Fórum Controle Social do BAHIA AZUL


3. O ESGOTAMENTO SANITÁRIO DE SALVADOR E OS QUESTIONAMENTOS DO FÓRUM

 

3.1 A CONCEPÇÃO DO SISTEMA
A concepção do Sistema de Esgotamento Sanitário de Salvador - SESS se deu no ano de 1968, com o Planejamento Geral do Esgotamento Sanitário de Salvador, realizado pelo escritório do Engo. Walter Sanches e Associados. O sistema previa a execução de rede coletora de esgoto em 14 bacias e estações elevatórias, de forma que os esgotos fossem conduzidos para um único ponto, o emissário submarino situado no Rio Vermelho.
Entre 1971 e 1974 foram construídas as bacias coletoras de esgoto da Barra, Rio Vermelho e Pituba e o emissário submarino, com 1.020 metros no seu trecho terrestre e 2.000 metros no trecho marítimo, lançando os esgotos a uma profundidade de 27 metros.
Em 1984, a Empresa Baiana de Águas e Saneamento S.A. (EMBASA) elaborou o Plano Diretor de Esgoto da RMS, ampliando para 42 o número de bacias contempladas no Planejamento Geral de 1968 devido à expansão da área urbana e à incorporação do município de Lauro de Freitas. A concepção do sistema foi mantida, prevendo-se, no entanto, outro emissário submarino na altura do rio Jaguaripe e uma Estação de Tratamento de Esgoto (ETE) às margens do rio Joanes para atender à região de Lauro de Freitas. Os esgotos dos subsistemas Subúrbio, Comércio e Pituaçu seriam revertidos para o do Camarajipe, para posterior lançamento no emissário submarino existente. Em 1993, a EMBASA promoveu a Revisão e Atualização do Plano Diretor de Esgoto (RAPDES), mantendo a mesma concepção do anterior, realizando apenas a revisão da projeção da população e das vazões de esgoto.
Atualmente, o esgotamento sanitário da cidade do Salvador é realizado por um sistema misto que envolve:
Em conjunto, esses sistemas atendem a 28% da população.
Segundo a RAPDES (1993), o emissário submarino tem capacidade para transportar e dispor 7,8 m3 /s. Atualmente o emissário veicula 1,2 m3/s, atingindo apenas 15% de sua capacidade e atendendo, como já dito, a 15 % da população de Salvador. Foram 100 milhões de dólares do dinheiro público investidos nessa obra, que se encontra ociosa há duas décadas. Segundo a revisão final da RAPDES (1995), a nova previsão é que a capacidade máxima do emissário, de 8,3 m3/s, seja atingida em 2013, quando então entraria em operação um novo emissário em Jaguaripe, veiculando 3,47 m3/s.
Cerca de 72 % da população da cidade são excluídos dos sistemas de esgotamento sanitário e dispõem seus esgotos de forma variada. Pode-se dizer que:
Assim, a maior parte dos esgotos produzidos na cidade está sendo lançada no solo e nos corpos d’água, podendo contribuir para a proliferação de doenças relacionadas com a falta de saneamento, notadamente na população infantil, assim como para a poluição dos rios que cortam a cidade e das praias.
Segundo MORAES (1993), 56 % da população de alta e média renda (> 5 SM) são atendidos pelo sistema da EMBASA, contra os 14% da população de baixa renda (< 5 SM), revelando um claro privilégio no atendimento das camadas de maior poder aquisitivo.
Retomando a questão da concepção do sistema de esgoto de Salvador, percebe-se que, ao contrário do que o Plano previa, ao longo do tempo, várias lógicas se foram colocando na produção da realidade, o que levou à fuga do "planejamento" proposto, apesar de este ter sido seguidas vezes reiterado em outros "planos". No lado formal, temos um planejamento atrelado a uma idéia dos anos 60/70, onde se convivia mais fortemente com tecnologias convencionais e sistemas ditos centralizadores, concebidos a portas fechadas por um grupo de técnicos respaldados pela tecnoburocracia. Foi também nessa época, através da política do governo militar, que se iniciou no Brasil a era dos hoje tão questionados Planos Diretores, concebidos de forma burocrática e centralizadora, distantes da realidade e dos anseios da maioria. Na atualidade, ao contrário, o avanço tecnológico, a própria concepção da ciência e da gestão pública e - por que não dizer - também a globalização da economia colocaram na cena da virada do terceiro milênio novos paradigmas, que passam a permear os diversos campos. A descentralização, o reconhecimento da diversidade e das diversas alternativas se colocam na ordem do dia. Portanto, a concepção de modernidade dos anos 90 se afasta naturalmente daquela dos anos 60/70. O que é "moderno" hoje não são mais os empreendimentos ditos arrojados, as obras de grande porte. É desnecessário lembrar os danos sociais acarretados por essa concepção, ao fomentar a execução de obras gigantescas, principalmente estradas e barragens.
Quanto à questão específica da concepção do Sistema de Esgoto de Salvador, pode-se dizer que a revisão do Plano agora nos anos 90 não contempla as mudanças de paradigmas e posturas governamentais na relação com a sociedade, mostrando-se em descompasso com o processo de redemocratização do país, com os avanços tecnológicos e, principalmente, com a cidade real. Quanto a esta, ignorou-se que ao longo de duas décadas ela buscou caminhos alternativos para resolver a problemática de destinação dos esgotos, lançando mão de fossas, redes simplificadas e sistemas independentes, estes últimos incentivados por política da própria EMBASA para fazer frente à realidade que batia a sua porta, mas que fugia às amarras do Plano concebido. Como então ignorar essa realidade, os investimentos, privados e públicos, feitos durante todos estes anos? Como conceber um Plano ignorando as tecnologias alternativas, hoje já testadas e aceitas no mundo todo? Como conceber um Plano que não se auto-avalia para detectar por que não se concretizou ao longo dos anos? Como conceber um Plano que não promove um debate amplo com a sociedade?
Por fim, para sistematizar a postura do Fórum quanto à concepção do Sistema de Esgotamento Sanitário de Salvador, podem-se salientar os seguintes pontos:
A concepção de coletar, transportar e lançar a quase totalidade dos esgotos num único ponto está em desuso em quase todo o mundo, devido ao alto consumo de energia e capital e à vulnerabilidade operacional, sendo questionável, portanto, do ponto de vista ambiental.
A tecnologia de redes convencionais é extremamente cara. Se fosse mais largamente utilizado, o sistema condominial levaria a uma redução de custo da ordem de 30-60%, colocando-se inclusive como mais compatível com a realidade da cidade devido a sua característica desordem na ocupação do solo. Este sistema também prevê a participação popular, autônoma e democrática, no processo de discussão e implantação. Essa tecnologia vem sendo adotada em várias partes do país e é recomendada por organismos internacionais, como a Organização Pan-Americana da Saúde. As únicas exigências são que haja um processo participativo da comunidade- alvo, de forma a assegurar a boa utilização do sistema, que seja bem executado e que ocorram atividades de manutenção periódica, estas últimas pré-requisito de qualquer sistema.
A existência de quase uma centena de sistemas independentes de esgotos não pode ser ignorada. Sua eficiência deve ser avaliada, visando seu aproveitamento.
As áreas atualmente servidas por tecnologias não convencionais devem ser avaliadas, considerando o grau de salubridade ambiental e a possibilidade de incorporar essas alternativas ao sistema.
A previsão de coletar e transportar os esgotos do subúrbio através de elevatórias deveria ser revista, considerando a possibilidade de lançá-los numa estação de tratamento situada na própria região, com efluente devidamente tratado e conduzido à Baía de Todos os Santos.
Sobre este último ponto, é necessário ressaltar que os argumentos para justificar a não utilização desta solução foram insuficientes, contraditórios e mesmo irresponsáveis. A vazão de esgoto das bacias que drenam para a Baía é insignificante diante da capacidade de renovação de suas águas e de diluição (sua "boca" é 6 vezes maior que a da Baía de Guanabara, e a variação de maré atinge 3 metros), isto sem considerar que os esgotos seriam tratados antes de seu lançamento.
 
