México

Quando se perde o medo

Bate-papo com o bispo Samuel Ruiz, de Chiapas.

Faz dois anos. Aconteceu no exato momento em que o México oficial do ex-presidente Salinas - antes da famosa crise que jogou o país no buraco - anunciava sua entrada gloriosa no Primeiro Mundo. Em 1º de janeiro de 1994, o México se unia à maior potência do mundo (Estados Unidos) e ao Canadá para formar o Nafta, o tratado de livre-comércio entre os três países.
Nesse mesmo dia, nas selvas do Estado de Chiapas, sul do país, a população indígena se levantava em armas para protestar contra séculos de exclusão e exigir mudanças. Até então, nunca o mundo tinha ouvido falar neles, os guerrilheiros do Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN).

ANSEIO NACIONAL - "Há uma dimensão interessante nisso tudo", analisa o bispo de San Cristóbal de las Casas, a terceira maior cidade de Chiapas e epicentro dos conflitos. Samuel Ruiz lembra que os indígenas não se rebelaram contra os grandes proprietários de terra locais, a polícia ou o governo do Estado, embora tivessem motivos de sobra para isso.
O EZLN declarou guerra ao próprio exército mexicano, o que até poderia parecer cômico: era como Davi querendo enfrentar Golias. Isso mostra que "há uma problemática que explode em Chiapas, mas que é de todo o país".
Para Samuel Ruiz, os indígenas tiveram a coragem de lançar um grito preso há anos na garganta de muitos mexicanos, e isso "comoveu fortemente a população". O convite dos zapatistas não foi para que o país se levantasse em armas e se juntasse a eles, e sim "para que todos participassem da construção de um México democrático".

NUVENS ESCURAS - Mas, então, como se explica toda a euforia primeiro-mundista do México de dois anos atrás? O país acabava de ser admitido na OECD, o seleto clube das nações mais ricas do mundo. E causava inveja a muitos governos e candidatos a governo latino-americanos, deslumbrados com o sonho neoliberal.
É que as coisas que se diziam, muitas vezes manipulando estatísticas, "não correspondiam à realidade", responde Samuel Ruiz. Bastava ter olhos para ver. "Com que base se podia afirmar que o país estava ingressando no Primeiro Mundo? Os indígenas sofriam por causa da situação e eram perseguidos. Em toda parte havia demandas por justiça, junto com repressão e desaparecimento de pessoas."
Samuel Ruiz recorda que, no ano anterior ao levante indígena, em dezenove dos 31 Estados mexicanos houve protestos contra as fraudes nas eleições para governadores, vencidas pelo partido governista, o PRI (Partido Revolucionário Institucional), no poder há mais de seis décadas.
Nesse mesmo ano, durante a visita do papa João Paulo II ao país, a diocese de San Cristóbal de las Casas entregou ao pontífice católico uma carta pastoral nascida da discussão com as comunidades locais, formadas predominantemente por indígenas. "Nessa carta, como já tínhamos feito outras vezes, lançamos um sério alerta", conta Samuel Ruiz. "Se a repressão continuasse e não fossem ouvidas as justas reivindicações dos indígenas, poderia sobrevir um temporal fatídico, porque nuvens escuras se levantavam no horizonte."
O sinal máximo, não somente em Chiapas mas em todo o México, é que os movimentos organizados estavam "perdendo o medo ante a repressão". Para Samuel Ruiz, "quando isso sucede, estamos no limite de uma explosão. E foi o que aconteceu".

QUINHENTOS ANOS - Mas Samuel Ruiz chama a atenção para um outro dado importante do conflito entre o EZLN e o Estado mexicano: o levante representa, também, "a personalidade emergente do indígena, dominado por quinhentos anos".
A causa pela qual lutam os indígenas chiapanecos, descendentes dos maias, não é só deles, mas de todos os indígenas do México e também do continente. É uma voz nova que se levanta, a voz dos que sempre estiveram à margem. É o indígena propondo não apenas o reconhecimento de seus direitos e de sua dignidade enquanto povo, mas também a transformação de toda a sociedade nacional.
"Depois de séculos de silêncio, os indígenas agora querem falar de si próprios", diz o bispo. E, segundo ele, há sinais de que "a discriminação está sendo derrubada". Existe "um despertar da esperança dos cidadãos".
O fato mais positivo é que os indígenas logo conseguiram convencer o governo a sentar na mesa de negociações. Encabeçando a Comissão Nacional de Interme-diação (a Conai), Samuel Ruiz deixou claro, desde o início, que não apóia o recurso às armas. Mas entende as causas que leva-ram a essa situação e concorda com as jus-tas aspirações dos indígenas.
E avança uma hipótese, tendo em vista o desenrolar do processo até o momento: "Quem sabe não estamos diante de uma forma nova, pacífica e dialogante de transformação estrutural?".

RESPOSTA DA SOCIEDADE - Samuel Ruiz se diz esperançoso, mesmo levando em conta os "riscos e perigos" que ameaçam o processo. "Há uma possibilidade muito concreta, já materializada, de que o indígena se torne gestor e protagonista do seu próprio destino. E que, também, dê sua contribuição para a construção de um México novo."
Uma das coisas que ele considera um sinal de esperança é a resposta de pessoas de todo o México ao apelo para que se fizessem presentes na região do conflito, lá onde o exército ameaçava as comunidades indígenas. "Há quase cinqüenta lugares onde gente da sociedade civil está presente, não apenas para ficar perto dos indígenas, mas também para compartilhar a vida deles."
Compareceram e estão vivendo nos lugares mais inóspitos e distantes, ficam ali por uma ou mais semanas, vão embora, vêm outros. E, quando retornam, levam consigo a consciência de que "é preciso estar perto do indígena". E também a convicção de que "receberam mais do que puderam dar".


Samuel Ruiz