Até poucos meses atrás, o direito à propriedade da terra dos remanescentes de quilombos, que está na Constituição de 1988, não havia saído do papel. Agora já começa a não ser mais assim. A comunidade negra de Boa Vista, no norte do Pará, foi a primeira a receber, em 1995, o título das terras que ocupa.
Boa Vista faz parte das 21 comunidades negras da bacia do rio Trombetas, no município de Oriximiná, e é apenas um dos muitos grupos remanescentes de quilombos do pais inteiro que reinvindicam a posse definitiva das terras que ocupam desde os tempos dos ancestrais.
POR CONTA PRÓPRIA - Em 1989, um ano após ser promulgada a atual Constituição, a comunidade negra de Boa Vista iniciou o mapeamento das áreas a serem tituladas. Três anos depois, os moradores organizaram mutirões para abrir picadas no mato e demarcar, por conta própria, os limites de suas terras. Só então apareceu o Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), preocupado com o que estava acontecendo na região. Em dezembro de 1993, foi aberto processo junto ao Ministério Público, exigindo a posse de uma área de 790 hectares.
A boa notícia, anunciada pelo Incra no início de junho de 1995, encontrou os moradores de Boa Vista preparados. Desde o passado, eles estão organizados numa associação, que será responsável, inclusive juridicamente, pela administração das áreas demarcadas. O estatuto da associação tem como base os costumes tradicionais da comunidade negra. Por exemplo, a posse comunitária da terra.
A primeira proposta do Incra foi titular lotes individuais, mas a comunidade rejeitou. Com a formação da associação, fizemos com que aceitassem a propriedade coletiva, ressalta a antropóloga Lúcia de Andrade, coordenadora da Comissão Pró-Índio de São Paulo. Faz seis anos que a Comissão Pró-Índio, que sempre atuou na luta pela demarcação das terras indígenas, vem trabalhando também com as comunidades remanescentes de quilombos.
INTERESSES EM CHOQUE - Boa Vista não é a única comunidade negra da bacia do rio Trombetas a entrar nessa luta. Os vários grupos da região estão articulados na Associação das Comunidades Remanescentes de Quilombos do Município de Oriximiná (ACRQO), que contribuiu de forma decisiva para a conquista que agora está sendo celebrada com muita festa.
Como conta Lúcia, a comunidade de Boa Vista foi escolhida para iniciar a briga porque apresentava condições de sair vitoriosa antes das outras. O território que ocupa é pequeno, se comparado ao das outras comunidades da bacia do Trombetas. Além disso, não tem ninguém disputando as terras. Sabíamos que a resistência seria menor.
O caso de Boa Vista, no Pará, abre um precedente importante na luta das comunidades remanescentes de quilombos de todo o Brasil. Uma luta que promete ganhar força em 95, no tricentenário da morte de Zumbi dos Palmares. Não é por acaso que a Comissão Pró-Índio chegou a ser procurada este ano pelo governo do Estado de São Paulo para discutir a regulamentação das terras das comunidades negras paulistas. Na avaliação das lideranças negras, só com muita organização e luta será possível fazer do que diz a Constituição uma realidade. Zumbi diria o mesmo.
DEPOIMENTO
"Aquela história de abolição, pra nós,
não é bem válida, não.
Porque sofremos pressão
de mineradoras, madeireiras e até do
Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente).
E continuamos a ser escravos na nossa própria terra."Silvano Silva,
Associação dos Remanescentes de Quilombos,
Oriximiná/PA
BOA NOTÍCIAnão só em nossa região, mas em todo o Brasil."
Dezembro 1996 |
Textos extraídos da Revista SEM FRONTEIRAS (N. 231 - ago 95 - pág. 22-23 e N. 248 - jan/fev 97 - pág. 12) |
Biblioteca Comboniana Afro-brasileira. ( E-mail: comboni@zumbi.ongba.org.br ) |