II Consulta de Teologia e Culturas Afro-americanas e Caribenhas São Paulo, 7-11 de novembro de 1994 |
Sílvia Regina de Lima Silva
S. João de Meriti, RJ (Brasil)
A Teologia Feminista, a Teologia Negra e a Teologia Índia são hoje, na América Latina, teologias irmãs que caminham de mãos dadas. Trazem objetivos comuns como o de romper com as barreiras impostas pelo discurso teológico ocidental patriarcal. As especificações de cada uma delas, longe de levar a uma fragmentação do discurso teológico que parte dos/as mais pobres, significam diferenças que contribuem na formação de uma teologia plural, criativa, que se comunica e fortalece na diversidade.O presente texto busca apresentar uma síntese de uma possível leitura da Teologia Feminista Latino-americana. Toda síntese corre o risco de sacrificar elementos, detalhes que apresentam sua importância, mas que se perdem na própria estrutura que toma a sistematização. A periodização utilizada toma como base o trabalho da teóloga Ivone Gebara.(1) As experiências relatadas partem, na maioria das vezes, da realidade brasileira, mas creio que podem ser estendidas e enriquecidas por outros países que partilhem da realidade latino-americana.
Ivone Gebara apresenta a história da Teologia Feminista na América Latina em três momentos ou fases. Essas não são cronológicas, nem se apresentam na forma de superação de uma fase a outra. Pode-se dizer que muitas delas coexistem na realidade pastoral e na própria reflexão teológica. Em nosso trabalho procuramos observar em que consiste cada fase ou momento, a compreensão da identidade feminina, a prática das mulheres no movimento feminista e no movimento popular em relação ao período a que se refere, a reflexão bíblica e teológica correspondente, novidades e possíveis limites.
O primeiro momento ou fase foi a descoberta da mulher como sujeito histórico oprimido. A chave de leitura da situação da mulher era a opressão. Falávamos de dupla opressão: opressão por ser pobre, opressão por ser mulher. Esta provocação, de perceber a mulher como sujeito oprimido, veio de fora da Igreja como influência do movimento feminista e do movimento de mulheres. No movimento popular, as mulheres estavam comprometidas em lutas pela transformação radical da sociedade e projetos que reivindicavam melhorias nas condições de vida. A presença da mulher no movimento popular era muitas vezes uma extensão do trabalho no interior da casa, na família. Havia uma estreita relação entre a identidade feminina e o cuidado da vida. A maternidade, que sempre foi entendida como fundamental na identidade feminina, era estendida a uma maternidade social expressa no compromisso das mulheres com a luta pela vida.
No trabalho bíblico, procurávamos resgatar o protagonismo da mulher na Bíblia. O compromisso das mulheres nas lutas populares despertava um interesse especial por personagens femininos que assumem na Bíblia esse mesmo papel de líder na luta pela transformação social. Débora, Míriam, Ruth, Agar, Judith e outras mulheres eram sinônimos de luta por defesa da vida de seu povo.
O segundo momento Ivone Gebara denomina de "feminização dos conceitos teológicos". A presença maior das mulheres no espaço de reflexão acadêmica, fez com que nos preocupássemos em feminizar conceitos teológicos que permaneciam, portanto, conceitos patriarcais. Buscávamos uma teologia com rosto, com jeito de mulher, uma perspectiva feminina da teologia, destacando a importância de redescobrir as expressões femininas de Deus.
Não estava presente nessa fase uma crítica ao conceito de Deus e ao conceito que se tem da identidade da mulher. Esta atitude guarda uma visão equivocada da identidade feminina. Reforça o estereótipo do feminino como o maternal, o sensível, frágil, doméstico. No movimento feminista, nas discussões sobre este tema, ou seja, da identidade feminina, se caminhava em duas direções: uma que insistia na afirmação da diferença e outra que buscava desideologizar estas diferenças, destacando nelas o papel da cultura e da história nas quais surgiram e continuam sendo mantidas. Estas questões permanecem e vão ser colocadas e trabalhadas de forma mais incisiva na fase que segue.
