II Consulta de Teologia e Culturas
Afro-americanas e Caribenhas

São Paulo, 7-11 de novembro de 1994

Oficina 2

NEGRITUDE, PROJETOS POLÍTICOS
E NOVA ORDEM MUNDIAL


Considerando-se a complexidade e a importância da temática a tratar, ao pretendermos analisar a história de luta e resistência do povo afro-americano, não podemos ignorar as interpretações históricas sobre o conceito de negritude, conceito este que, em algumas ocasiões, vem determinado por matizes ou tendências ideológicas. Mas, apesar das leituras realizadas sobre a negritude neste momento da história, queremos reencontrar-nos criticamente com o passado e assumir o presente como um desafio à construção do futuro desejado, onde a afirmação do ser humano seja um compromisso político enquanto espaço privilegiado em que se devem legitimar os processos culturais dinamizados pelas comunidades afro-americanas, como também identificar a necessidade de uma planificação econômica a serviço do desenvolvimento integral da pessoa humana.

Tendo em conta que a II Consulta Ecumênica de Teologia e Culturas Afro- americanas e Caribenhas propôs como temas de trabalho conjunto: Negritude, projetos políticos e Nova Ordem Mundial; A teologia na perspectiva da mulher negra; Teologia da Libertação, fé e práticas afro-religiosas; Ecumenismo e macroecumenismo na perspectiva afro; e Bíblia e comunidades negras, tomamos como elementos estratégicos a oficina de Negritude, projetos políticos e Nova Ordem Mundial, enquanto espaço fomentador da reflexão sobre as relações políticas e as ações dos diferentes setores e agentes tranformadores das sociedades.

Consideramos que, dentro dos temas propostos pela II Consulta ecumênica de teologia e culturas afro-americanas e caribenhas, a oficina de "Negritude, projetos políticos e Nova Ordem Mundial", seja um espaço fomentador da reflexão sobre as relações políticas e as ações dos diferentes setores e agentes tranformadores das sociedades. Em sintonia com o processo iniciado na Consulta sobre cultura negra e teologia na América Latina, realizada em Nova Iguaçu, RJ, no ano de 1985, temos a preocupação de que esta II Consulta se defina como uma proposta de princípios e linhas de ação para todos os grupos étnicos, sociais, culturais e políticos, no interior dos quais homens e mulheres estão atuando.

Assinalamos que a negritude, tanto na África como no continente americano, é um projeto político-filosófico a partir do qual se pretende recuperar a identidade de ser negro, nas atuais condições históricas, com o objetivo de contribuir para a construção de uma nova sociedade.


1. Negação da Nova Ordem Mundial proposta pelos países desenvolvidos.

O devastador impacto social produzido nas comunidades negras, indígenas e mestiças da América Latina torna evidente que o modelo de planificação econômica concebido a partir da ótica política dos países ricos e, por isso mesmo desenvolvidos tecnologicamente, lhes têm permitido impor padrões de produção e mercado que não satisfazem às exigências do modo de viver dos empobrecidos. Consideramos que, enquanto a planificação econômica proposta pelos países do bloco chamado desenvolvido destrói as relações entre o ser humano e a natureza e os leva à perda de sua identidade social e cultural.

Buscando acrescentar algo à reflexão sobre este aspecto tão transcendental para a humanidade atualmente, declaramos que essa planificação econômica encerra em si mesma uma ofensa ao ser humano. Por conseguinte, em favor da vida, a rechaçamos por ser semeadora e responsável por exploração, dependência, repressão, injustiça, desumanização, sofrimento e morte.

Da mesma forma, questionamos as adaptações destas políticas econômicas feitas pelos governos dos países latino-americanos, enquanto que, através disso, se dinamizam processos de espoliação, produção e acumulação que em nada correspondem à cosmovisão das comunidades negras, indígenas e mestiças.


2. A nova sociedade que queremos ter.

O conceito de nova ordem é uma formulação que tem sua origem na proposta dos países não-alinhados. Ao percebermos os contornos que ganhou no novo cenário geopolítico, podemos afirmar que esta "nova ordem" engendra mais que um arcabouço ideológico, mas um arcabouço idolátrico.

Frente a essa imposição, afirmamos a negritude como projeto político que possui uma cosmovisão que permite resgatar valores e idéias de uma sociedade igualitária, onde o diálogo inter-étnico seja construído a partir das diferenças, e não por cima delas, e onde a religião, na sua dimensão política, é um ingrediente articulador.

Reafirmamos o ideal de uma nova ordem autêntica, radical e profunda, superando a visão funcionalista e estruturalista da sociedade que não só proponha uma nova política de reajuste econômico, mas um novo padrão de relações sociais, onde a pessoa e a vida sejam elementos articuladores do processo político econômico.

O nosso projeto político, tecido desde a linguagem simbólico-cultural (dança, música, produção econômica, etc.) tem uma realidade abrangente que subverte a lógica mágica do neo-liberalismo e aponta valores que são vitais para a humanidade e que dão respostas à perda de identidade e à angústia existencial da humanidade, na medida em que nos afirma a pessoa com seu valor em si mesma e não como unidade de produção, e a terra não como reserva de valor, mas como espaço vital.

