Benedita da Silva

A senadora carioca fala de sua vida de menina negra e pobre e do seu esforço para fazer da causa negra um objeto de preocupação e busca constantes, também depois da celebração do tricentenário da morte de Zumbi, neste mês de novembro.

Olhos nos olhos, Benedita da Silva, 53 anos, mãe e avó, é assim: abre o coração, porque nada tem a esconder. Na conversa franca, ora parece estar fazendo um discurso no Senado, ora a voz se torna meiga e triste, ao recordar sua infância difícil, a fome e a miséria mais duras, o trabalho na rua, o preconceito... Provavelmente estará pensando em tantos outros meninos e meninas como ela por esse Brasil de Deus.

Gestos largos, sorriso generoso, uma gargalhada gostosa explode aqui e ali... "Vamos fechar a porta do gabinete, que é pra ninguém escutar." Uma fotografia, Bené? "Ai, meu Deus. Me deixa eu tirar os óculos!" A menina pobre e negra de uma favela carioca, um dia, se tornou vereadora. Depois, deputada federal, candidata à Prefeitura do Rio de Janeiro e senadora, com 2 milhões de votos.

Socialista ("Não aceito e nem concordo com os que dizem que o socialismo morreu. Estão pensando no socialismo autoritário" - afirmou em recente entrevista à imprensa), tem admiração especial por duas pessoas do mundo político: Lula, seu amigo e companheiro de partido, o PT, e Nélson Mandela, líder negro da luta anti-apartheid e atual presidente da África do Sul, um país onde Benedita gostaria de viver, se tivesse que deixar o Brasil.

Agenda lotada, um corre pra cá e pra lá constante, com mil coisas para pensar e fazer em vista dos trezentos anos da morte de Zumbi, Benedita ainda encontra um tempinho para receber SEM FRONTEIRAS em seu gabinete em Brasília, no intervalo de um seminário em que se discute a questão da demarcação das terras dos remanescentes de quilombos. Seguem trechos de uma conversa sem rumo definido, em que o cotidiano da vida da senadora se mistura com as causas que defende, o real e o sonho, a fé, a simpatia. Bené, de trancinhas...

Você se sente uma fazedora de sonhos?
Benedita da Silva - Não. Tenho os meus próprios sonhos, sonhos individuais e também coletivos. Sonho com uma sociedade diferente, com justiça. Esse é o meu sonho coletivo. O meu sonho individual é poder ser cada vez mais útil, e também estudar mais.

Estudar o quê?
- Fiz Estudos Sociais e Serviço Social, mas eu gostaria muito de fazer Ciências Políticas e História.

Quando criança, com o que você mais sonhava?
- Queria ser grande, mas numa outra situação. Porque a situação da favela onde nasci e me criei era de muitas dificuldades, de miséria absoluta. A vontade de estudar sempre me acompanhou. Tinha o sonho de ser professora, ensinar. Depois, quando fui crescendo, o meu sonho mudou de professora para médica. Isso foi mais aos 19 anos, quando tive o meu filho que ficou vinte e um dias em coma, com meningite. Esse sonho não se realizou, mas, como auxiliar de enfermagem, acredito ter prestado um serviço também nessa área.

Você sempre gostou de ser negra?
- Eu me tornei negra. As dificuldades que eu tive que enfrentar na vida, por ser negra, foram muitas e grandes. Tudo era ruim para o negro. Porque dizem que negro é feio, ignorante, para o negro nada. Quando eu ia brincar com as outras crianças no parque, não podia ir no balanço, porque eu era negra e pobre. Houve um momento em que me odiei.
Cheguei a conversar sério com Deus. Esse foi um episódio importante na minha vida, e eu conto isso no livro que estou escrevendo. Comecei a conversar com Deus, a tomar banho, a me raspar com telhas. Porque eu não estava agüentando a pressão.
Eu me lembro que, aos 7 ou 8 anos de idade - eu trabalhava na rua -, cheguei a colocar um pouco de água sanitária na água de tomar banho, porque acreditava que ia clarear a minha pele. E não só isso. Comecei também a ter uma certa raiva do branco, porque a ele tudo e ao negro nada. Sempre discriminada, passei também a discriminar. Não queria mais conversa com branco.

