Cuba

De olho na Ilha

O papa João Paulo II visita Cuba neste mês de janeiro. Muita conversa e muita especulação em torno da viagem.


Há tempo uma viagem de João Paulo II não despertava tão grande interesse, desde que foi anunciada. Um batalhão de jornalistas do mundo inteiro seguirá atentamente cada um dos passos, gestos e palavras do papa, assim que ele desembarcar em Cuba, no dia 21 deste mês de janeiro, para uma visita de quatro dias.

Tem tudo para ser um grande espetáculo de mídia, com audiência garantida. As duas principais estrelas, Fidel Castro e João Paulo II, dispensam maiores apresentações, ainda que a história os tenha feito brilhar em constelações diferentes.

Oficialmente, o convite para a visita veio do presidente cubano, em novembro de 1996, quando do seu encontro privado com o papa, em Roma. A partir daí, começaram as especulações.


Fidel "católico" – Amigos e inimigos de Cuba, quem gosta de Fidel Castro e quem o odeia, os que acreditam no socialismo cubano e os que torcem ou trabalham pelo seu fim – parece que todos têm motivos para esperar alguma coisa, boa ou ruim, dessa primeira visita do papa à Ilha.

"Não nutrimos nenhum sentimento de temor, e sim de confiança e otimismo", declarou, em setembro, o embaixador cubano junto à Santa Sé, Hermes Herrera Hernandez, numa entrevista ao jornal católico italiano Avvenire.

"Temos grande admiração e estima pelo que faz e diz o chefe da Igreja católica", ele afirmou. "Sobretudo por seus apelos em favor da dignidade humana e da justiça social."

Na ocasião, o embaixador voltou a assegurar que a viagem seria realizada. E explicou que Cuba faria "uma grande festa popular" para receber o ilustre visitante.

Hermes Herrera aproveitou para desmentir um dos muitos boatos que circularam pelo mundo nos últimos meses, o de que Fidel ter-se-ia "convertido ao catolicismo".

Educado em colégio jesuíta, "Castro sempre fala de religião com grande respeito", disse o embaixador. "Mas isso não quer dizer que tenha se convertido ao catolicismo."


"Melhor momento" – Esclarecido esse ponto, a diplomacia cubana teve que desfazer logo em seguida os rumores de que setores do Partido Comunista do país estariam tentando boicotar a visita do papa.

"Isso não corresponde à verdade", garantiu a responsável pela Secretaria de Assuntos Religiosos, Caridad Diego.

Ela sublinhou que a revolução cubana e as instituições religiosas estão hoje "mais maduras" e que as relações entre Estado e Igreja passam pelo "melhor momento, o mais positivo e aberto".

Que tem havido progressos, não se discute. Nunca, na história da Revolução socialista, a Igreja católica em Cuba pôde dispor de tanto espaço e promover um número tão grande de iniciativas como nos meses que antecederam a visita do papa.

Apenas um exemplo: "Após mais de 35 anos de 'clandestinidade', no dia 29 de junho passado, foi possível para a Igreja católica celebrar uma missa solene, a céu aberto, na praça da catedral de Havana, com a presença de cerca de 4 mil pessoas".

A informação foi dada pela agência missionária italiana Aimis no mês de agosto. O termo "clandestinidade" aparece entre aspas no texto da agência, talvez para expressar o receio de que a afirmação seja exagerada.

De fato, os críticos menos exaltados das relações entre Igreja e Estado cubano aconselham a ver os dois lados da moeda: a idéia de que Deus está de um lado e o diabo do outro não é um bom ponto de partida para a compreensão dos fatos.


Espírito de colaboração –"Existe um vivo interesse comum em que a visita seja um momento privilegiado para o presente e o futuro desta nação tão querida pelo Santo Padre."

A declaração foi feita pelo diretor da sala de imprensa do Vaticano, Joaquín Navarro Valls, no aeroporto de Havana, no final de outubro, após ter passado alguns dias em Cuba cuidando dos preparativos para a viagem do papa.

Foram seis horas de conversa com Fidel, num clima de "sincera cordialidade", afirmou o representante do Vaticano, que frisou várias vezes o "sincero espírito de colaboração" entre as partes.

Navarro disse ainda que Fidel lhe pediu para transmitir ao papa "um profundo agradecimento", junto com a garantia de que ele e seus colaboradores fariam tudo o que estivesse ao seu alcance para que a visita do papa estivesse à altura do seu significado religioso e também histórico, "para o bem da Igreja católica e de todo o povo cubano".