A nova sociedade só será nova, de fato, se nascer a partir da nova pessoa gerada desde uma nova ética. Nessa dinâmica, a mística e a espiritualidade são ânimo de luta e resistência que respeite a diversidade dos processos vividos pelo outro na construção de sua identidade pessoal.

Esse novo padrão de relações supõe uma nova relação interpessoal do ser humano com a terra, na base da harmonia ecológica, e inter-institucional, que passa pela desatomização dos grupos negros, assumindo a negritude como elemento de mobilização e nucleação, construindo alianças sem desconsiderar as divergências e assumindo um conjunto de ações estratégicas de articulação que contemple ações dirigidas ao conjunto dos excluídos, tais como:


3. A negritude como projeto político.

A negritude é um modo de ser, uma maneira de existir... A negritude é uma maneira peculiar de existir, sem excluir o diálogo e a coexistência pacífica com o outro.

O negro não se diferencia dos demais simplesmente pela sua cor de pele... A pele negra tem uma história, uma história de negações e de resistências. É preciso, pois, compreender este ser, que se auto-compreende em sua história de negação, para compreender o negro que se afirma negro.

A negritude é afirmação deste ser que é negro/negra, como pessoas; é a negação da negação. Este negro, destituído de sua história e que vive imerso em si mesmo e numa sociedade que promove a ruptura de seus valores étnicos, sociais e culturais, quer iniciar uma outra história; conscientiza-se, rebela-se de que não é apenas um "João ninguém", uma "ninguém Maria".

A nossa história não começa com a escravidão. Não viemos ao mundo por causa do projeto colonialista. Nossa história é anterior à escravidão. Afirmar a negritude, pois, é afirmar um projeto, uma proposta política.

A negritude, para nós, é muito mais do que afirmar a cor da pele, que é uma evidência. A negritude é afirmar uma história que foi negada, é resgatar o sonho de Quilombo que foi perdido... Implica num compromisso radical com a causa de um povo que é o nosso povo. História de um povo solidário com todos os povos oprimidos da história.

Ser negro/negra é uma conversão e a solidariedade a ele exige o mesmo. A negritude se constitui num desafio, não só para os negros, mas para todas as sociedades da América Latina e Caribe, já que a questão da negritude está no cerne mesmo da formação social de nosso continente e das exigências de mudanças estruturais que estas requerem.

A negritude é uma postura histórica, política, é uma atitude de reivindicação e resgate frente à história de negação do negro. Desde este ponto de vista, colocar para nossas sociedades a negritude como projeto político, implicará em conflitos. Os conflitos nascem porque ser negro e negra implica em resgate e reivindicação: resgate de uma história, como história de rebeldia e criação: o negro/negra sempre souberam que a força de sua luta estava na capacidade de agir organizadamente, pois só ações organizadas podem combater eficazmente situações estruturalmente organizadas. E reivindicação também do direito que temos de usufruir das riquezas que ajudamos a construir, quando não fomos seus principais forjadores.

O lugar fundamental da gestação da negritude como projeto político se dará na comunidade negra de militância, espaço dialético (porque educa para afirmação, negando a negação) fundamental de formação da identidade negra.


4. Propostas e estratégias de ação.

Considerando que nosso projeto político possui dimensões intercontinentais, é muito importante estabelecer alguns princípios e estratégias que o viabilizem de fato. Princípios estes que não se esgotam em si, mas que possibilitam a cada região ou país traçar seu próprio caminho, de acordo com sua realidade ou necessidade sem perder o vínculo com o todo.

Princípios e estratégias:


5. Provocações.

* Insistimos no caráter rebelde do nosso protesto. Não queremos nos dar por vencidos, nem domesticar nossa rebeldia. Pelo contrário, a rebeldia é um instrumento pedagógico fundamental para combater toda a proposta de educação domesticadora e alienante dos nossos povos.

* Insistimos no caráter revolucionário das tarefas políticas de protesto negro... Não devemos ter vergonha de afirmar que a revolução é um processo e devemos estar permanentemente revolucionando nossas teorias e nossas práxis libertárias.

* Insistimos na denúncia da incompatibilidade da realização da utopia de uma nova sociedade dentro dos marcos referenciais de uma nova ordem mundial erigida sobre os pressupostos do neo-liberalismo, que é a nova face do capitalismo mundial.

* Insistimos no caráter utópico dos nossos projetos ainda que coloquemos todos os nossos esforços para fazer que a nossa utopia se traduza numa "topia", sinal e símbolo/convite da sociedade nova que construímos.

* Queremos afirmar nossa permanente capacidade de acreditar que as últimas palavras na história não serão a dor e a morte , mas a alegria e a vida.


Participantes da Oficina 2

Dagoberto Fonseca (Coord.)
Agustín Herrera Quiñones
Ana Lúcia Pereira
Clóvis do Carmo Cabral
Dionísio Miranda Tejedor
José Ribamar de Araújo e Silva
Márcio Alexandre M. Gualberto
Marieke Milder
Osvaldo José da Silva
Dom Uriah Asley




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