Retrato Falado
O padre que vende leite
Ele mora no bairro mais pobre de Quito, a capital do Equador. Produz e vende leite de soja para se sustentar. Através de uma releitura da história, ajuda o povo negro a descobrir e valorizar suas raízes. Com a Bíblia na mão, fala de um Deus que gosta dos mais pobres. O protagonista é padre Franco Nascimbene, um missionário comboniano italiano, que largou tudo para ficar mais próximo dos excluídos.
Ninguém mais fica admirado. O povo da periferia de Quito já está acostumado com o padre que passa pelas vielas da favela vendendo leite. É leite de soja, preparado pelas mãos do padre Franco Nascimbene, um comboniano de 43 anos, originário da Itália. Com aquilo que ganha, cerca de 50 dólares por mês, consegue se sustentar e pagar o aluguel do quarto onde mora.
"Por que você não é padre como os outros?", pergunto durante a viagem de volta, depois de padre Franco ter vendido todo o leite que carregava em dois baldes. Ele pára. O sorriso que sempre traz em seus lábios transforma-se em gargalhada. "É sempre a mesma pergunta!", comenta, divertindo-se. Depois, retomando a caminhada, começa a me explicar as razões de sua escolha.
"Cheguei ao Equador em 1983. Por sete anos acompanhei 50 comunidades eclesiais de base espalhadas num grande território da Amazônia. Não havia estradas. Para se deslocar, só a pé. Toda semana, de segunda à quinta, visitava as aldeias. Não levava nada comigo. Comia o que encontrava pelo caminho e o pouco que o povo podia me oferecer. Dormia em qualquer lugar. Tomava banho nos rios e tinha que enfrentar os ataques dos mosquitos. Era uma vida dura e cansativa.
Quando chegava a sexta-feira, era um alívio. Na casa paroquial, podia descansar e me preparar para as próximas jornadas. Tinha à minha disposição um carro, uma casa acolhedora, uma geladeira cheia de comida e muito dinheiro que chegava da Itália. Fiz isso por alguns anos, até o dia em que entrei em crise.
Comecei a perceber que a opção pelos pobres era feita só pela metade. Eu continuava numa boa, apesar dos dias que passava no meio do mato. Estava bem longe da turma daqueles que, no Evangelho, são considerados os mais chegados de Deus.
Quando lia o trecho das bem-aventuranças, sentia-me excluído. O Reino de Deus que anunciava aos pobres não era para mim, pois não queria acabar com meus privilégios. Pedia ao povo pobre das comunidades para renunciar às ajudas vindas de fora, para não ficar na dependência dos outros. Entretanto, eu me sustentava com as ofertas de meus amigos italianos. Chegara a hora de mudar o estilo de vida, para estar mais próximo dos pobres."
Na periferia
Em maio de 1990 padre Franco consegue de seus superiores a autorização para começar uma nova experiência pastoral na periferia de Guayaquil. Aluga um quarto, renuncia à ajuda do exterior e começa a produzir e vender leite de soja para se sustentar. Desse jeito fica mais fácil anunciar o Evangelho aos mais pobres.
Em 1995 é obrigado pelo bispo a interromper a experiência. Padre Franco não desanima. Enfrenta tudo com serenidade. Aproveita desse tempo para aprofundar o estudo da Bíblia, no Chile. Depois de um ano, retoma a experiência em Quito. Aluga um quarto no bairro mais pobre da cidade, habitado quase exclusivamente pela população negra.
Levanta às quatro horas da manha para produzir e vender leite de soja. Na volta do trabalho, dedica um tempo à oração. Depois do almoço, visita as famílias e as pequenas comunidades de base.
Companheiro de luta
Esse jeito de conduzir o trabalho missionário traz algumas vantagens. "Sinto que o povo não me considera mais como o salvador da pátria, o gringo que resolve todos os problemas, mas como um companheiro de luta, um irmão, alguém da família. Eu sou um morador do bairro como qualquer outro, que luta junto com a população mais pobre para conseguir transporte, água, luz, esgoto e todos aqueles serviços a que eu também não tenho acesso. Se morasse numa casa bonita com água a toda hora e andasse de carro, minhas palavras não teriam importância alguma."
A escolha de viver como os pobres não significa gostar da miséria. Pelo contrário, é a melhor maneira de ajudar o povo a lutar para ter melhores condições de vida. "À medida em que você é um deles", comenta padre Franco, "se sente mais envolvido na procura comum de uma solução para os problemas que os afligem. O grande desafio é acreditar nas potencialidades deles. Os pobres devem se tornar os sujeitos e protagonistas da história."
Sobre este ponto, padre Franco não abre mão. Desde que começou esta experiência, não aceita mais ofertas de amigos italianos. Ele acha que para a realização de projetos em benefício da comunidade, é preciso usar os recursos locais. "Lembro que uma vez, quando estava em Guayaquil, precisava construir uma creche. Uma pessoa da Itália tinha oferecido um dinheirão para a construção. Falei disso para o povo e, depois de uma discussão, decidimos devolver o dinheiro e construir a creche com os recursos da comunidade. Demoramos dois anos para completar a construção, mas o povo ficou satisfeito. A creche era deles de verdade. O verdadeiro processo de libertação dos pobres acontece quando acaba a dependência."
Não é fácil viver desse jeito. Além dos problemas ligados a esse estilo de vida, há muita incompreensão por parte dos outros padres. A solidão é o preço que este missionário paga por decidir compartilhar a vida com os mais pobres.
O Deus da vida
No trabalho de Padre Franco, um lugar privilegiado é ocupado pela catequese. Toda tarde ele encontra as pequenas comunidades de base para a reflexão e a oração. "Fiz dez encontros sobre a história do povo negro na América Latina. Para cada um destes momentos propus uma reflexão a partir da Bíblia, comparando a caminhada do povo negro com aquela do povo de Israel. Foi como descobrir o Antigo Testamento do povo negro. O povo teve a chance de conhecer suas raízes e de ler sua história à luz da Palavra de Deus. É bonito ver como os pobres aprendem a conhecer um Deus solidário com as vítimas da opressão e envolvido no processo de libertação."
Atualmente, Franco está tentando um contato com os povos indígenas e com outros grupos de excluídos. Ele quer criar uma rede de coordenação entre os mais pobres. Está consciente de que só com a união de todos é possível superar as injustiças que acabam com a vida de milhões de pessoas.
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Colaboração da:
Biblioteca Comboniana Afro-brasileira E-mail: comboni@ongba.org.br |