País em crise – Talvez ninguém saiba dizer em que sentido exatamente a presença de João Paulo II em Cuba deva representar de algum modo um "bem para todo o povo cubano".

O país atravessa uma crise econômica e social sem precedentes na história de quase quarenta anos de revolução socialista.

A crise teve início com a dissolução do maior parceiro comercial – e ideológico – de Cuba, a União Soviética, em 1991.

De repente, desaparece a principal fonte de ajuda externa, caem as exportações e não chega mais o petróleo que antes vinha de lá. O governo se vê obrigado a racionar combustíveis, energia e alimentos. Cuba sofre.

A crise é agravada pela intensificação do embargo estadunidense contra o país. Arquiinimigos do regime cubano, os Estados Unidos apostaram tudo numa reviravolta na Ilha, na onda de mudanças que varreram os antigos países socialistas do Leste Europeu.

Por que Cuba não haveria de cair também?

Não obtiveram sucesso, mas isso não significa que tenham desistido. O embargo continua e causa estragos, mesmo tendo sido condenado pela comunidade internacional (veja quadro).

"Quem sofre são os mais pobres, e o povo cubano precisa de nossa ajuda", declarou o bispo Jorge Giménez, da Colômbia, no mês de outubro passado.

"A Igreja deve lutar contra o embargo a Cuba", disse Giménez, que é secretário-geral do Conselho Episcopal Latino-Americano (Celam).

Em seus discursos e pregações na Ilha, o papa poderá abordar vários assuntos delicados. Temas como direitos humanos, liberdades individuais, liberdade religiosa, etc.

O que muita gente pelo mundo espera é que João Paulo II não se esqueça de condenar, com toda força, a política externa dos Estados Unidos em relação a Cuba e exigir o fim do embargo comercial.


Miami é ali – "Cuba resiste, e seus índices sociais são os melhores da América Latina", de acordo com dados da Organização das Nações Unidas (ONU), escreveu recentemente o dominicano Frei Betto.

Betto é autor do famoso livro Fidel e a religião, lançado em 1985 e traduzido nos quatro cantos do mundo. "Segundo o Índice de Pobreza da ONU, só três países latino-americanos reduziram a pobreza a menos de 10% de sua população: Cuba, Chile e Costa Rica."

Não é nada fácil, porém, garantir os êxitos sociais da Revolução cubana – nas áreas de saúde, educação e previdência, principalmente – com uma economia em frangalhos.

A esperança maior vem hoje do turismo: são cerca de 1 milhão de turistas chegando anualmente à Ilha (o dobro do Brasil), e isso significa dólares entrando no país, trabalho, comida – com alguns inconvenientes como a prostituição, por exemplo.

Os inimigos do regime já perceberam o quanto o turismo pode ajudar a recuperar a economia do país, e as bombas que nos últimos meses explodiram em hotéis cubanos são uma prova disso.

Objetivo dos atos terroristas: amedrontar os estrangeiros que pensam em desfrutar por alguns dias os encantos da Ilha. No pensamento dos Estados Unidos e dos grupos anticastristas, vale tudo para fazer Cuba se render, inclusive obrigar a população do país a passar fome.

Apesar da leve recuperação econômica de algum tempo para cá, continua não sendo tarefa simples fazer a população acreditar nos slogans da Revolução. Para muitos, principalmente jovens, a máxima "socialismo ou morte" já não convence como antes.

Não mais de 150 quilômetros separam Cuba de Miami, nos Estados Unidos, onde já vivem pelo menos 700 mil exilados cubanos. A tentação de segui-los é sempre forte. Pode não ser por razões políticas. Pode ser por falta de opções e de esperança no futuro.


Fervor religioso – Menos dúvidas parece existir a respeito do que significa que a visita do papa pode contribuir "para o bem da Igreja católica".

A religião está em alta no país, e a chegada de João Paulo II está sendo encarada como um ótimo reforço para essa tendência . Bispos e padres comemoram o fato de que as igrejas estejam hoje sendo freqüentadas por um número cada vez maior de fiéis.

Os mais otimistas afirmam que os católicos chegam perto de 4 milhões no país, numa população de 12 milhões de habitantes. É exagero, mas o fato é que tem aumentado como nunca, na década de 90, o número de batizados, primeiras-comunhões, crismas e casamentos.

