uniforme limpo com um distintivo e uma arma - símbolos de poder e posição social - e, em muitos casos pela primeira vez na vida, poderá contar com três refeições por dia, além de cuidados médicos.

Há notícias de que em Mianmá (antiga Birmânia), no sudeste asiático, pais costumam oferecer os filhos às tropas da União Nacional Karen (UNK), uma das etnias em luta pela independência do seu território, em troca do que comer e vestir. Em 1990, novecentos em cada 5 mil combatentes da UNK eram crianças com menos de 15 anos.

Não são apenas meninos. No cômputo geral, pelo menos dez em cada cem soldados-mirins são meninas, em geral seqüestradas para prestar "serviços sexuais" nos batalhões ou para atuar diretamente em ações militares.


Casos mais conhecidos


Não é nada pequena a lista dos países onde meninos e meninas são atraídos ou forçados a entrar para a guerra. Além de na Libéria e em Mianmá, a trágica experiência se repete no Sudão, Ruanda, Serra Leoa, Camboja, Colômbia, Peru, Líbano e Sri Lanka. São os casos mais divulgados.

Soldados-mirins foram também presença constante nas guerras civis da Nicarágua, El Salvador e Guatemala na década de 80.

Em Moçambique, durante os dezesseis anos que durou a guerra após a independência do país (1975), era fácil ver crianças em uniformes militares, tanto da Frelimo, no poder, quanto da Renamo. Um estudo revelou que a média de idade dos soldados da Renamo era de 11,5 anos.

Rodrigo Novela foi um deles. A camiseta esconde uma cicatriz deixada por uma bala que penetrou no lado direito do peito, e um estilhaço ainda se encontra alojado debaixo do olho esquerdo. Os pés até hoje guardam as marcas de marchas forçadas de até 300 quilômetros.

Com 17 anos, Rodrigo hoje tenta recuperar os anos perdidos. Seu novo campo de batalha são os bancos da escola onde aprende a ler e escrever, junto com colegas que têm a metade da sua idade. Quer trabalhar e constituir família. Guerra, nunca mais!


Recuperação difícil


Pensar numa recuperação para as crianças que sobreviveram aos horrores da guerra e conseguiram escapar das tropas não é tarefa simples. As organizações internacionais que desenvolvem projetos na linha da reintegração social dos pequenos ex-combatentes sabem disso.

A guerra deixa marcas profundas no corpo e na alma dessas crianças. São comuns as reações de agressividade, ansiedade, medo, dor e depressão.

O pequeno Samuel Bull prefere comer sozinho e viver pelos cantos de um centro de recuperação em Monróvia, a capital da Libéria. O valente capitão Samuel do passado hoje se sente aterrorizado. Teme, inclusive, ser morto por outras crianças que, como ele, serviram nas trincheiras.

Não é de se admirar que as crianças tenham que conviver com traumas desse tipo. Os comandantes de exércitos e guerrilhas sempre usaram de muita fantasia para inventar uma variedade de técnicas que tinham um único objetivo: fazer das crianças guerreiras um monumento à brutalidade, à dureza e à mais cruel violência.

Personalidades ainda em formação, as crianças das regiões em conflito, sobretudo quando pobres, se prestam como ninguém a aprender a encarar a morte de frente e a matar sem piedade.


Caso da Renamo


A guerra civil em Moçambique serve de exemplo. Meninos foram pendurados de cabeça para baixo em galhos de árvores, durante horas, como parte do treinamento.

Eram com freqüência forçados a cometer uma atrocidade, como forma de cortar os laços com a família e o povoado de origem. Crianças com até 8 anos de idade recebiam ordens para atirar contra os próprios pais e lhes cortar o pescoço.

"O método consistia em obrigar a criança a praticar atos que a comprometessem", afirma Enrique Querol, um psicólogo argentino que trabalhou com jovens veteranos de guerra da Renamo.

Com um crime desses nas costas, um retorno se tornava praticamente impossível.

Além disso, antes de uma batalha, os comandantes da Renamo às vezes instigavam as crianças a beber sangue humano - um rito, segundo acreditavam, destinado a fazer com que perdessem todo tipo de medo.

As pequenas feras também eram obrigadas a se drogar com maconha ou anfetaminas, como forma de se manterem excitadas.


Proposta recusada


Em 1994, um grupo de trabalho da Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas se reuniu em Genebra, na Suíça, para debater a questão do uso de crianças na guerra e exigir providências internacionais.

Entre as sugestões, os participantes defenderam a inclusão de mais um protocolo na Convenção dos Direitos da Criança, passando de 15 para 18 anos a idade mínima para a prestação de serviço militar em todo o mundo.

A proposta não passou. Entre as nações contrárias à idéia encontram-se os Estados Unidos, a França e a Inglaterra, que têm tradição de aceitar voluntários de 16 e 17 anos nas fileiras militares.

De resto, esses países, que fazem parte do Conselho Permanente de Segurança da ONU, estão entre os cinco primeiros exportadores de armas no mundo.

Na lógica da guerra, armas valem mais que vidas - e não importa que essas vidas sejam pequenas, doidas para andar e correr por aí, brincar, jogar bola, em vez de matar.


Ye Htut mostra serviço em seu posto de guarda, instalado numa insegura ponte de bambu sobre um rio que separa a Tailândia da União de Mianmá (antiga Birmânia). Em 1993, com 12 anos, foi recrutado pelas tropas da UNK, que desde 1949 luta pela independência do território. O pai de Htut foi morto nessa luta, e a mãe teve que fugir de casa.

Abdhul Ansumana tinha 14 anos no início da guerra civil na Serra Leoa. Tendo perdido toda a família, entrou para o exército. Após o treinamento, juntamente com outras crianças, foi mandado para o campo de batalha. Acabou ganhando a fama de "assassino mau" pelo modo como tratava os rebeldes capturados pelas tropas do governo.

Junior Toe, 16 anos, foi obrigado a entrar para um dos grupos rebeldes da Libéria aos 12. Promovido a coronel, chegou a comandar um batalhão de 450 crianças. "Cansado de matar", trocou as armas por um par de sapatos e um saco de arroz. Tenta reconstruir a vida num centro humanitário de recuperação em Monróvia, a capital do país.

A. A., de Honduras, entrou para um grupo armado aos 13 anos e descobriu que as meninas eram forçadas a ter relações sexuais para "aliviar o sofrimento dos combatentes". Ela diz: "Eles abusaram, pisaram sobre a minha dignidade. Sobretudo, não entenderam que eu era ainda uma menina e que também tinha direitos."