Trabalho infantil (1/2)

O Brasil não gosta deles


Mesmo proibido por lei, aproximadamente 3,5 milhões de menores de 14 anos trabalham no Brasil. A maioria ganha menos de meio salário mínimo. Muitos são escravos em carvoarias, canaviais e fazendas. Grandes empresas nacionais e multinacionais lucram com a exploração infantil e o trabalho escravo. Produzem matéria-prima com mão-de-obra escrava ou compram a produção de terceiros. Neste mês de março está sendo realizado, no México, o Tribunal Internacional Independente contra o Trabalho Infantil, com a participação de organizações do mundo inteiro. O Brasil também participa, e não vão faltar denúncias contra o descaso de órgãos oficiais e a crueldade com que o país trata os filhos de milhões de brasileiros excluídos. O suor e o sofrimento dos pequenos trabalhadores brasileiros alimentam a engrenagem da produção e do consumo dentro e fora do país. Segundo a Organização Internacional do Trabalho, existem 200 milhões de crianças trabalhando em todo o mundo.


João Ripper – Imagens da Terra


O carvão entrando pelos pulmões


“O Brasil é um país que condena e mata o seu próprio futuro”, fala Casimiro da Cruz, carvoeiro de 58 anos. Tem voz rouca e barba branca, parece bem mais velho.

“Também, que futuro esse país pode esperar de uma criança que nem eu? Tenho 15 anos e já estou cansado de trabalhar. Ainda tenho sorte. Sei que por aí estão até matando meninos e meninas”, responde, pensando frase por frase, Duarte de Oliveira, neto de Geraldo. Ele agradece a Deus por estar vivo, mas fica triste:
“O Brasil não gosta de mim”.

O diálogo se dá no alto de um forno. As vozes chegam entrecortadas pelo vento, entre a fumaça e a emoção.

Acaba de amanhecer na carvoaria da fazenda Nezinha, município de Bocaiúva, norte de Minas Gerais. Seu Sengué, como é chamado Geraldo, se orgulha de ser considerado um dos melhores carvoeiros da região. Ele e o neto produzem até três caminhões por mês e, juntos, conseguem retirar 300 reais. Sengué, que aleijou um dos dedos da mão no trabalho, quer mudar de profissão, e Duarte, que trabalha desde os 12 anos, sonha em voltar a estudar.

Avô e neto acabaram de embarreirar (tampar rachaduras) o forno. Geraldo vai tomar um café com a companheira Otaviana de Jesus, carvoeira de 69 anos. Meiga, ela fala da luta do seu velho companheiro. Ele estica o corpo magro e lembra que são apaixonados até hoje. Lá fora, sentado no chão, o neto mais novo, Ronei, de 7 anos, aguarda o irmão. Duarte abre os braços e salta de cima do forno. Por segundos, é como um grande pássaro.

O carvão que produzem vai para a siderúrgica Lucape, que fabrica cerca de 9 mil toneladas de ferro-gusa (indispensável para a fabricação do aço) e exporta aproximadamente 7.200 toneladas, principalmente para os Estados Unidos. O que não vai para fora se transforma em virabrequim da Siderúrgica Belgo-Mineira. Ou vira fio, prego, parafuso ou chapa de automóvel na Açominas, que por sua vez vende para a Volkswagen, Mercedes e Bombril.

Só em Minas Gerais, 100 mil pessoas trabalham na produção anual de 2,3 milhões de metros cúbicos de carvão, o que representa 70% da produção nacional, valendo cerca de 75 milhões de dólares. As condições de trabalho são as piores possíveis. Essenciais para a economia brasileira, esses homens, mulheres e crianças dificilmente podem ser considerados cidadãos. Ironicamente, a maioria nem sequer sabe quem é o patrão. Nas carvoarias brasileiras, a miséria foi terceirizada.

No Mato Grosso do Sul, nos municípios de Ribas do Rio Pardo, Águas Claras e Três Lagoas, cerca de 10 mil pessoas – aproximadamente 4 mil das quais são crianças – trabalham como escravos em 600 mil hectares de pinus e eucalipto.

Na época da ditadura militar, no governo Garrastazu Médici, foram investidos 175 milhões de dólares no que ficou conhecido como o maior projeto de reflorestamento do mundo, objetivando instalar fábricas de papel e celulose. Treze empresas, entre as quais a Nestlé, receberam incentivos fiscais por mais de uma década. Hoje, mais de vinte anos depois, as fábricas não existem, e a região se transformou na maior senzala do mundo.

Mais de 1 bilhão de árvores já viraram carvão no Estado. Uma família de quatro pessoas – pai, mãe e dois filhos – pode produzir em média 400 metros cúbicos de lenha, o equivalente a 2 hectares de floresta, cerca de 3.332 árvores cortadas por semana. Em um mês são 13.300 árvores que viram carvão e vão para as siderúrgicas, onde são transformadas nos mais diversos materiais de consumo de ferro e metais. A maior parte da produção vendida nos grandes centros – desde pregos, passando por talheres, panelas e chapas de automóvel – tem origem em trabalho análogo ao de escravos. De 20% a 30% vêm da exploração do trabalho infantil.


O espelho da educação rural

Olhos d'Água é uma escola rural no município de Bocaiúva, norte de Minas Gerais. Todos os seus alunos trabalham para ajudar os pais na agricultura. Alguns são pequenos carvoeiros, outros ajudam os pais, que são peões, pequenos produtores, bóias-frias.

Com um rendimento escolar em geral inferior ao das crianças de outras escolas que não precisam trabalhar, a maioria dos alunos de Olhos d'Água sofre de fadiga física, são mal nutridos e sentem muito sono. De cada cem alunos, quinze abandonam a escola antes de completar o terceiro ano e 35 repetem de ano. Só dezoito alunos conseguiram chegar a oitava série.

Segundo a diretora Maria do Carmo Alves Dias, a maior causa da evasão escolar é o trabalho infantil, ligado à baixa renda familiar. Depois vêm os problemas de saúde, a falta de transporte e o despreparo dos professores.

Josilaine Gonçalves da Silva, 9 anos, olhos que parecem saltar, corpo bem magro e pele queimada, cursa o primeiro ano na sala da professora Geraldina. Seus irmãos Tião, de 10 anos, e Eliane, de 11, estudam na mesma sala. Os outros oito irmãos não estudam. São filhos de carvoeiros. Josilaine acha o carvão ruim, pois já perdeu o irmão mais velho, Waldeci, e um tio. “O carvão entra no pulmão da gente, e aí não tem mais jeito, vamos pro buraco.”

Eliseuma Rozário de Souza, 10 anos, jeito tímido e corpo pequenino, falta muito às aulas porque quase todos os dias ajuda o pai a preparar o roçado. Por isso, não consegue sair da primeira série. Ela e os outros dois irmãos de 7 e 4 anos ajudam o pai a ganhar um salário mínimo na fazenda Paredão, de propriedade do advogado e garimpeiro Geraldo Coelho. A casa onde moram não tem água encanada nem luz. As irmãs mais velhas, de 14 e 15 anos, trabalham como empregadas domésticas em Belo Horizonte.


(João Ripper, Imagens da Terra, p. 13)


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