Congresso dos Sem-Terrinha de São Paulo

Os filhos
da terra

Enquanto os trabalhadores rurais mirins se encontravam em Brasília, quatrocentas crianças participavam, em São Paulo, do Primeiro Congresso dos Sem-Terrinha, organizado pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).

Além de participar de teatro, gincana e dança e de realizar uma manifestação pelas ruas centrais da cidade, os Sem-Terrinha escreveram um Manifesto ao Povo Brasileiro. Reproduzimos alguns trechos.


Somos os Sem Terrinha, estivemos reunidos entre os dias 12 e 14 de outubro para discutir a situação das crianças no campo. Fazemos parte do MST e, junto com nossos pais, lutamos pela reforma agrária.

Somos fruto de uma nação que não se importa com nosso futuro. Somos fruto do amor de nossos pais, que se preocupam com a gente e, por isso, moram no acampamento, às vezes passando muita necessidade. Mas sabemos que tudo é para não ver a gente debaixo da ponte, perdido nas ruas, pedindo esmolas, se prostituindo, roubando ou fazendo igual àquelas crianças que vimos um dia na esquina, com um nariz no saquinho. Falaram para nós que aquilo era cola.

Nós queremos sentir o cheiro das flores do campo, da terra tombada, do colo acolhedor de nossas mães, da chuva caindo na terra, fazendo brotar a semente.

Nosso pai diz que a terra é nossa mãe e que dela sai nosso sustento. É ela que nos abraça sem sentirmos e, quando ela produz, é porque seus filhos são bons e têm o dom de tirar dela o feijão, arroz, legumes e tudo aquilo que é importante para crescermos saudáveis.


Onde nós moramos existem muitos filhos maus, que deixam a terra abandonada, sem carinho. Não gostamos deles. Eles são maus. São fazendeiros com espírito assassino que roubaram a terra, estão acabando com a terra e querem matar nossos pais, que querem plantar e dar a vida por aquelas terras abandonadas. Eles são violentos e não gostam de ver a terra produzindo, por isso tombaram a plantação que nossos pais fizeram.

Quando a polícia chega em nossos acampamentos, todas as crianças ficam com medo, porque algum tempo atrás eles mataram dezenove pais numa cidade chamada Eldorado dos Carajás, no Pará. A gente chora muito porque não quer que matem nossos pais.

Os nossos pais gostam da terra e trabalham bastante - o dia inteiro. E ainda arrumam um tempinho para brincar com a gente. Se nossos pais fossem bandidos, eles não trabalhavam, nem estariam lutando para conseguir a terra para nela produzir.


A gente pensava que a polícia era para prender ladrão e matadores, mas descobrimos que isso não é verdade, porque foi a polícia que matou os pais de nossos amiguinhos, e até agora ninguém foi preso, nem mesmo um tal governador chamado Almir Gabriel, que segundo a gente ouviu, foi quem mandou matar aqueles companheiros.

Uma amiga nossa disse que no acampamento dela tem jagunço impedindo a companheirada de trabalhar na terra. Eles deram tiros para amedrontar as famílias e acabaram acertando uma moça da televisão. Essa amiga nos contou também que levou uma cesta de flores a um deles, que abaixou a cabeça como se fosse chorar, agarrado a uma espingarda enorme, da altura de nossa amiga, e ela lhe falou baixinho: "Nós queremos terra, não queremos guerra!".

Outro amigo contou para nós que o pai dele já conseguiu a terra. Eles trabalham na cooperativa, têm casa, uma escola bonita, muitas frutas, têm até trator! Mas ele disse que todos tiveram que lutar muito para conseguir tudo isso. Nossos pais estão sempre lutando, e nós também vamos lutar. Nosso pais falam que vamos produzir bastante para alimentar todo o povo, mas muitos de nossos amigos falaram que é difícil vender a produção porque o governo não ajuda em nada, eles têm que ir nas rodovias vender o que produziram para ajudar os pais.


Criaram o Estatuto da Criança e do Adolescente, que lemos e discutimos em nosso encontro, e ficamos sabendo de nossos direitos e deveres também. Só não sabemos porque ele não é cumprido (...).

O presidente fala na rádio e na televisão que faz a reforma agrária. Nossos avós falaram que outros também diziam a mesma coisa e que nunca fizeram nada. O tempo passa e ninguém faz nada.

Nós, Sem-Terrinha, queremos a terra e condições para produzir. Queremos a reforma agrária, porque sonhamos com um futuro melhor, uma vida mais digna. (...) Queremos construir um Brasil melhor. Queremos brincar sem medo da violência. Queremos estudar, ter direito a tudo aquilo que está escrito no Estatuto da Criança e do Adolescente.

Por isso, convidamos todo o povo! Menino, menina, pai, mãe, avô, avó, jovens. Vamos fazer a reforma agrária?! A gente não pode esperar que as crianças morram de fome.

Nós não temos uma casa grande. Nossos pais não têm um carro bonito, nossas mães não têm a mão lisa. Eles têm o rosto queimado pelo sol e a mão calejada de tanto trabalhar. Andamos de pés no chão, mas nos orgulhamos por sermos organizados, por nossos pais não serem covardes, por nossas mães estarem juntas na luta e por nós, crianças, nos sentirmos filhos da terra, sem medo de dizer: somos Trabalhadores Sem Terra e queremos garantir nosso futuro. Queremos garantir o futuro de nosso país.

Reforma agrária,
uma luta de todos e
dos Sem-Terrinha também!


Crianças do campo:

Do berço para o batente