MUTIRÃO PELA VIDA:
NOVO JEITO DE LER A BÍBLIA


A BÍBLIA: CARTILHA DE DEUS,
MEMÓRIA DO POVO


A Bíblia refresca e renova nossa memória e esperança. Lemos a Bíblia, como milhares de grupos e comunidades pelo Brasil afora, para viver, crescer, e ter mais Vida.

Tentamos refletir sobre o novo jeito de ler a Bíblia. Vamos colocar alguns critérios importantes para interpretá-la. A imagem de uma cartilha popular e o baralho das crianças vão nos ajudar nisso.


A Bíblia: cartilha de Deus...


Às vezes, imagina-se que a Bíblia foi escrita em alguns meses. Na realidade, demorou séculos, e a origem mesma se perde na noite dos tempos. Tem muito parecido com as cartilhas populares. O início é tão simples que ninguém dá importância nem fotografa. Alguém pensa em oferecer um material para rezar ou para a formação das comunidades. Do sonho passa-se à ação. Sai a primeira cartilha. Sai a segunda. E diante da terceira alguém costura tudo e faz um livro. De jeito semelhante se formaram alguns livros bíblicos.

A arrumação dos fatos levou tempo. Antes de escrever os acontecimentos, primeiro foram contados e até cantados na noite de páscoa, lembrando a libertação. De passagem, alguns desses cantos e a sua importância: o cântico de Maria. Ela pega um tamborim, e todas as mulheres a seguiram na dança, celebrando a vitória sublime de Javé (Ex 15,20-21). O cântico de Débora (Jz 5,1-30), que faz memória também de outra vitória significativa. Esse cântico de Débora é considerado como um dos textos mais antigos da Bíblia. E o cântico de Ana (1 Samuel 2,1-10). Todos eles contam fatos marcantes da vida do povo. Atualizam a memória e mostram o rumo a seguir. Trazem alegria e esperança. Por isso o povo gosta tanto de cantar até hoje. Cantar abre horizontes e recria os sonhos e a esperança.

Não é à toa que encontramos grande quantidade de cânticos na Bíblia. A memória dos acontecimentos e o sentido deles foram assim preservados e transmitidos! Logo foram escritos, deram lugar à Bíblia.


... e memória do povo


Num curso bíblico, com jovens da Boca do Rio, sobre os evangelhos, perguntei quem é que escreveu os Evangelhos e uma jovem respondeu, com seriedade: "Fui eu que escrevi". Como essa jovem, muitas pessoas, mulheres e homens, poderiam dizer: "eu também escrevi os Evangelhos. Também eu escrevi a Bíblia". Numa palavra, foi o povo que escreveu a Bíblia!

Muitos livros bíblicos levam o nome dos protagonistas, mas não trazem a assinatura de quem os escreveu. Foi o povo todo... até as crianças! Por isso ninguém, ou só alguns, colocaram a assinatura. Isso é mais válido para os livros do Novo Testamento.

- Mas o povo sabia escrever?

- Naquela época, não eram muitos os que sabiam escrever. Era toda uma técnica especial, conhecida só por algumas pessoas! Essas pessoas foram parceiras de caminhada. Escreveram os fatos que marcaram a presença de Deus. E assim tanta riqueza chegou até nós. Esses escritores souberam, mesmo falando de reis e rainhas, apresentar a história na ótica dos pobres, das viúvas, dos órfãos, dos migrantes, dos estrangeiros... Eles olharam a vida com o olhar de Deus. Eles se deixaram inspirar pelo Espírito de Deus e assim nos comunicam até hoje o recado de Deus. Manifestam e revelam-nos o coração misericordioso de Deus.

Por tudo isso, a Bíblia nos pertence. A Bíblia traz o carimbo de Deus e a assinatura das comunidades. Com nossas mãos, com nossos pés, com nosso coração, somos nós que, hoje, estamos escrevendo páginas inéditas da Bíblia no meio do mundo. Tudo isso dá sentido, inspira o povo, ilumina a vida. É Palavra viva de Deus (Hb 4,12).


