Com bênçãos afro


Novo bispo-auxiliar de Salvador quer incentivar celebrações em estilo afro e dialogar com cultos de origem africana.

 Gílio Felício

No dia 3 de maio deste ano, na catedral de Santa Cruz do Sul/RS, o toque do atabaque vai dar o ritmo à cerimônia da sagração episcopal do gaúcho Gílio Felício, 49 anos.
Na hora do Ofertório, além dos tradicionais pão e vinho, frutas e instrumentos de trabalho irão lembrar os duros tempos da escravidão.

Gílio, um "negro assumido", foi nomeado pelo papa João Paulo II bispo-auxiliar da arquidiocese de Salvador, do cardeal-arcebispo Lucas Moreira Neves, a mais antiga do Brasil, criada em 1551. Nunca um negro ocupou posto tão alto na hierarquia católica da capital baiana, onde a imensa maioria da população descende de africanos.

Padre há dezenove anos, o novo bispo vê sua indicação como um esforço da Igreja para se aproximar mais do povo. E também como "uma maneira de essa Igreja resgatar uma dívida para com os negros".

Gílio preside atualmente o Instituto Mariama – que reúne diáconos, sacerdotes e bispos negros – e, desde 1995, trabalha intensamente pela criação de um organismo para negros dentro da CNBB. Na entrevista a SEM FRONTEIRAS, ele fala da experiência como militante negro dentro da Igreja e dos desafios que sua nova atividade pastoral levanta.



Como o senhor recebeu a notícia de sua nomeação?

Gílio Felício – Com um sentimento de encanto e de alegria. Afinal, é um convite do papa para ensinar e organizar comunidades de fé, continuando um trabalho que um dia foi dos apóstolos. No meio de toda essa emoção, porém, sinto também um pouco de temor, porque se trata de um compromisso grande. Além disso, tem o fato de eu ser gaúcho. Para não cair de pára-quedas, vou ter necessariamente que fazer um êxodo, aprender coisas novas com esse povo, que apresenta características culturais um pouco diferentes das dos negros do Rio Grande do Sul.


Não ajuda o fato de o senhor ser negro?

– É verdade que temos a negritude em comum. Mas é bom lembrar que temos origens culturais diferentes. Os primeiros escravos africanos da Bahia pertenciam à cultura nagô, enquanto os negros trazidos para o Sul faziam parte da cultura banto. Repito: chegando lá, vou ter que aprender muito dessa cultura e prestar bastante atenção antes de fazer alguma coisa.


O que sua nomeação para bispo representa para os negros da Igreja católica?

– O gesto do papa mostra o esforço da Igreja para adquirir um rosto mais negro. Durante os trezentos anos de escravidão no Brasil, a evangelização veio acompanhada de atitudes de injustiça contra milhões de escravos. Por isso, vejo também essa indicação como uma maneira de a Igreja resgatar uma dívida histórica para com o povo negro.


Como se deu o despertar da Igreja para a cultura negra?

– Começou como nota de rodapé no documento de Puebla, dos bispos latino-americanos, em 1979, e se consagrou de forma solene em Santo Domingo, em 1992, quando o papa fez um discurso entusiasmado em favor das populações negra e indígena. Ele disse que precisamos enriquecer a Igreja com essas culturas, tornando eficaz o processo de inculturação.


Como o senhor define inculturação?

– O modo de a Igreja anunciar a Boa-Notícia de Jesus Cristo valorizando e respeitando o jeito próprio de cada povo pensar, amar e conquistar sonhos. Deus quis se manifestar ao mundo de forma inculturada. Como diz São João: "O Verbo se fez carne e habitou entre nós, e nós vimos a sua glória". Deus mostra sua glória valorizando nosso jeito de ser, jeito de negro, de índio...


O que os negros estão fazendo para ter um espaço garantido dentro da Igreja?

– Estão acontecendo coisas bonitas. Uma delas foi a Missa dos Quilombos, presidida pelo bispo negro José Maria Pires, arcebispo-emérito da Paraíba, em 1983. Trata-se de uma missa diferente, que utiliza símbolos da cultura afro-brasileira. Infelizmente, foi barrada pela Congregação para o Culto Divino, de Roma. Mas a gente não desanimou.

