Mundo Plural: Ndebele

Festa das lagartas

Mais que um alimento fácil e nutritivo, as amachimbis representam uma verdadeira bênção para os Ndebele, um povo que vive no Zimbábue.


Juan E. Garay


Início de janeiro. Com a chegada das chuvas, tão ansiosamente esperadas, na savana de Bulilila-Mangwe, enormes borboletas deixam crisálidas. São lindas, e merecem o respeito dos habitantes da região, que fica perto do deserto de Kalahari, no Zimbábue.

As borboletas fascinam, sobretudo, por suas grandes asas. Nelas se notam duas manchas em forma de círculo que, no breu da noite, mais parecem os olhos de um felino. Quem sabe os olhos dos leopardos que antigamente existiam por aqui?!

Elas voam, e o instinto as leva a procurar as folhas de uma árvore típica da savana, a mopane, que volta a florescer depois da longa estiagem. É ali que depositam seus ovos, para morrer pouco depois, felizes por ter escapado à terrível caça movida contra elas e, assim, ter conseguido completar o ciclo de preservação de sua espécie.

Dependendo de quanto chove em janeiro, e também da quantidade dessas borboletas, os mais entendidos no assunto fazem previsões sobre a temporada das lagartas, as amachimbis, e o quanto vai render o trabalho de capturá-las.


Todos catando lagartas


Início de abril. Cessam as chuvas e os trovões. É tempo de cuidar da roça. Precisa espantar nuvens de pássaros que ameaçam acabar com as plantações de milho, tantas vezes o último e único recurso que sobrou para a sobrevivência dessa gente.

Enquanto os Ndebele espantam as aves intrusas, valendo-se de gritos constantes e do som de tambores, as amachimbis sobem lentamente pelos ramos das mopanes e devoram suas folhas. É uma das poucas árvores que resistem ao clima hostil da savana semi-árida.

Os mais experientes catadores conseguem calcular a quantidade de amachimbis que há numa árvore apenas pela intensidade do leve ruído que elas fazem ao triturar pacientemente folha por folha.

O trabalho de catar as preciosas lagartas exige muita dedicação. A tarefa, junto com a de espantar pássaros, deixa as cabanas completamente desertas.


Pedido de permissão


O missionário reclama que o povo mal aparece para a missa. No hospital da missão, o único das redondezas, o atendimento se reduz a umas poucas urgências. As crianças também aproveitam para antecipar os feriados da Semana Santa.

Vêm caravanas de outras regiões e até de países vizinhos, como Botsuana e Zâmbia. É tanta gente, que chega até a haver brigas pelo espaço, uma coisa difícil de se imaginar em outra época do ano.

A captura de lagartas, uma arte que se aprende desde a infância, é precedida de um ritual religioso. As pessoas pedem permissão aos espíritos do bosque para entrar em suas perigosas entranhas e colher o precioso dom, enviado pelos Antepassados – os venerados Idlozi Elihle.

Quase todos os clãs de Matabeleland levam o nome de um animal cuja carne não se come, porque é tabu. Os mais comuns em Bulilila-Mangwe são ndluvu (elefante), ncube (macaco), nde (zebra) e nyathi (búfalo). Nenhum clã se chama amachimbi. Talvez isso não se deve apenas ao fato de as lagartas servirem de alimento. A procura por elas constitui um verdadeiro rito para a cultura local.


Lagartas e sobrevivência


Tendo identificado o local apropriado, cada pessoa escolhe uma árvore, de cujos ramos e folhas arranca as vistosas lagartas. Estas caem ao chão e, como que conscientes do próprio destino, não se mexem.

Os nativos nem se incomodam com os afiados ferrões das amachimbis. Eles as espremem com os dedos, para retirar de dentro delas as folhas semidigeridas. O polegar escuro e calejado é um sinal de orgulho para os melhores catadores.

Em uma jornada de trabalho de doze horas, a pessoa costuma catar até dez litros de amachimbis. Uma lata de vinte litros chega a valer uns cem dólares zimbabuanos. É mais ou menos a metade do salário mensal de muitos trabalhadores pobres da região.

Nunca se pode deixar passar mais que um dia depois de recolher e espremer as lagartas. É preciso ferver e pôr para secar. Um outro modo de preparar é cozinhá-las em água misturada com pasta de milho.


Fonte de proteínas


A "rota comercial" das amachimbis começa, pois, com o período da coleta nos bosques de Bulilila-Mangwe, durante os meses de março e abril.

