Cartilha
CEBs E POVO NEGRO
NO MARANHÃOAntônio José Ramos Costa
Diácono da Arquidiocese de São Luís (APN)
1. Negritude: cor ou raça? O Maranhão é o Estado brasileiro que tem o maior número de pessoas negras. São Luís é a terceira capital negra, ficando atrás somente de Salvador e do Rio de Janeiro. Existem em nosso Estado hoje, cerca de 400 comunidades negras rurais.
Mas, afinal, quem é esse povo? De onde veio? Quando falamos em negros estamos nos referindo a uma raça composta de vários povos. Cada uma destas nações tem raízes culturais próprias. Não é apenas a cor da pele do nosso corpo que define se alguém é negro ou negra. E nem todos os negros são iguais, especialmente porque no Brasil eles foram misturados às raças branca e indígena.
2. Quem são e de onde foram trazidos? É sempre bom lembrar que os negros não chegaram aqui porque quiseram. Ao contrário, foram trazidos para cá sob a força de ferro e chicote. Viviam na África, um grande continente, bem longe daqui. As diferentes nações e países africanos tinham e têm seus próprios modos de viver, sua fala, comida, roupas, religião, educação, organização familiar, etc. A África está cheia de histórias, contadas pelos anciãos aos mais novos. Os idosos são tratados com muito respeito. A criançada é educada pela comunidade. A família envolve muita gente: tios, tias, primos e sobrinhos e há um espírito forte de solidariedade e partilha entre eles. Muitos países africanos possuem hoje grandes capitais, com indústrias, universidades e tantas outras coisas próprias de uma sociedade onde o dinheiro é a coisa mais importante. Por causa disto, a população corre perigo de perder e está perdendo muito da sua cultura original.
Por diversos motivos, os portugueses e os espanhóis que invadiram as terras latino-americanas, começaram a importar os habitantes da África para servirem de escravos. A partir da segunda metade do século XVII, traziam também escravos para o Maranhão. Estes eram na sua maioria negros de cultura Banto. Vieram principalmente dos países do Golfo de Guiné, de Senegal até a Angola. Eles ficaram mais conhecidos como negros mina, porque eram embarcados, em sua maioria, na Costa da Mina (Costa do Marfim, Costa do Ouro, Costa dos Escravos e as ilhas portugueses de São Tomé e Príncipe). Assim, para o nosso Estado vieram negros angola, congos, fanti-ashantis, nagôs, gêges, etc.
No Maranhão, mulheres negras, sábias e inteligentes entraram para a história por sua bravura e luta pela libertação do povo negro. Guardavam um pouco da comida que sobrava da casa dos brancos. Preparavam os mais gostosos pratos. Montavam bancas e vendiam suas comidas nas ruas. Especialmente na Praia Grande, local do comércio e da venda do peixe em São Luís, era comum vê-las no final da tarde com suas bancas. Com o dinheiro compravam sua própria liberdade, a dos maridos e dos filhos. Algumas mulheres merecem ser destacadas, como Catarina Rosa Ferreira, chamada Catarina Mina. Ela era comerciante de farinha nas ruas que formam o Reviver. Existe hoje um beco com seu nome. Com o dinheiro que ganhava, ajudava na libertação de muitos negros e negras escravizados. Adelina, que sabia ler e escrever, aos 16 anos, já freqüentava comícios e passeatas. Colaborou fortemente na campanha Abolicionista da Capital. Maria Firmina dos Reis (1825) era professora, escritora e poetisa. Mãe Andresa (1855 - 1954), conhecida mãe de santo, governou a casa das minas por cerca de 40 anos.
Este povo, trazido a força para estas terras, não ficava acomodado e quieto diante de sofrimento e dor. Buscava meios de se organizar e lutar contra a escravidão. Era comum a fuga. Os fugitivos se metiam por dentro das matas fechadas, onde dificilmente eram encontrados. Lá formavam uma sociedade organizada, conhecida como quilombo, que acolhia também indígenas e brancos pobres marginalizados. Os quilombos mais conhecidos são os da Lagoa Amarela (do negro Cosme, que foi um dos líderes da Balaiada), Turiaçu, Maracaçumé, São Benedito do Céu, Cururupu, Limoeiro (em Viana) e Frechal (em Mirinzal). Também foram muitas as lutas armadas. Uma luta conhecida é a "Insurreição de escravos em Viana" (1867): os negros quilombolas de São Benedito do Céu ocuparam diversas fazendas.
