A música e a dança são elementos fundamentais da cultura afro-baiana recorrentemente utilizados na imagem pública que se produz sobre a Bahia. É interessante observar também a profusão de músicos baianos que, neste século, se tornaram objeto de consumo em todo o território nacional. Outra constatação interessante é o fato de muitos músicos baianos que se tornaram importantes no cenário musical brasileiro sempre recorrerem ao universo simbólico da cultura afro-baiana ao criarem suas imagens musicais. Assim, tanto expandiram signos estereotipados quanto reelaboraram outros que alcançaram uma dimensão nacional.
Dorival Caymmi, por exemplo, antigo e respeitado artista baiano, elaborou uma música cuja poesia nasceu da prática cotidiana do português falado na Bahia. Esta música "não é propriamente emotiva e muito menos imperativa. Antes que centrada na primeira pessoa, expressando direta e invariavelmente a atitude e os sentimentos de quem fala, está mais orientada para contextos e coisas" (Risério 1993:106).
Em particular nas últimas décadas, músicos baianos, a música produzida na Bahia e, generalizadamente, o repertório de imagens associadas à música e à cultura afro-baiana têm tido um papel central na produção musical brasileira, na auto-imagem nacional promovida por diferentes agentes e até na imagem pública do Brasil no exterior.
Nos últimos anos, a Bahia gerou internamente um produto musical cuja popularidade no mercado brasileiro tem permanecido. Proporcionalmente, aumentou a atenção da mídia local, nacional e internacional pela música na Bahia. Além do desenvolvimento da indústria cultural e do interesse da mídia, um outro fator importante neste contexto é, de forma diferente, o recrudescimento de uma identidade negra (Agier, 1992). Esta identidade se relaciona tanto com um aumento de curiosidade para com a diversidade cultural da Bahia, para com novos ritmos e danças quanto com o desejo de cidadania e consumo de uma nova geração de jovens negro-mestiços (Sansone 1992 e 1993).
Deste modo, a música produzida e consumida na Bahia ainda que, muitas vezes, considerada "frívola" reflete um interesse crescente para quanto de "genuíno", "africano" está presente em diferentes fenômenos musicais baianos. Esta música, estes músicos e estas imagens recentes não podem ser dissociadas do carnaval. Logo, do consumo fácil e imediato, mobilizador de emoções efêmeras. De qualquer forma, como já observou Peter Fry (1988), o carnaval recebe o impacto da vida simbólica e material do cotidiano. É um espaço segmentado e rivalizado - isso vale também, de forma mais geral, para a produção e fruição de música.
Se até os anos finais da década de setenta, tinha-se na Bahia o carnaval dos pobres, quase todos negros, e o carnaval dos ricos e abastados, quase todos brancos (Morales 1991), a partir dos anos oitenta, este carnaval se divide entre negros e brancos de forma nova. Além da formação de importantes blocos afro, nas últimas duas décadas tem-se visto o surgimento de dezenas de blocos afro menores, afoxés, associações carnavalescas de inspiraçäo étnico-política e, sobretudo, de uma miríade de baterias ou bandas - formadas por profissionais ou amadores - que tocam percussões no estilo chamado de "samba-reggae".
Tem-se criado, assim, novas condições para a produção e a fruição de música na Bahia. Ou novas condições de associação de juventude negro-mestiça e lazer. Frente à tamanha mudança e dinâmica, e à sensação de que a música seja um dos argumentos - daqueles prazerosos, pelo menos - mais debatidos e opinados no dia dia dos soteropolitanos, carece uma análise científica e pontual destes fenômenos.
A música baiana, em particular aquela tida como música negra, tem sido alvo de pesquisas, sobretudo de pesquisadores estrangeiros. Em geral, tem se pesquisado pouco as versões modernas da música popular, aprofundando mais as formas tidas como mais tradicionais, que foram abordadas, de forma predominante, com métodos etno-musicológicos (Herskovits 1946; Herskovits & Waterman 1949; Kubik 1991; Luehning 1990). As formas musicais mais comercializadas - que são, muitas vezes, aquelas que mais se ouvem e que mais determinam os ritmos da cidade - têm sido muito pouco pesquisadas.
Nos últimos anos, porém, um número crescente de pesquisadores têm mostrado novos interesses e utilizado novas abordagens. Trata-se de um pequeno número de pesquisadores sêniores (entre outros, Risério 1981; Béhague 1976 e 1986; Luehning 1990; Crook 1993) e, sobretudo, de jovens pesquisadores tanto na graduação como na pós-graduação dos cursos de Sociologia, Antropologia, Administração e Comunicação da UFBa e de outras universidades brasileiras.