Com a aproximação da visita do papa, toda essa movimentação ganhou um fôlego surpreendente.

Duas mudanças na ideologia de sustentação do regime socialista cubano contribuíram de forma positiva para esse despertar religioso na Ilha. Em 1990 teve fim a proibição do acesso de cristãos ao Partido Comunista Cubano. Também foi eliminada da Constituição toda referência ao ateísmo.

Em ambos os casos, a religião saiu ganhando, deixando de ser tratada como tabu e preconceito.

Outros analistas enfatizam o peso da crise na determinação do fenômeno da procura religiosa: na hora do aperto, as pessoas costumam mais facilmente se voltar para Deus.

Para outros, ainda, o despertar religioso é uma prova cabal de que toda a propaganda ateísta não surtiu o efeito desejado.

Seria errado pensar que o povo cubano, falando de forma geral, tenha algum dia deixado de ser religioso, com ou sem revolução. Sobretudo religiões de origem africana sempre fizeram sucesso na Ilha, onde a grande maioria da população é negra ou de origem negra.


Qual papa – A Igreja católica em Cuba nunca escondeu os problemas que foi obrigada a enfrentar no país, desde e em parte por causa do triunfo da Revolução, em 1959, sobretudo nos primeiros anos. Mais difícil tem sido reconhecer a própria parcela histórica de culpa em todo esse período.

O regime cubano teve e continua tendo dificuldades com a Igreja católica – mais do que com as outras Igrejas cristãs.

Mas é também verdade que a hierarquia católica, em geral, nunca conseguiu dialogar de fato com o projeto socialista, e só muito timidamente reconheceu em alguns momentos os avanços trazidos pela Revolução.

Ainda há pouco, quando das mudanças no Leste Europeu, líderes católicos cubanos imaginaram para a Igreja o papel de condutora do povo para a "terra da liberdade".

Resta esperar a visita do papa. "A grande expectativa é conferir qual João Paulo II chegará à Ilha", escreve Frei Betto: "O que ajudou a derrubar o Muro de Berlim ou o que admitiu, frente à crise econômica e social da Polônia e da Rússia, que 'o socialismo continha sementes de verdade'?".



Poder de gigante


"Podemos e devemos discutir questões de democracia, direitos humanos e liberdade religiosa em Cuba, mas depois de uma luta vitoriosa contra o embargo."

A opinião é do religioso dominicano Frei Betto, que condena o fato de Cuba não poder comercializar livremente com os outros países e defende o direito exclusivo do povo cubano de determinar os destinos de sua pátria.

Críticas e condenações ao embargo, imposto a Cuba pelos Estados Unidos em 1962, não faltam. Em novembro de 1996, pela quinta vez consecutiva desde 1992, a Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) exigia novamente o fim das sanções. Votaram 137 países, inclusive todos os membros da Comunidade Européia. Foi mais uma resolução sem qualquer efeito prático.

Em março de 1996, o Congresso dos Estados Unidos decidiu apertar ainda mais o bloqueio comercial, aprovando a lei Helms-Burton, que ameaça dificultar a vida de empresas estrangeiras que façam negócios com Cuba. Por exemplo, impedindo que seus dirigentes ou familiares obtenham visto de entrada nos Estados Unidos.

"A lei Helms-Burton, que reforça o bloqueio americano à Ilha, é o sintoma mais evidente de que a Casa Branca se julga um governo mundial", escreve Frei Betto. Ele acha curiosa a complacência das demais nações. "Pode-se imaginar a reação se Cuba decidisse bloquear o porto de Miami?"

Tendo derrotado os espanhóis em 1899, os Estados Unidos ocuparam militarmente Cuba até 1902, o ano da independência.

Em seguida, até 1934, mantiveram o poder de intervenção no país, o que permitiu que suas tropas ocupassem a Ilha por cinco vezes no período. Até hoje os Estados Unidos mantêm em território cubano sua base naval de Guantánamo.

Durante a ditadura de Fulgêncio Batista (1952-1959), os Estados Unidos investiram pesadamente no país, nos setores açucareiro, de mineração, turismo e jogo. Em 1959, o ano do triunfo da Revolução, controlavam quase metade da produção açucareira, 90% das minas e fazendas e 80% dos serviços públicos e das ferrovias.

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