3. Uma cultura viva e presente. Oficialmente, a escravidão foi abolida em 1888. Muitos negros e negras já não estavam mais na condição de escravos. Mas a situação da população negra no Maranhão não mudou muito. Os negros continuavam trabalhando no serviço sujo e pesado. Suas casas eram precárias. Moravam no fundo das casas onde trabalhavam, em periferias e palafitas ou ocupavam terrenos baldios.
A população negra marcou profundamente a cultura maranhense. Ela deu origem ao bumba-meu-boi, ao tambor de crioula, ao cacuriá, e à reza do Divino Espírito Santo. Ainda hoje se dança a festa de São Gonçalo, a roda, a capoeira. Muitas comidas típicas têm nela sua origem: bobó, sarrabulho, mocotó, feijoada, vatapá, carurú, cuchá, baião de dois, arroz de vinagreira etc. O ritmo negro do reggae, vindo da Jamaica Negra, pequeno país na América Central, consegue contagiar muita gente. No jeito negro de ser ainda há a hospitalidade, o sorriso e alegria, a malícia, o gingado do corpo no dançar, no andar e ao se expressar com gestos. Tudo isso faz parte da sua mística, aquilo que dá sentido verdadeiro e profundo à vida. O povo negro se revigora e enche-se de axé, de força, de energia positiva, para enfrentar as durezas de cada dia.
4. Negritude e religião. A vida das pessoas negras esteve sempre marcada pela presença de Deus. Suas atitudes e relações com as outras pessoas e com a natureza, têm ligações com as divindades. Foi assim que nasceram as religiões afro-brasileiras. A religião de origem africana é conservada por grupos de parentes, por irmandades. Geralmente são chamados de terreiros, tambor de Mina, terecô, cura ou pajelança, tambor de Índio, Candomblé (Bahia), etc.
Sob a influência do catolicismo, da cultura indígena e do espiritismo vindo da Europa (o Kardecismo), as religiões afro-brasileiras passaram a ter outros nomes: o Batuque (no Rio Grande do Sul), o Xangô (Recife, Paraíba e Rio Grande do Norte), Macumba e Umbanda (no Rio de Janeiro e São Paulo). No Maranhão existem cerca de 4.000 (quatro mil) terreiros. Só em São Luís tem 1.200 (mil e duzentos). Eles têm origens diversas. A maioria no entanto provêm da tradição "Mina", que tem na Casa das Minas e na Casa de Xangô os centros mais conhecidos.
As principais características das religiões afro-brasileiras podem ser apresentadas e resumidas da seguinte forma:
- Para elas o culto aos ancestrais é muito importante. Na nação Nagô (no Candomblé), eles são chamados de orixás. No Maranhão, a nação Gegê-Nagô os chama de voduns.
- O transe é o momento em que o "Santo" ou "Caboclo" "baixa", isto é, vem até a pessoa.
- Alimentos e bebidas são oferecidos para agradar o ancestral ou divindade e ele proteger as pessoas.
- Quem conduz a cerimônia no culto, geralmente são as mulheres, chamadas de "mães-de-santo" ou Yalorixás. Em alguns lugares há pais-de-santo (babalorixás).
- Sempre existe uma comunidade, orientada pela mãe ou pelo pai-de-santo. Ela é formada pelos filhos ou filhas-de-santo. Nesta comunidade-terreiro nem todo mundo dança ou "recebe" o orixá ou vodum. Alguns tocam instrumentos, o atabaque, a cabaça e o agogô. Outros cuidam dos objetos sagrados. Outros ainda preparam a comida e há os que só ajudam no momento do culto aberto, quando qualquer pessoa pode ir assistir.