Inspirados por pesquisas no exterior (entre outros, Hebdige 1979; Firth 1978 e 1992; Nettl 1985; Chambers 1992; Robinson e.a. 1991) e por algumas pesquisas no país (Viana 1988; Guerreiro 1994; Rodrigues 1994), estas novas abordagens têm fugido da lógica purista que condicionou pesadamente, até bem poucos anos, a maioria dos estudos da música na Bahia. Hoje há mais curiosidade, entre estes jovens pesquisadores, pelos novos fenômenos musicais e os processos que levam a novos sincretismos musicais.
Há um grande cuidado pela economia e a sociologia da música, por quem ganha com a música (produzindo-a ou vendendo-a), pelas trajetórias profissionais dos músicos e pelas motivações de quem se torna músico ou de quem somente consome música. Outro tema que está suscitando muito interesse é a relação entre universo musical, vida sociocultural e relações raciais. A produção e a fruição de música, dois momentos nos quais a hegemonia cultural e a função do mercado são contestadas e redefinidas continuamente, se prestam muito bem como chave pela reavaliação das mudanças no sistema de relações raciais e pelo estudo de como se perfila no dia dia uma nova identidade negra no povo negro-mestiço da Bahia.
Entre estes pesquisadores é forte o interesse também para as dinâmicas da modernidade e da internacionalização das redes com relação à produção e fruição de música. O estudo da relação entre o fenômeno musical e o processo de globalização, do qual a música é um dos principais veículos e resultados, deve cuidar tanto dos macro-processos da formação do estado, da circulação do capital financeiro e das redes da mídia, quanto do micro-nível da experiência individual no âmbito destas coordenadas estruturais (Erlmann 1993).
Pretende-se, agora, a criação de um núcleo interdisciplinar de estudos socio-antropológicos do universo musical, reconhecendo sua grande variedade de estilos, na nossa região, incluindo a área metropolitana, o Recôncavo e o resto do Estado. O objetivo é a coordenação de pesquisas em realização e a estimulação de pesquisas novas. Em primeiro lugar será levantado tudo que já foi publicado sobre estes temas, será criada uma rede associando todos os interessados e se articulará a harmonização de diferentes pesquisas em curso - tentando evitar sobreposições e visando à criação de um quadro geral de conhecimento dos fenômenos musicais na Bahia, tanto daqueles populares e "vulgares" quanto daqueles mais sofisticados e até eruditos.
Os temas gerais a serem tratados, singularmente nas pesquisas e nos momentos de debates coletivos, são:
a. História social dos fenômenos musicais.
b. A produção de música: as trajetórias profissionais dos músicos; o que determina o sucesso de um músico e de um estilo musical; as técnicas e a tecnologia; o capital e o poder; surgimento e sumiço dos estilos; as redes e as formas associativas dos músicos; os contatos nacionais e internacionais.
c. A relação entre mídia, produção e fruição de música.
d. A fruição de música: como se forma um gosto e um público; a postura do público perante a música e os diferentes estilos; relação entre música e dança; o que é consumido, por quem e por qual público; relação entre música e visual.
e. O impacto da música na cidade, nas relações raciais, na vivência do lazer e na indústria do lazer: o que determina uma ligação tão forte do baiano com a música; os conceitos chave, como suingue, axé, ginga, baianidade, tempero e mistura; como e porquê uma "cultura musical" mobiliza a juventude negro-mestiça na Bahia; que expectativas esta cultura cria entre os jovens negro-mestiços.
f. O processo de reinterpretação da música africana: problematizar a relação intensa do negro com a música, freqüentemente tida como "normal" tanto por negros quanto por brancos.
g. A etno-metodologia dos diferentes gêneros musicais na Bahia.
Ao grupo de estudo se associam seis pesquisas, uma delas recentemente concluída, quatro do curso de Mestrado e duas do curso de Doutorado. Futuramente poderão se associar outros pesquisadores ao grupo. Tanto brasileiros quanto estrangeiros. Aqui segue somente uma lista dos títulos:
1. Black Bahia: o baile "funk" de Periperi.
2. A Estética da Pobreza. Música, Política e Estilo (concluída)
3. A rede musical e a construção da baianidade: a música Axé.
4. Os negros refazem o carnaval: arte e música come instrumentos de luta.
5. Estratégias de sobrevivência entre músicos do bloco afro Olodum.
6. Música e ascensão social entre os jovens negro-mestiços na Bahia.
Temas e pesquisas em andamento
Grupo de Estudos Socio-Antropologicos da Música na Bahia
a/c Livio Sansone
Mestrado em Sociologia
Universidade Federal da Bahia (UFBA)
Estrada de São Lázaro 197
40210-730 Salvador, Bahia (Brasil)
fone/fax: (071) 235.4635
E-mail: sansone@ufba.br