3. 2 AS PRIORIDADES DE ATENDIMENTO
A lógica da política de saneamento preconizada pelo PLANASA - Plano Nacional de Saneamento, concebido também nos anos 70, infelizmente ainda se mantém no estado da Bahia, apesar da sua falência e extinção na década de 80. A definição de prioridades de atendimento à população com serviços de água e esgoto ainda hoje se respalda nos pressupostos do retorno financeiro do capital investido através da cobrança de tarifas.
O Programa BAHIA AZUL não é diferente. O critério adotado para a prioridade de implantação das bacias coletoras de esgoto foi o retorno monetário do investimento, desconsiderando o quadro sanitário e de saúde das diversas áreas da cidade, principalmente da periferia, que foi excluída durante todos estes anos do acesso a esse serviço básico. Assim, até o momento foram privilegiados os bairros onde reside a população com maior capacidade de pagamento.
O argumento utilizado, que na realidade tem fortes vínculos com a concepção referida anteriormente, foi a necessidade de reduzir a capacidade ociosa do emissário submarino, conduzindo para ele os esgotos produzidos nas bacias mais próximas. É notório que esse argumento se traduz num sofisma e numa postura tecnoburocrata, não voltada, portanto, para a cidade real, mas para a cidade idealizada nas pranchetas e gabinetes dos funcionários e escalões do governo, em consonância com os interesses dos empresários e elites, à medida que a população que mais necessita do serviço não é ouvida nem atendida com prioridade.
Contraditoriamente, do ponto de vista ambiental, os subsistemas Comércio e Subúrbio, que são os únicos a contribuir com esgotos sanitários para a Baía de Todos os Santos, foram, inicialmente, previstos na RAPDES de 1993 para serem atendidos apenas em 1997 e 1998, respectivamente, com nível inicial de atendimento de 20% da população e previsão de alcançar o nível de atendimento de 80 % em 2002 e 2003. Ressalta-se que o mote da propaganda em torno do BAHIA AZUL está sendo realizado em torno da despoluição da Baía de Todos os Santos, e justamente a área que nela lança esgotos teve previsão inicial para ser atendida nos anos referidos. Certamente, o fato de o Governo do Estado receber reiteradas críticas das ONGs em torno dessa decisão contribuiu para sua revisão. Isso pode ser constatado nas recentes divulgações do Governo e no processo de licitação para as obras de esgotos nas bacias de Lobato, Cobre e Periperi, embora ainda deixando de fora a bacia de Paripe.
Não se pode, no entanto, ter uma postura ingênua e deixar de considerar que também existe uma série de interesses em torno da área do subúrbio, tanto do ponto de vista político-eleitoral como empresarial, o que certamente levou o Governo a adotar esta decisão. Toda atenção deve ser dada a essa área, pois os investimentos públicos a serem realizados poderão ser apropriados pelo capital imobiliário, em detrimento da população local. Esse risco aumentará na medida em que não se desenvolverem projetos capazes de gerar emprego e renda, proporcionando acesso dos cidadãos aos benefícios gerados pelos programas/projetos governamentais. Ao se melhorar a infra-estrutura do subúrbio (regularizando o abastecimento de água e implantando o esgotamento sanitário através do Programa BAHIA AZUL, além de drenagem pluvial, pavimentação e recuperação ambiental através de solicitação de financiamento da Prefeitura Municipal de Salvador em análise no BID), a área passará a ser procurada para investimentos do capital imobiliário (o que já vem ocorrendo) e se tornará atraente para a classe média, que demanda habitação com serviços urbanos de qualidade, além da vista exuberante da BTS proporcionada pelo local. E, assim, a população local poderá ser levada a mudar-se para áreas mais distantes, não dotadas de infra-estrutura e de condições satisfatórias para uma vida saudável e produtiva. Processo semelhante é relatado por OLIVEIRA et al. (1995) ao avaliar o programa Reconstrução-Rio na Baixada Fluminense.
 