- Nas religiões afro-brasileiras é preciso que as pessoas se preparem durante um longo período, antes de conhecer os segredos das divindades e do culto. Saber como lidar com os orixás ou voduns, exige uma longa preparação. Nós diríamos que é preciso uma longa catequese, até que chegue o dia da iniciação.
- O calendário de festas das religiões afro-brasileiras segue geralmente o das festas católicas.
- As religiões afro são caracterizadas pela sua tradição oral. Não são religiões de livro ou de leituras. Todos os conhecimentos, a história, a crença e as tradições, são contados de uma geração para outra, de mãe ou pai para os filhos.
- Através dos cultos, as religiões afro não pretendem aumentar o número de adeptos ou de fiéis. Não há um. discurso no sentido de "entre para o meu terreiro que lá você será salvo".
- Finalmente, são religiões monoteistas. Para elas, Deus existe, porém não é cultuado. Deus envia os seus intermediários, as divindades, que devem acompanhar as pessoas durante esta vida.
No período da escravidão, os senhores obrigavam os negros ao batismo. Os escravos tornaram-se assim católicos à força. Não havia curso ou explicação catequética. Dizia-se na época que com o batismo a criança deixava de ser "objeto", "coisa" e tornava-se gente. Ao mesmo tempo ensinava-se aos pobres serem sempre obedientes e passivos. Isso era a "vontade de Deus", pregavam alguns padres. Mas com sabedoria e esperteza, o negro enganava os dominadores. Quando iam para a missa ou quando rezavam para algum santo, pensavam e rezavam para os seus ancestrais africanos. Começou então esta mistura que podemos perceber hoje. Muitos santos da Igreja Católica são festejados no terreiro com um outro nome. Utilizando imagens de santos, os negros podiam cantar e dançar sem serem incomodados. Com o passar do tempo, os elementos do catolicismo, como orações, imagens de santos, festas e rezas, começaram a fazer parte de muitos rituais dos cultos afro-brasileiros.
Foi nos terreiros que os escravos encontravam força para conservar a sua cultura. Por isso, os terreiros começaram a ser visto como ameaças, um perigo para os grandes. Incomodados, estes proibiam, perseguiam e bagunçavam os locais de culto e menosprezavam as pessoas neles envolvidas.
Ainda hoje muitos preconceitos cercam os terreiros. Aos católicos e aos cristãos em geral se ensinava e ainda hoje se ensina que apenas sua religião é pura e que Deus só salva através da sua Igreja. Por isso desprezam as expressões litúrgicas e religiosas daqueles que pensam diferente. Criou-se a idéia de que nas religiões afro, se aproveita de ganhar dinheiro enganando as pessoas de boa fé. Muita gente busca nos terreiros bênçãos e proteção por parte das divindades, dos orixás, dos voduns, sobretudo quando a vida obriga a enfrentar dificuldades, desemprego, doença, pobreza.
5. Negros católicos Muitos negros que vivem a sua fé na comunidade do terreiro, se encontram também nas CEBs e nas paróquias. Nem sempre tiveram vez de expressar-se na sua linguagem própria, negra. Por isso, no ano de 1983 nasceram em São Paulo os Agentes de Pastoral Negros, os APNs. São mulheres e homens das comunidades de fé que sentem a necessidade de aprofundar juntos as suas raízes, de conhecer sua história, cheia de riquezas, dores, resistências e lutas para fazer hoje a experiência do Deus libertador. Este se faz presente em todas as culturas. Os APNs querem ser o olhar negro de fé sobre a bíblia, os sacramentos e a vida. Eles vão somando forças na luta contra uma sociedade preconceituosa que exclui cultural, política e principalmente economicamente negros, indígenas e demais empobrecidos. Basta abrir os olhos para a nossa realidade para ver onde é o lugar do negro na nossa sociedade.
A comunidade negra se propõe de viver nas comunidades eclesiais a experiência de Jesus libertador. Ela faz surgir antigas tradições, há muito tempo escondidas e tidas como folclóricas e profanas. Os cultos afro conseguiram preservar muitos desses elementos. Hoje, há tentativas de valorizar alguns deles na nossa liturgia. A isto chamamos de inculturação.
Sumário
IX Intereclesial |
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