Depois, são compradas por particulares, comerciantes e indústrias de alimentos. Estes as revendem às lojas ou as exportam para a África do Sul e para outros países da região. Nessa viagem, os preços sobem sem parar.

Para muita gente dessa parte da África, as amachimbis representam um dos mais nobres alimentos do ano, mais ou menos como uma lagosta em nosso caso.

Para outros, é uma questão de sobrevivência: elas ajudam a comprar milho para o sadza – a comida de todos os dias –, a pagar escola para os filhos, a comprar remédios...

Para outros, ainda, servem como fonte de proteínas, que ajudam a agüentar os duros e longos meses da estação seca.

A temporada das amachimbis também traz benefícios para o hospital em que trabalho. Devido à falta de recursos, não temos condições de fornecer uma dieta rica em proteínas para os doentes, a começar pelas crianças.

A coisa muda bastante quando chegam as lagartas. A cozinha do hospital adquire vários litros, reservando-as para as crianças subnutridas, que acabam melhorando de saúde e aumentando de peso.


Negócio arriscado


Mas nem tudo são flores, pois uma série de problemas acompanha a temporada das amachimbis, uma época do ano em que famílias inteiras passam a viver nos bosques semi-áridos da região.

É quando aumentam os casos de picadas de serpentes venenosas, os ataques de animais selvagens, os acidentes, as doenças respiratórias...

Como se não bastasse, são freqüentes os casos de assalto e violência. Ora, é muito mais fácil – e às vezes mais lucrativo – assaltar um grupo de catadores de amachimbis no bosque do que um banco na cidade. Diferentemente do dinheiro, as lagartas não têm número de série e podem ser vendidas livremente em qualquer parte do país.

Outro dia, atendi um paciente atingido por uma bala no rosto durante um desses assaltos. Levaram tudo o que ele, suas duas mulheres e seus oito filhos tinham conseguido juntar em duas semanas.

Antes da chegada dos Ndebele à região de Matabeleland (veja quadro), os Kalanga do império Rozwi, que viviam entre os rios Zambeze e Lilompo, já conheciam o ciclo e o valor nutritivo das amachimbis.

Agora, os Ndebele rezam a Inkosazana – o deus da chuva – e a Ngwali – o espírito de Matopos, um bosque mágico de pedras, ali vizinho – para que as mopanes fiquem verdes mais uma vez e para que as amachimbis jamais deixem de aparecer, elas que representam uma bênção para o povo da região.



Sobreviventes da "confusão"


Os Ndebele descendem do grande grupo dos Ngoni, do qual também faziam parte os Zulu e os Swazi. Juntos, os três subgrupos formavam uma grande nação na África do Sul, cada um deles vivendo de forma autônoma e auto-suficiente. A terra era rica em ouro e ferro, e isso lhes permitia uma vida tranqüila.

A partir do século 16, a região onde habitavam os Ngoni passou por grandes transformações. A começar pelo aumento da população, que deu origem a conflitos entre os grupos, cada um deles tentando garantir o próprio espaço.

A situação se agravou com a chegada dos agricultores holandeses conhecidos como bôeres, que dominaram a região e implantaram o regime do apartheid – de segregação racial –, que durou até a década de 90.

Também os portugueses contribuíram para arruinar a economia tradicional dos Ngoni, por meio do tráfico de escravos, ouro e marfim. Os povos Ngoni têm um nome para esse período de duras transformações sociais. Chamam-no de mfecane, que significa confusão.

No final do século 17, Ndebele e Swazi deixaram a região, fugindo da dominação do império zulu, que se encontrava sob a chefia do tirano U Shaca.

Os Ndebele foram se instalar no Zimbábue, onde tiveram que dividir o território com os Shona e lutar contra a colonização inglesa. Atualmente, somam cerca de 1,5 milhão no país. Aproximadamente 450 mil continuam na África do Sul.

Além de cuidar do gado, os Ndebele cultivam legumes, cereais, frutas e tabaco. A estrutura de suas aldeias é bem tradicional: no centro fica o recinto para os animais domésticos, ao redor do qual estão as cabanas. Um muro de barro em forma retangular cerca todo o conjunto, servindo de proteção contra o ataque de animais selvagens.

De cultura banto, os Ndebele têm uma índole religiosa muito forte. Cerca de 30% da população segue a religião tradicional, enquanto 45% professam o cristianismo.