3. 3 A QUESTÃO DA TARIFA
Todo serviço de abastecimento de água e esgotamento sanitário prestado diretamente ou através de concessão é remunerado através de tarifas cobradas aos consumidores. Essas tarifas são estabelecidas visando cobrir os custos de implantação e operação dos sistemas implantados.
Assim, na cidade do Salvador, 90% da população ligada à rede de abastecimento de água operada pela EMBASA paga por esse serviço em função da classe social e dos níveis de consumo. A população que está ligada à rede pública de esgoto da EMBASA ou que é servida por sistema de coleta e tratamento independente, além de pagar a água consumida, paga também pelo serviço de esgoto. Os que estão ligados à rede da EMBASA pagam de conta de esgoto 80 % do valor da conta de água, enquanto que os ligados à rede dos sistemas independentes pagam 45%, - isto porque esta não foi implantada pela EMBASA, que cobra apenas a operação do sistema.
Dito isto, fica claro que os futuros usuários do serviço de esgotamento sanitário implantado pelo BAHIA AZUL passarão a pagar por ele a partir do momento em que sua residência for ligada à nova rede coletora. No BAHIA AZUL, o valor da tarifa de esgoto é calculado segundo os critérios descritos anteriormente, sendo que a tarifa será de 45% do valor da conta de água nos locais onde forem implantadas redes condominiais e a população assumir sua manutenção.
Assim sendo, embora a cobrança do serviço para o novo usuário não represente um aumento da tarifa cobrada pela EMBASA, ele representará efetivamente um aumento na conta mensal a ser paga pelo consumidor à EMBASA, e consequentemente, isso significará um aumento nas despesas mensais do usuário.
Além disso, a EMBASA será obrigada a realizar aumentos tarifários, atualmente chamados de "recuperações tarifárias" , para garantir aos órgãos financiadores do Programa o retorno do capital emprestado para as obras. Foi inclusive com o intuito de cumprir com acertos mantidos com a missão do BIRD que o Governo do Estado autorizou a EMBASA a realizar a primeira "recuperação tarifária" em junho e julho de 1995, quando então a tarifa aumentou em 32%.
O Fórum não discorda da cobrança do serviço. No entanto, discorda dos valores estabelecidos e da não divulgação dessa informação para a população através dos instrumentos que vêm sendo utilizados na mídia para divulgar o Programa. Uma outra questão diz respeito aos critérios técnicos utilizados para a definição das tarifas. Existe a necessidade de elaboração de estudos contendo as planilhas de custos que justifiquem os 80% e 45% utilizados para a definição da tarifa de esgoto, na medida em que estes valores não podem sair da "manga" da tecnoburocracia do governo, pois sabe-se que uma boa parcela da população hoje excluída de condições mínimas de sobrevivência vai ter dificuldade para pagar por esse serviço.
É necessário, portanto, que a população conheça e discuta amplamente a política tarifária a ser adotada pelo Governo com o BAHIA AZUL, exercendo dessa forma o seu direito de cidadã e consumidora, apesar da resistência do Governo em estender esse debate à sociedade baiana, que hoje pode falar da despoluição das praias mas não está informada sobre quanto vai pagar por isso. Deve-se buscar avaliar as possibilidades que tem o povo de pagar esta conta, e como deve ser paga, segundo as condições sócio-econômicas de cada grupo social.