Diálogo entre religiões

Timóteo, o amoroso


No diálogo com o candomblé, o monge beneditino Timóteo Amoroso Anastácio, falecido em 1994, fez do respeito uma norma constante. A Bahia, para ele, virou paixão.


Heitor Frisotti


O meu primeiro contato com ele aconteceu durante um encontro organizado pela Comissão Justiça e Paz de Salvador, sobre racismo e discriminação das religiões afro-brasileiras. Timóteo Amoroso Anastácio, ou dom Timóteo, como era conhecido, foi convidado a falar sobre a abertura da Igreja católica ao diálogo inter-religioso e o compromisso com a justiça.

Depois nos encontramos outras vezes. Não muitas, para dizer a verdade. Eu gostava de conversar com ele e lhe pedir conselho sobre os passos a dar no diálogo com as comunidades de candomblé na Bahia.

Mineiro, não se adaptou facilmente à Bahia, inclusive aos horários. Reconhecia candidamente: "Mineiros e baianos são impontuais. Só que os mineiros chegam uma hora antes, e os baianos, uma hora depois".

Na verdade, dom Timóteo nunca errou a hora. Como todos os santos, soube testemunhar o amor de Deus pelos pobres e oprimidos da Bahia na hora certa. Com ele, o mosteiro se tornou uma igreja aberta, tanto para os grupos que lutavam contra a ditadura militar como para as autoridades de candomblé. A ele se devem também os primeiros passos desse diálogo.


HOMEM DE DIÁLOGO – Em 1965, depois de ter sido escolhido como abade do Mosteiro de São Bento, Timóteo recebeu de Eugênio Salles, então arcebispo de Salvador, a tarefa de pensar uma liturgia mais próxima à cultura negra. Amigo do antropólogo Vivaldo da Costa Lima, ogã do Axé Opô Afonjá, e de Mãe Olga do Alaketu, soube se aproximar de comunidades de candomblé com outro olhar e coração.

Foi assim que nasceu a Missa do morro, com atabaques, berimbaus e agogôs, fruto do esforço de Timóteo e do seu confrade Dominique. As críticas recebidas dos freqüentadores do mosteiro provocaram uma visita à Bahia do núncio apostólico no Brasil. Mas a iniciativa sobreviveu ainda por algum tempo. É que também Eugênio Salles tinha gostado da missa: "O Concílio Vaticano II era uma coisa recente, e havia muito clima de abertura", testemunhou Timóteo.

Em entrevista à revista Tempo e Presença, ele disse que o diálogo com o candomblé não deveria seria tanto de nível doutrinário. Porque, como explicou, o candomblé não frisa a doutrina. "É uma vivência ancestral, uma atitude, uma identidade, uma cultura ancestral que se expressa religiosamente. Foi isso, aliás, que salvou a identidade do negro, aqui... Por isso, acho que, com o candomblé, o diálogo é muito mais no nível da relação pessoa-pessoa, dentro do respeito."


AMOR PELA JUSTIÇA – Franzino, reservado, Timóteo era a encarnação do ditado brasileiro de que "tamanho não é documento". Quem o encontrava logo adquiria a certeza de estar diante de um homem de grande estatura moral. Irradiava paz e luz. Não intimidava. Menos uma vez, afirmam testumunhas.

Foi durante a ditadura militar, após uma manifestação de estudantes que acabou em pancadaria. Correndo da polícia, os jovens buscaram refúgio no mosteiro. Timóteo logo pediu aos confrades para abrigá-los e, arrumando-se às pressas, foi até à porta da igreja para reivindicar o direito de asilo, antiga tradição beneditina. Ia retrocedendo devagar – para permitir a todos de se esconder –, enquanto a polícia o empurrava para dentro da igreja.

Os ânimos tinham se acalmado, o respeito voltou, as armas baixaram. Até que um tiro foi disparado do pátio do mosteiro, provavelmente por algum agente da polícia infiltrado, estragando tudo. Mesmo assim, um grupo de rapazes e moças estava a salvo. Depois, Timóteo teve de administrar problemas surgidos com alguns monges. Onde já se viu hospedar mulheres no mosteiro?! Após muita conversa, o abade deu a sentença final: "A lei foi feita para o homem, e não o homem para a lei".


AMOR PELA BAHIA – Entrevistado pela TV Educativa da Bahia, em 1989, Timóteo confessava que a Bahia o fez descobrir a dimensão da alegria, do corpo, da dança, do prazer sensível. "O encontro, por exemplo, com o pessoal dos santos... Uma beleza! Um pessoal, inclusive, de grandes virtudes cristãs, de acolhimento, de humildade, de paciência, de gentileza, de hospitalidade e também de respeito. Nunca tentaram fazer com que eu deixasse a religião católica para me tornar um fiel de candomblé."

A Bahia, ele disse, representou um choque cultural tremendo. "Mas esse choque, em vez de me fechar nas minhas ideologias, me abriu, quebrou a crosta."

Na Bahia, encontrou a alegria de viver, sentia-se feliz, não pensava em viver em outro lugar. "Quando deixei o cargo de abade, não quis saber de escolher outra coisa. É aqui que eu quero ficar, viver e morrer, na graça de Deus e nos braços da minha mãe Igreja. Aqui, na Bahia."

Esse seu último desejo foi cumprido, em 3 de agosto de 1994. Nesse dia, uma multidão de baianos se despediu dele, com muitas orações, na sua viagem para junto do Deus que tanto testemunhou. (Heitor Frisotti, p. 22)