II Consulta de Teologia e Culturas Afro-americanas e Caribenhas São Paulo, 7-11 de novembro de 1994 |
Dom José Maria Pires
João Pessoa, PB (Brasil)
Alegro-me porque meus olhos estão vendo a salvação que Deus preparou diante de todos os povos; estão contemplando a luz que se espalha sobre todas as nações (cf. Lc 2,30-31). Em passado não muito remoto, seria impensável uma reflexão teológica sobre cultura religiosa africana. Religião vinda da África foi sempre tratada como grosseira superstição ou como embuste diabólico de que os cristãos deviam conservar-se distantes. Nossos colonizadores, vindos de Espanha e Portugal nos séculos XVI a XIX, sentiriam cheiro de blasfêmia ou de heresia neste encontro, a começar pelo título que o encabeça: II Consulta Ecumênica de Teologia e Culturas Afro-americanas e Caribenhas.Numa visão mais próxima de Trento do que do Vaticano II, essa reunião não poderia ser considerada nem teológica nem ecumênica. Ecumênico foi um qualificativo reservado - e ainda o é em muitos ambientes eclesiásticos - ao esforço de compreensão e comunhão entre as Igrejas cristãs. Com os não-cristãos - e este seria o caso da cultura religiosa africana - poderia haver um diálogo religioso sem atingir o nível de comunhão, sem ecumenismo portanto.
De qualquer modo, já nos distanciamos da teologia que duvidava da humanidade do negro e que justificava o cativeiro como meio de ganhar a salvação. Felizmente, os tempos são outros, especialmente a partir do Concílio Vaticano II. Ele foi, como profetizou João XXIII, um novo Pentecostes para a Igreja. Janelas se abriram e permitiram que o sopro do Espírito invadisse a Igreja e a renovasse de modo que ela passasse a entender que ela não é dona do Espírito nem dona da verdade. O Espírito sopra onde quer e não fica preso aos limites das instituições eclesiásticas. Se desde o início da criação, "um vento impetuoso soprava sobre as águas", por que negar a possibilidade de ter havido outros pentecostes antes e depois do que nos foi descrito no livro dos Atos dos Apóstolos? E se "muitas vezes e de modos diversos, falou Deus outrora a nossos pais pelos profetas" (Hb 1,1), é pelo menos possível - eu diria: é provável, é certo - que Ele tenha falado também aos nossos pais africanos e eles nos contaram o que seus pais ouviram dos profetas do Senhor.
É à luz dessa certeza atestada pelos Padres da Igreja e retomada pelo Vaticano II que se pode afirmar que esta II Consulta é ecumênica e está dentro do campo da pesquisa teológica. É teologia porque se situa na busca das "sementes do Verbo" e das "preparações evangélicas" presentes na cultura religiosa africana implantada na América e no Caribe por nossos antepassados que da África foram trazidos aos milhões como escravos. É ecumenismo, porque numa atitude de humildade e de grandeza, reconhecemos que a África tem o que nos ensinar sobre Deus e sobre o seu projeto do Reino: um mundo fraterno, solidário, alegre e feliz.
Esta II Consulta é mais um testemunho de que, mesmo reconhecendo e aplaudindo os passos significativos dados após o Vaticano II, estamos conscientes de que a Igreja ainda necessita de conversão no que toca à sua visão e relação com o povo negro e a cultura religiosa africana, especialmente com a religião dos Orixás. Uma conversão do coração e não da mente apenas. Achamos que não é suficiente reconhecer valores descobertos no estudo, na pesquisa; é necessário ir além e abrir-se a eles, acolhê-los com simpatia.
É "em nome do Deus de todos os nomes, Javé, Obatalá, Olorum, Oió",(1) que tentarei apresentar o Deus da Vida nas comunidades afro-americanas e caribenhas. Faço-o com a consciência de meus limites; não sou historiador nem pude até hoje me aprofundar no estudo das múltiplas expressões da religiosidade africana na América e Caribe. Faço-o, porém, com a ousadia de quem deseja contribuir para uma mudança de atitudes: as Igrejas cristãs hão de entender que a África pode ajudá-las a cumprir sua missão evangelizadora na América Latina e no Caribe. E nós, descendentes de um povo que foi escravizado, não precisaremos mais de esconder nossa identidade ou de camuflar nossas atitudes manifestando-as somente em ambientes de absoluta confiança. Não precisaremos deixar de ser negros para ser cristãos.
