Nuba

Marcados
para morrer

São cerca de 800 mil e habitam as montanhas da Núbia, na região central do Sudão. Ali, resistem como podem à violenta agressão praticada pelo governo fundamentalista islâmico.


"Jamais deixaremos que pisem em cima de nós, nem queremos ser considerados cidadãos de segunda classe. Aqui em nossas montanhas, estamos lutando contra um tipo de apartheid muito mais perverso que o da África do Sul de até pouco tempo atrás."

Não é difícil ouvir frases como esta da boca dos Nuba. Trata-se de uma reação muito comum ao que há pelo menos oito anos vem sendo feito pelo governo fundamentalista islâmico de Cartum, que está ativamente empenhado em acabar de vez com a cultura e a religião desse povo.

A campanha de perseguição é das piores. Inclui destruição de povoados, queima de igrejas e reclusão em campos de concentração. Quem no mundo se preocupa com a sorte dos Nuba?

Mas de onde vem e quem é esse povo?

Sobre as origens dos Nuba pairam muitas dúvidas no ar. Teriam vindo do Chade ou talvez da Nigéria? Será que não faziam parte de grandes tribos do Sul do Sudão? Teriam algo a ver com a população da antiga Núbia, uma vasta região do nordeste africano, conhecida desde a Antiguidade?

O certo é que a população nuba atual reúne vários grupos étnicos que, ao longo dos séculos, encontraram nas montanhas um refúgio contra os invasores. Trata-se de uma das regiões mais belas da África. Até certo ponto, o isolamento os livrou dos traficantes de escravos e da dominação árabe.


TODOS TÊM DIREITO
A UM PEDAÇO DE TERRA


Vivem agrupados em pequenas aldeias nas encostas dos montes. O modo de construção e a posição das cabanas indicam a qual das diversas tribos nubas pertencem os moradores.

Algumas das tribos costumam agrupar as cabanas num grande círculo. São cabanas redondas, bem altas e estreitas, ligadas entre si por paredes de barro. Esses conjuntos de cabanas formam um espetáculo à parte em todo território nuba.

O diâmetro das cabanas atinge em geral 4 metros. As paredes são de barro pisado, e o telhado, de várias camadas de palha. Pode chover à vontade que não entra água. Em geral constrói-se uma cabana para dormir, outra para cozinhar e outra para guardar os mantimentos.

O pastoreio e a agricultura formam a base econômica da sociedade. A posição social é determinada pelo número de animais que cada família possui, embora a criação de gado seja considerada menos importante que a atividade agrícola.

Cada membro da comunidade tem direito a possuir um pedaço de terra. Além disso, em torno da cabana sempre haverá um pequeno espaço para um quintal ou para o cultivo de hortaliças.

As crianças cuidam do gado, levam vacas e cabras para o pasto e prestam atenção para que nenhum animal se perca.

A base da alimentação são os cereais que cultivam. Carne é coisa rara, estando reservada para ocasiões muito especiais. Por exemplo, na celebração do enterro de familiares ou amigos.


RELIGIÃO COMO FORMA
DE RESISTÊNCIA


Em termos religiosos, os Nuba são em grande parte animistas. Tradicionalmente, veneram os espíritos dos mortos, a quem atribuem o bem e o mal que acontecem.

O espírito profundamente religioso desse povo – tanto faz se as pessoas são animistas, cristãs ou muçulmanas – o tem ajudado a se tornar mais forte em sua longa história de resistência contra as agressões externas.

Isolados pelo governo islâmico e abandonados pelo resto do mundo, os Nuba aprenderam a depositar em Deus a confiança.

O fato é que há muito tempo o mundo árabe vem exercendo sobre eles uma forte influência. A história das relações entre Nuba e árabes foi quase sempre muito agitada e sofrida. Historicamente, os Nuba sempre foram considerados pelas autoridades árabes uma raça inferior, de escravos. Eles perderam grande parte de suas terras, as mais férteis do Sudão.

Por causa da pressão do mundo árabe e islâmico, os Nuba estão correndo o risco de perder também seu rico e variado patrimônio cultural, suas tradições e costumes, o mesmo acontecendo com outros povos que habitam o sudão.


NUVEM DE MISTÉRIO
PAIRA SOBRE OS NUBA


Ainda restam, porém, as inúmeras tatuagens que usam pelo corpo, que tanto servem para distinguir uma tribo de outra quanto para realçar a beleza física. Um outro costume é o de cobrir o corpo com cinza, como sinal de resistência, de virilidade e, inclusive, de eternidade.

Também persiste a tradição da luta corporal, que chega a ter um caráter sagrado. É sempre um momento de alegria comunitária e acontece de vez em quando.

No início da luta, os rapazes se observam durante um bom tempo. O prêmio para o vencedor é um ramo de uma árvore típica da região que, ao ser queimado, produz uma cinza branca.

Com a metade da cinza, ele pintará o corpo para o próximo combate. A outra metade, o campeão guarda. Será derramada sobre seu túmulo no dia em que morrer.

Uma nuvem de lenda e mistério paira hoje sobre as montanhas da Núbia, e isso tem uma explicação. É que, atualmente, os turistas podem ir a qualquer lugar do continente negro: podem visitar a prisão onde esteve Nélson Mandela, na África do Sul, ou pescar num autêntico veleiro árabe na costa de Zanzibar, na Tanzânia.

Mas não lhes será possível conhecer os famosos lutadores nubas, que continuam vivendo isolados entre as montanhas da região central do Sudão. Isso tem contribuído para alimentar o mito sobre eles.


GOVERNO CENTRAL
PROÍBE DIFERENÇAS


Tolerantes e carinhosos por natureza, os Nuba são donos de uma cultura e um modo de vida surpreendentemente ricos, apesar do isolamento das montanhas.

Prestam um verdadeiro culto à luta corpo a corpo, mas são ao mesmo tempo hábeis artistas. Tocam como ninguém seus instrumentos, amam o canto e a poesia, sabem decorar maravilhosamente suas gamelas, fazem colares de contas e crucifixos talhados à mão.

É um povo diversificado porque formado por uma grande variedade de tribos. Os adultos falam geralmente várias línguas, incluindo o árabe, e estão acostumados a se virar com desenvoltura no labirinto das diferenças culturais existentes em sua sociedade.

Embora existam entre eles cristãos de várias denominações e adeptos da religião tradicional, a grande maioria é de muçulmanos. Porém professam um islamismo diferente, tolerante, de interpretação africana. Cristãos, muçulmanos e fiéis de religiões tradicionais convivem pacificamente, porque a tolerância faz parte da tradição nuba.

Os Nuba se orgulham de sua identidade e independência frente ao governo de Cartum, que os persegue com uma repressão sem fim.

É este o drama: o governo considera intolerável o fato de que esse povo, que em grande parte é muçulmano e tem líderes muçulmanos, se revolte contra as determinações que vêm de Cartum.

Não é de hoje que o poder central tenta fazer de todo o Sudão uma república fundamentalista islâmica. E é proibido discordar.

É assim que hoje, por mais lutadores que sejam, os Nuba e seu jeito de viver correm o risco de sumir do mapa.


Por dentro do conflito


A história da atual República Democrática do Sudão, capital Cartum, esteve por vários séculos ligada ao Egito dos faraós.

A partir do século 16, o Sudão setentrional recebe uma maciça imigração de árabes, vindos do Egito, Marrocos e Arábia. Com eles, começa o processo de islamização: a fé muçulmana e a língua árabe se sobrepõem às antigas religiões e culturas.

Atualmente, dois terços dos cerca de 26 milhões de sudaneses são de origem árabe, professam a religião muçulmana e vivem principalmente no Norte do país.

A maioria da população do Sudão meridional – cerca de 7 milhões de pessoas – é negra e pertence a religiões tradicionais ou cristãs.

O Sul sempre ficou à margem das decisões políticas, tendo que resistir a sucessivas investidas de islamização por parte dos vários governos que assumiram o poder de Cartum, desde a independência do país, em 1º de janeiro de 1956.

Nas montanhas da Núbia, a guerra civil contra o governo de Cartum teve início em 1989. Desde então, a área está isolada do resto do mundo. O governo não permite a entrada de ajuda humanitária, nem a presença de observadores internacionais.

Toda a área está sob o controle do Exército Sudanês de Libertação Nacional, o SPLA (a sigla em inglês), que leva em frente a guerra contra o governo de Cartum no Sul do país. O SPLA recebe apoio da população para continuar a resistência armada.