Na terceira fase, somos desafiadas a repensar as questões da identidade feminina, da antropologia, da cosmologia e da teologia que sustentam o discurso patriarcal. A Teologia Feminista supõe uma mudança radical na forma de pensar o mundo, as relações entre as pessoas com a natureza e a divindade. Não é possível mais uma teologia de remendos, de recauchutagem. Na Teologia Feminista trazemos perguntas fundamentais que questionam a estrutura do pensamento teológico elaborado. Não é uma teologia na perspectiva da mulher, que se apresenta como acréscimo ou um capítulo à parte. É um questionamento ao conjunto da teologia dominante. Ivone Gebara chama a atenção que, mesmo a "Teologia da Libertação, que oferece uma visão mais coletiva de Deus e enfatiza a natureza social do pecado, não mudou a antropologia e a cosmologia patriarcais nas quais se baseia o Cristianismo".(2)
Constatamos que conceitos como Teologia da criação, da salvação, da redenção, conceitos como pecado e sacrifício, não podem estar isentos de uma leitura mais crítica da parte da Teologia Feminista. Uma leitura tradicional da identidade feminina aponta a mulher como aquela que esteve sempre identificada pela ideologia do sacrifício, da renúncia, da resignação, do serviço. Tudo isso acompanhado e justificado por uma visão teológica. É desafio urgente repensarmos esta relação. No que diz respeito à natureza, já não a podemos conceber como algo fora de nós mesmas, que transformamos e dominamos. Manter esta relação significa a condenação da própria natureza e de nós mesmas. Superar estes dualismos é condição para uma convivência mais integrada com o mundo. Esta visão mais integrada da criação, uma nova relação entre mulheres e homens, um encontro com a Divindade que nos habita e transborda para além de nós mesmas, são experiências fundamentais que buscamos neste fazer teológico.
A Teologia Feminista Latino-Americana é uma teologia comprometida com a vida e a luta das mulheres. Faz uma crítica às teologias que legitimam de alguma forma a discriminação e subordinação das mulheres nas Igrejas, religiões e sociedades. Relê a Bíblia e as diferentes tradições religiosas a partir da realidade de sofrimento e das perguntas levantadas pelas mulheres no contexto que vivem. É uma teologia plural, feita em comunidade e em diálogo com outras teologias que partem do mundo das/os oprimidas/os.
Partilhamos alguns desafios que nos acompanham neste caminho. Queremos manter e aprofundar o diálogo com o movimento de mulheres e movimento feminista. Procuramos participar da agenda que vem sendo discutida por estes grupos e pensar as dimensões teológicas dos temas propostos, comprometendo-nos com eles. Este tem sido um encontro frutífero que deve ser intensificado. Esta teologia nos ensina a assumir de frente a busca do reconhecimento de nossa cidadania eclesial, incluindo como ponto de reivindicação a ordenação de mulheres, questionando as Igrejas que insistem na inferioridade das mulheres para o exercício desse ministério.
A Teologia Feminista não se submete ao lugar de teologia complementar ou a ser um tema dentro da teologia. Necessitamos ocupar diferentes lugares da reflexão teológica. A cristologia, eclesiologia, liturgia, são espaços a serem contemplados. Esta observação se estende a outras áreas e ciências. Outro ponto importante que vem sendo considerado, na América Latina, são as diferenças e diversidades existentes entre as mulheres. Isso faz com que nos referimos muitas vezes a Teologias Feministas em América Latina.
Teologia Feminista, Teologia Negra e Teologia Índia, são lugares de encontro e diálogo e, juntas, apontam para a busca de novos paradigmas teológicos. Esperamos assim nos aproximar de uma experiência teológica que seja mais transparente e possibilite encontros amorosos com a Divindade que é Criatividade, Ternura e Vida Plena.
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1. Ivone GEBARA, III Semana Teológica - Construyendo nuestras Teologias Feministas. In: Tópicos 90 - Cuadernos de Estudios, Chile, Ediciones Ruhue Ltda., sept. de 1993, pág. 71-124.
2. Ivone GEBARA, Teologia Cósmica: Ecofeminismo e Panenteísmo. In: Folha Mulher, Projeto Sofia: Mulher, Teologia e Cidadania, Rio de Janeiro, ISER, n. 8, Ano IV, 1994.
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