Isso passou logo?
- Ainda nessa idade, antes da adolescência, aprendi muito com o gesto de uma menina branca, filha da patroa da casa onde eu costumava fazer faxina. Um dia, quando tive que dormir no trabalho, a patroa me disse para dormir no chão. Então, a filha dela chegou e se deitou ao meu lado. Uma coisa que eu nunca tinha tido antes, isso de uma criança branca se deitar ao meu lado. O que eu fazia era tomar conta dessa criança, limpar e tudo mais. Ou eu tinha que me afastar dela, porque o ambiente dela não era o meu.
Naquele momento, eu senti essa coisa de igualdade. Foi um toque mágico que me fez despertar para dizer: "Não! Eu vou à luta!". Aí, eu comecei a gostar das pessoas brancas. Em casa, a minha mãe, mesmo não tendo estudos, me passava essa coisa da negritude. Apesar de, naquela época, ela dizer que precisava casar com branco para limpar a família.
Todas essas coisas ajudaram a amadurecer em mim a questão racial.

Que livro é esse que você está escrevendo?
- Está praticamente escrito. É uma verdadeira "devastação", porque fui misturando e juntando muitas coisas da minha vida. Um amigo que entende mais dessas coisas vai organizar melhor. O livro fala de quem sou eu, e também das coisas que eu vim sofrendo na minha trajetória até chegar aonde estou hoje.

E a Bené esposa do Pitanga, mãe do Pedro e da Nilcéia?
- Faço muita coisa na minha vida. Além de senadora, sou uma excelente cozinheira (risos). Sei fazer todas as comidas. Sem me considerar objeto de cama e mesa, acho que essa é uma das qualidades que tenho e que me ajuda a ter uma boa relação boa com a turma. Tenho uma cabeça que sempre me fez dividir as tarefas de casa com o marido e os filhos. Procuro ser o menos autoritária possível. Você não me perguntou, mas eu tenho netos, que eu adoro, uma loucura. E me dou muito bem com o maridaço que eu tenho, com os enteados, com o genro, com a minha nora, que é maravilhosa. Eu tento unir o útil ao agradável...

Você sabe dançar?
- Sei, mas hoje já não danço mais. Até por uma questão de religião. Aos 26 anos, fui para a Igreja evangélica e parei. Antes, levava uma vida boêmia. Dançava tudo.

Você se sente bem na sua Igreja?
- Sim, do ponto de vista espiritual. Todos temos um lado místico, que tem que ser pleno, com liberdade, sem imposição, sem cartilha. É uma coisa muito íntima na vida da gente. Me sinto muito bem dentro da Igreja, o que questiono é a parte política: o papel do negro e da mulher dentro da Igreja. As Igrejas têm uma dívida muito grande para com as mulheres e os negros.

Você vai sempre à igreja?
- Sim. Sou militante, religiosamente falando.A título de desabafo, já que SEM FRONTEIRAS faz hoje essa entrevista comigo: sou uma pessoa religiosa e não abro mão. E sou reconhecidamente uma pessoa evangélica. Isso me faz bem, mesmo que seja para levar paulada...

Quais são suas propostas, como senadora, para acabar com o racismo no Brasil?
- Apresentei várias propostas: introdução do ensino da história da África no currículo escolar, colocar o Zumbi no livro dos heróis da pátria, fazer do dia 20 de novembro um feriado nacional, demarcação das terras dos antigos quilombos, quotas de participação da imagem do negro nos meios de comunicação e tantas outras que não me lembro.
Agora mesmo, estava apresentando à Comissão de Justiça do Senado o meu projeto autorizando o governo a criar delegacias de crimes raciais. Não precisa construir prédio. Basta ter, dentro das delegacias, pessoas preparadas para se encarregar do que denominamos crimes raciais. Tudo isso que estou colocando para você está tramitando.
No início da entrevista, você me perguntou se eu tinha um sonho. Posso contar realmente qual é?

À vontade.
- Toda a minha formação política, a minha cabeça, vem da Igreja católica. Eu pertencia à pastoral de favelas e sempre tive um carinho muito grande pela Igreja católica, pelo trabalho que ela desenvolve. Mas eu gostaria de dar um testemunho: na verdade, vivo ecumenicamente. É o meu sonho: o ecumenismo. Fui filha de umbandista, minha mãe me criou na umbanda. Mas ia também para a igreja. Na Igreja católica, participei da Legião de Maria.
Depois, aos 26 anos, fui para a Igreja evangélica. Eu sai da Igreja católica mais por uma questão espiritual. Mas não abri mão da política. Na verdade, eu estaria traindo os meus princípios cristãos se não continuasse a minha militância política. Eu sei que o Evangelho é renovador.
Dentro dessa concepção de um Evangelho pleno, vejo a necessidade de trabalharmos juntos, mesmo sendo de Igrejas diferentes. Porque, como é que poderemos chegar ao que diz a bíblia - "Haverá um só rebanho e um só pastor" - se não irmos criando condições para isso? E isso não apenas do ponto de vista "expiriteral", como eu digo, extraterrestre. Você tem que materializar a fé, porque a fé sem obras é morta. Por isso, acho que não existe contradição entre fé e política.