Somália
Islamismo linha dura


Rigores da sharia,
a lei muçulmana.


Giulio Albanese


– Cortar a mão de alguém, acredite, não é divertido! Entendo que, para vocês ocidentais, pode parecer absurdo, incompreensível. Mas é o único jeito de se viver em paz por aqui...

Mohamud Hagi Hassan, 50 anos – o autor da frase –, é presidente da Corte Islâmica da cidade de Giohar, localizada a menos de 100 quilômetros de Mogadíscio, a capital da Somália.

Fica difícil acreditar no discurso de paz de Mohamud, quando você se lembra das mãos penduradas bem na frente do prédio. É o castigo infligido a dois jovens condenados por roubo de animais.

"Antes da aplicação de penas desse tipo, a cidade vivia um clima de anarquia", explica Mohamud. "Hoje é tudo mais tranqüilo."


VONTADE DE DEUS – Em fevereiro de 1995, as tropas das Nações Unidas deixaram a Somália, depois de uma intervenção iniciada no final de 1992, sob o patrocínio dos Estados Unidos. Desde então, cresceu a violência entre os clãs em luta pelo poder. A população civil sofre horrores. Mogadíscio parece mais uma Sarajevo africana.

Não chega a ser o caso de Giohar, onde se respira certa calma. Contudo, é desaconselhável andar sem escolta pelas ruas da cidade. Mohamud afirma que a "sede de poder" é a responsável número um pela escalada da violência. "A situação tornou-se de tal forma intolerável, que fomos obrigados a recorrer à sharia."

Mohamud explica que o islamismo é a religião da submissão a Deus. O Alcorão – livro sagrado dos muçulmanos – contém a Palavra de Deus revelada ao profeta Maomé. "Obedecer a Deus significa pôr essa Palavra em prática. Isso se dá através dasharia, um sistema de leis que permite aos países islâmicos cumprir a vontade divina, especificando as responsabilidades de cada cidadão."


"OBJETIVO É A PAZ" – Não é verdade que todos os países muçulmanos estejam de acordo com a aplicação da sharia, e Mohamud sabe disso. Segundo ele, trata-se de uma questão de fidelidade ao Alcorão. Porque "não existe uma outra maneira de se fazer justiça".

Ele contesta as acusações de integralismo religioso. "Onde está escrito que integralismo seja uma coisa errada? O objetivo da sharia é estabelecer a paz. Em nossa tradição de fé, a paz está entre os 99 atributos de Deus."

No caso de roubo, é preciso decepar a mão do ladrão. "É um aviso que emana de Deus, que é poderoso, prudentíssimo", ensina o Alcorão. "A nossa religião diz que, sem essas regras e punições, é utopia pensar numa fraternidade duradoura entre os homens", sustenta Mohamud.


MISSÃO DIVINA – Pelo que se ouve, não parece que todos os somalis concordem com a aplicação da sharia. Será que a justiça comum não daria conta do recado?

A resposta de Mohamud é um contundente "não". Na Somália, todos os aspectos da vida religiosa, moral, econômica, política e social estão submetidos à revelação de Deus ao profeta Maomé.

Num país castigado pela guerra civil, é mais fácil comprar um punhado de balas que um pouco de comida. Apesar de tudo, a vida econômica parece ativa, levando o visitante a pensar que, para muitos somalis, o comércio seja mais importante que os problemas religiosos.

Um motivo a mais para o presidente da Corte Islâmica de Giohar e seus conselheiros continuarem firmes na defesa de sua missão – segundo eles de origem divina. É preciso afirmar a primazia do espírito sobre o dinheiro. "O ouro corrompe o coração do ladrão, e é por isso que a sharia tem razão de ser aplicada."


Onde fica a Somália

Nome oficial: 
  República Democrática da Somália
Localização: leste da África
Capital: Mogadíscio
Idiomas: árabe e somali (oficiais), 
         inglês, italiano
População em 1995: 9,3 milhões
Religião oficial: islamismo

O velho conflito entre clãs atrapalha o desenvolvimento da Somália, um país exportador de gado e banana, localizado no "Chifre da África", como a região é conhecida.
De 1992 a 1995, tropas dos Estados Unidos e da Organização das Nações Unidas (ONU) tentaram pôr ordem no país. A operação foi um fracasso. Soldados dos Estados Unidos envolveram-se nos combates entre os clãs locais, com baixas dos dois lados.
Em junho de 95, após a retirada das últimas tropas da ONU, Mohammed Aidid – chefe do mais importante clã somali e principal adversário da ocupação militar do país por forças estrangeiras – foi eleito presidente.
Aidid morreu no início de agosto passado, e o poder passou para as mãos de Ali Mahdi Mohammed, seu principal inimigo.

"Sharia" – A palavra árabe "Shari'a" significa "caminho", mais precisamente, o verdadeiro caminho da religião. Lei sagrada, deriva do que está escrito no Alcorão e na Suna.
O Alcorão, "ditado sobrenatural registrado pelo profeta inspirado", reúne a revelação divina ao profeta Maomé (ou Mohammad).
São também importantes os ensinamentos, ditos e ações do próprio Maomé, considerados perfeitos por ser ele o modelo por excelência do muçulmano. Toda essa tradição é conservada na Suna, uma coletânea que ajuda a explicar e esclarecer os versículos do Alcorão.
Para um muçulmano, não há distinção precisa entre o natural e o sobrenatural. O mundo é regido pela vontade divina (teocracia). Por isso, todos os aspectos da vida religiosa, moral, econômica e social estão submetidos à revelação entregue a Maomé, ou seja, ao Alcorão e à Suna. A revelação divina mostra o caminho a ser seguido, a lei (sharia).
Os sunitas – que seguem não apenas o Alcorão mas também a Suna – representam cerca de 90% dos muçulmanos. O outro grupo é o dos xiitas, que estão presentes sobretudo no Irã.