Logo depois, fundamos um movimento negro dentro da Igreja, os Agentes de Pastoral Negros (APNs), que em julho próximo estão fazendo quinze anos. São leigos, padres e bispos negros assumidos querendo vencer o racismo dentro da Igreja e motivando as comunidades para o estudo da história do negro.

Outra coisa boa foi a Campanha da Fraternidade de 1988, sobre o negro. A partir daí, nós, diáconos, padres e bispos negros, passamos a nos reunir à parte, no Instituto Mariama.

Além de tudo isso, desde 1995, um grupo de representantes de vários movimentos afro-católicos está trabalhando para a criação de um organismo de negros junto à CNBB, que deve lançar as bases para um futuro secretariado afro-brasileiro.


Qual vai ser a tarefa desse secretariado?

– Será ajudar a Igreja e a sociedade a tomar consciência de que o negro deve ter um lugar ao sol. Hoje, há apenas cinco bispos negros num universo de aproximadamente quatrocentos bispos. De um total de 14 mil sacerdotes, somente quinhentos são negros. Como diz um teólogo negro: "Em um mundo que tem a convicção de que Deus é branco, e que procura colocar tudo o que não é branco do lado dos adversários de Deus, é importante que chamemos a Deus de negro".


Representantes dos cultos de origem africana viram com bons olhos a nomeação de um bispo negro para Salvador. Como o senhor pretende se relacionar com eles?

– Fico feliz em saber que tenham se alegrado com minha indicação pelo fato de eu ser negro. Outro dia, uma mãe-de-santo de um dos terreiros de candomblé me telefonou para dar os parabéns. Ela disse: "Padre Gílio, nós rezaremos em nossos cultos pelo senhor e pelo seu trabalho". Fiquei muito contente e agradeci, dizendo que também rezaria por eles. Minha disposição é de diálogo. É preciso reforçar as coisas que temos em comum com eles.


Que coisas?

Uma delas é a utilização de elementos comuns da cultura negra. De fato, quem mais preservou essa cultura, durante e depois do período da escravidão, foram os terreiros de candomblé e outros cultos afro. Antes de pertencer à Igreja católica ou ao candomblé, somos negros. Vou tentar promover encontros de estudo e debates para valorizar esse terreno comum.


O senhor costuma rezar missa com trajes africanos, dançar e fazer o ofertório do jeito afro. Pretende continuar assim em Salvador?

– Não vejo problemas em celebrar a fé e a vida de acordo com nossa cultura. É bom lembrar que já recebemos do Vaticano um sinal verde para fazer experiências no campo da liturgia, o que futuramente deverá desembocar num rito católico afro-brasileiro.


Isso depois de terem barrado a Missa dos Quilombos?

– Isso mesmo. A mesma congregação romana que não aprovou a Missa dos Quilombos aceitou o pedido que fizemos através da Linha 4 da CNBB, encarregada da liturgia. Pretendo incentivar celebrações em estilo afro, em diálogo, é claro, com dom Lucas. Ele sabe que pode contar comigo para levar adiante essa busca.


Há gente que é contra esse trabalho de valorização da cultura negra na liturgia?

–Lamentavelmente há muita gente, negros e brancos, que ignora o assunto. Conhecemos muito pouco nossas raízes culturais e, por isso, assumimos atitudes que não estão de acordo com o que dizem os documentos oficiais da Igreja. Inclusive, há colegas sacerdotes negros que desaprovam completamente essa caminhada.


Qual seria a melhor forma de a Igreja celebrar o quinto centenário do início da evangelização no país?

– A Igreja tem razões suficientes para fazer um gesto bem ousado, como, por exemplo, de pedido oficial de perdão por não ter ouvido o clamor de milhões de escravos. Até hoje, a Igreja não deu uma resposta suficiente de carinho ao povo negro.


O que vai mover o trabalho do primeiro bispo negro de Salvador?

– O meu lema é anunciar o Evangelho a todos, com a ternura de Jesus Cristo. Nisso, a opção preferencial pelos pobres é fundamental. E os negros estão entre os mais pobres de nossa sociedade neoliberal.


Como seria uma Igreja com mais bispos "negros assumidos"?

– A cultura negra seria mais valorizada, sem desmerecer as outras culturas. Digo isso por experiência própria. Aqui em Santa Cruz do Sul, quando celebramos com elementos da cultura afro, os descendentes de alemães e italianos entram em sintonia com facilidade. Daí, uma lição de vida: as culturas se complementam e fazem acontecer a fraternidade e a partilha.