Quando estive em Salvador para as comemorações do cinqüentenário do I Congresso Eucarístico Nacional, participei de um encontro entre agentes de pastoral negros e representantes dos "cultos africanos". Nas apresentações, uma mãe-de-santo protestava: "Fui convidada para uma reunião dos católicos com representantes dos cultos africanos. Eu quero dizer que não represento nenhum culto africano. Eu sou da religião dos Orixás, tão religião como as outras". Um sacerdote presente se identificou: "Eu sou padre F., pároco da paróquia N., iniciado no terreiro de Mãe X". E uma religiosa negra também presente, fez a mesma profissão de fé: "Sou irmã Tal, da congregação Tal, iniciada no terreiro de Mãe Z". Refletindo logo depois essas surpreendentes (para mim) revelações com o pe. François de l’Espinay, ele me deixou mais surpreso ainda ao dizer- me: "Eu vim para Salvador com o objetivo de pesquisar sobre a religião dos Orixás. Senti logo que, como pesquisador, não tinha condições de entender quase nada. Foi então que me decidi a entrar para um terreiro como iniciado. Há quatro anos sou iniciado. Até hoje não encontrei nada que fosse contra a minha fé de cristão, nada contrário à minha condição de sacerdote".
Pedras no caminho
Os teólogos, os biblistas, os pastoralistas concordam com essas afirmações e assumem a posição ecumênica. Nem todos, é verdade. Talvez nem seja a maioria. Houve teólogos e pastores que não aceitaram o tema da Campanha da Fraternidade de 1988 sobre o Negro, no Brasil, e houve mais de uma diocese que não reconheceu como válido o texto-base preparado sob os auspícios da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. E se existe dissenso até entre os mestres, o que não dizer dos fiéis? O ecumenismo é um caminho longo e difícil, cheio de obstáculos. Ele deve ser percorrido pelas Igrejas e não apenas por seus dirigentes.O grande obstáculo é o preconceito contra o negro. Pelo fato de nossos antepassados terem sido trazidos para a América e o Caribe e terem sido vendidos como escravos, criou-se uma situação de desigualdade social. Quem comprou o escravo é seu senhor, é seu dono. O escravo é sua propriedade que ele pode usar e abusar, pode vender, pode doar, pode matar. Dessa relação senhor-escravo decorre naturalmente a relação superior-inferior. O branco é superior porque é dono e deve ser reconhecido e tratado como senhor. Ainda que seja uma criança, um recém nascido, é senhor: sinhozinho, sinhazinha! O escravo pode ter sido rei ou rainha em sua nação, pode ter sido um sábio ou chefe espiritual... agora é escravo, é inferior, e deve reconhecer a superioridade do sinhozinho, deve obedecer aos caprichos da sinhazinha.
Com a abolição da escravatura, rompeu-se a relação senhor-escravo, mas permaneceu o preconceito superior-inferior. Branco diante de negro, tem complexo de superioridade e se julga mais sábio, mais evoluído, mais capaz, tem Q.I. mais alto. O negro, por sua vez, frente ao branco, se considera menos inteligente, mais fraco, menos capaz, numa palavra, é inferior. Como ser inferior, ele acha ruim seu cabelo, feios seus lábios, desajeitado seu modo de andar. Ele gostaria de ser como o branco. Por isso, espicha o cabelo, usa roupas, adornos e cosméticos como os descendentes de europeus. No início, a imitação do branco não foi fruto do complexo que ainda não se havia formado: foi uma estratégia de sobrevivência. Aceitando o batismo e venerando os santos de devoção do seu senhor, o escravo poderia captar um pouco da benevolência e poderia evitar os maus tratos ou até a eliminação sumária. Seja como for, ele foi sempre tido e havido como inferior, inclusive nas igrejas onde havia lugar separado para os senhores com suas famílias e lugar para os escravos.
Neste contexto de apartheid social e religioso, não se podia esperar que o branco permitisse ao negro a prática de uma religião que não fosse a oficial, a saber, a católica. Os pregadores comparavam ao reino de Satanás as práticas religiosas dos escravos e afirmavam que, para o negro, o ter sido feito escravo foi uma graça porque se libertou do paganismo e se tornou membro do povo de Deus. Aos meus antepassados africanos só lhes foi possível manter a fé e as tradições porque os brancos não viam em suas reuniões atos de celebração, mas meros encontros de lazer. Com uma espécie de disciplina do arcano, os africanos que vieram para a América e o Caribe puderam salvar sua identidade religiosa adotando a simbologia católica, mas lhe atribuindo outros significados. Isso ocultou mais ainda o que hoje se procura descobrir: o Deus da Vida presente nas comunidades de origem africana.
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1. Missa dos Quilombos, 1981.
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