O baralho das crianças

Quando o pessoal pergunta como se formou a Bíblia, eu costumo usar uma imagem que ajuda a interpretar a Bíblia. Digo, numa linguagem popular, que a Bíblia é como um baralho de cartas que os expertos tentaram arrumar direitinho e deixaram tudo pronto para o estudo, para o dia da inauguração. Só que durante a noite as crianças entraram e "aprontaram". Mudaram algumas cartas do baralho, alguns textos, e deixaram tudo aparentemente como estava, e assim ficou até o dia de hoje. Os estudiosos nem sempre sabem explicar como isso aconteceu. Eu digo: foram as crianças! Foi a mão de Deus!


A mão de Deus


Na hora de interpretar determinados textos da Bíblia, só podemos dizer como Maradona quando marcou aquele gol famoso: foi a mão de Deus! Ele estava e está presente. Ele fez, Ele faz maravilhas no meio de nós. Esse critério é fundamental.

Aconteceu no grupo bíblico de Vale dos Lagos, Salvador. Leva três anos reunindo-se semanalmente. Começaram pelo Gênesis e já chegaram ao livro de Josué. Aqui a coisa pegou fogo! Como é possível que tenham matado todo mundo? Mas que povo é esse?! Algumas cenas eram vivas demais. E o grupo ficou, como alguns que passearam por lá, meio perdido. Vejamos algumas informações chaves para a leitura.


Quando se lê o livro de Josué, tem-se a impressão de que tudo aconteceu vapt-vupt, num fim de semana. Mas o povo, os filhos de José protestam porque têm pouca terra e os cananeus possuem carros de ferro! (Js 17,14-18). Diante disso, a alternativa é trabalhar a montanha que fica ao lado.

No capítulo 18, se diz que "entre os filhos de Israel sete tribos ainda não haviam recebido a sua herança" (Josué 18,2). E no capítulo 20,1-9, fala-se das cidade refúgio para as pessoas que mataram alguém involuntariamente. São informações significativas. Não tudo, pois, é morte!

Ainda. Na leitura, o grupo não levava em conta as informações do texto. No começo do livro se diz que fizeram alianças com pessoas e grupos. Que preservaram a casa de Raab (Josué 2,1-21; 6,22-25), fizeram um pacto com os gabaonitas e suas vidas também foram poupadas (Josué 9,3-27)? Isso está lá, mas ninguém estava vendo.


Para entender algumas páginas sobre guerras, batalhas e heróis... Lembro uma história que contava meu pai, sendo eu muito pequeno. Uma cena ficou muito gravada. Na boca da noite, soldados de um e outro bando, aproximavam-se de um poço, levavam água, trocavam informações, passavam recados para fulano de parte da família, da namorada, do irmão que estava doente...

Eu, na ingenuidade de criança, perguntava: mas "não tinham medo não?". E meu pai respondia: "medo de quê?". "Bom...Quem sabe! De que botassem alguma coisa n'água!" acrescentava eu. E meu pai, que me contou toda a guerra e jamais vi no rosto dele um sinal de ódio para ninguém, me disse: "Água é dom de Deus! Ninguém vai usar para essas coisas!"


A Bíblia traz fatos com um determinado sentido. No livro de Josué, temos uma leitura mais "teológica" que histórica, mais um depoimento de fé que uma crônica dos acontecimentos. E isso é bom levar em conta. Encontramos um recado de Deus. Trata-se de uma leitura profética da história. Um olhar a realidade com o olhar de Deus.


E uma coisa que nos deixa surpresos. Todo o mundo sabe que a terra exigiu luta. Foi conquistada, de fato pelo povo, com estratégias e acordos, mas, no fim, reconhece que tudo foi dom de Deus, conforme a promessa: terra para todos! Depois dos esforços, medos e aperreios, o povo testemunha cheio de alegria que foi Deus que "deu uma terra que não exigiu nenhum trabalho, cidades que o povo não construiu e vinhas e olivais que não plantaram e dos quais o povo comeu" (Js 24,13).

Concluindo. Na leitura da Bíblia, descobrimos a Palavra de Deus e a cartilha da memória do povo. Tudo bem misturado. Maradona fez o gol. O povo tomou a terra. E, ao mesmo tempo, foi a mão poderosa de Deus que fez e faz maravilhas!


Esquecer um dos dois pólos impede a Palavra chegar ao alvo. Fica a metade do caminho. Mas a Palavra de Deus tem um objetivo certo: dar fruto! (Is 55,8-11; Jo 15,1- 8).


Justino Martínez Pérez


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