Cartilha
CULTURA INDÍGENA
Pe. Cláudio Bombieri
CIMI-MA
1. Uma história.
Julho de 1985. Aldeia Canindé dos índios Tembé à beira do rio Gurupi, Maranhão. Cinco horas da tarde. Um grupo de caçadores acaba de chegar com cinco queixadas. A correria na aldeia é geral. A carne é despejada em frente da casa da cacique Verônica. Uma mulher sábia. Uma verdadeira líder. De facão na mão, Verônica esquarteja os animais e entrega um pedaço a cada pessoa. Um padre que naqueles dias se encontrava na aldeia como hóspede dos índios, ao ver aquele alvoroço, se aproxima timidamente da concentração. Observa tudo admirado. Repentinamente Verônica o chama para perto e lhe entrega uma enorme coxa de um queixada. O padre, um tanto constrangido faz escorrer quase que involuntariamente a sua mão pelo bolso onde guardava a carteira e pergunta quanto custava aquela carne. Dezenas de pessoas se viram para o padre e o fitam atônitos. Verônica toma a palavra e fala para ele:" Padre, a caça é de todos. Aqui, ninguém compra e ninguém vende. A gente reparte. Afinal, não foi Deus quem botou a caça na mata? Como, então, alguém poderia se atrever a vender uma coisa que pertence a Deus?"
O padre, atordoado e admirado com tal resposta, pegou a carne, agradeceu e foi embora. A partir daquele momento porém, os seus olhos se abriram. Começou a perceber como um grupo de pessoas que nunca tinha ouvido falar em Jesus Cristo, que nunca tinha lido o livro dos Atos dos Apóstolos quando descreve a vivência da primeiras comunidades cristãs, vivia práticas profundamente evangélicas.
Começou a fazer uma comparação com a sua sociedade que se dizia cristã. Nesta quem tem dinheiro pode comprar tudo e quem não tem, morre de fome. Aquele padre começou a perceber que Deus estava lhe falando através da prática dos índios. O Deus de Jesus Cristo já se tinha revelado àquelas pessoas, que muitos cristãos chamavam de pagãos, selvagens e bichos brutos. Percebeu que quem devia se converter aos índios era ele mesmo e que o desafio-missão, talvez, fosse o de comunicar à sociedade e à Igreja a que pertencia, os valores e as práticas de pessoas que não levavam o nome de cristãos mas que possuíam a mesma dignidade dos filhos de Deus. Os índios, afinal, são povos que têm formas próprias de se comunicar, de se relacionar com as pessoas, com a natureza e com Deus. O fato, porém, de serem diferentes das demais sociedades não os torna menos gente ou "gente sem Deus". Se todos somos filhos do mesmo Pai, por que será, então, que os cerca de 300.000 índios que hoje vivem no Brasil e os 14.500 do Maranhão, continuam sendo objeto de desprezo, de chacota e humilhação? Por que suas terras continuam sendo objeto de cobiça, de saque e esbulho por parte de setores da nossa sociedade que querem negar aos índios o direito de viver como índios?
Nós sabemos que todo povo anseia ter um território próprio, em que ele possa se organizar e administrar do jeito que achar conveniente, segundo projetos e formas próprios. O antigo Israel, quando era composto por várias tribos e vagava sem uma terra, o que lhe dava esperança e o motivava no dia-a-dia, era a promessa que Deus lhe fizera de lhe conceder uma terra espaçosa, rica em leite e mel. Os povos indígenas alimentam o mesmo sonho. Não somente desejam ter um chão como desejam ver respeitado o chão que conseguiram a duras penas. Hoje, no Brasil, somente cerca da metade das áreas indígenas estão demarcadas, e muitas delas, estão sendo invadidas diariamente. Muitas pessoas, movidas por ganância e má fé e outras por falta de uma educação esclarecida, acham que os índios não sabem trabalhar, que têm terra demais e que não sabem aproveitar das riquezas naturais que possuem. Será que nós também não somos movidos por estes mesmos preconceitos, fruto da desinformação e do racismo que carregamos dentro de nós?
Será que nós também, em nome de uma falsa idéia de desenvolvimento, estamos apoiando direta ou indiretamente aqueles que hoje derrubam, vendem ou destroem o verde das matas, o canto dos pássaros e a alma de povos que querem ser nossos irmãos mesmo praticando uma cultura diferente da nossa?
É freqüente, hoje em dia, na nossa sociedade, achar que os índios não têm sentimentos, não têm formação, não têm capacidade técnica etc. Isso, porém, não reflete a realidade. Os índios têm projeto de vida, sabem o que querem, sabem onde chegar e quais os meios que devem adotar. Ocorre, porém, que os planos deles atrapalham os interesses de uma sociedade que se considera dona da verdade e dona das coisas. É por isso que quem determina a política a ser implementada na sociedade indígena é mais uma vez o governo da sociedade dos não índios. É este que, com o pretexto de defender os índios e sua cultura, elabora leis e decretos que visam enfraquecer sua força e cultura e se apropriar de forma "legal" de seu patrimônio. Os índios não são ouvidos e suas organizações não são reconhecidas, porque eles insistem em não adotar o sistema dos não índios. Não querem se enquadrar numa sociedade que ainda não lhes garante um espaço digno e adequado. Os índios não aceitam o discurso que muitos fazem ao afirmar que eles têm que ser iguais a todos os cidadãos. Essa falsa igualdade significa na realidade, relegá-los à condição de marginal, excluído e escravo. Sem garantias a uma educação específica, sem trabalho, sem assistência médica, sem a proteção de uma lei justa. A mesma situação em que vivem milhões de pessoas não índias. Os povos indígenas já estão vivendo esta desigualdade e estão pagando as conseqüências de um sistema que se apresenta moderno e civilizado.
Diante disso, será que nós, não índios, temos a coragem e a ousadia de fechar uma aliança com os povos indígenas que são vítimas e um mesmo sistema excludente e injusto? Será que temos abertura e disponibilidade para superar os nossos preconceitos, nos colocar na escuta dos anseios destes povos e construir juntos uma sociedade e uma Igreja em que todos aqueles, que acreditam numa terra sem males, sejam considerados filhos do mesmo Pai?
Sumário
IX Intereclesial |
Para maiores informações, pode contatar: