Editorial

Estado e Violência

O Estado brasileiro, em algumas instâncias e momentos, reconhece sua responsabilidade pelo desrespeito e violência que vem praticando contra os pobres e os que são vistos como ameaça à secular dominação dos donos da terra, dinheiro e poder. Mas não se mostra capaz de prevenir nem punir adequadamente as violações praticadas pelos seus agentes ou com sua conivência.

Ao mesmo tempo, sob pressão dos setores democratizantes, nacionais e internacionais, e com suas lideranças desejosas de mostrar ao mundo que o Brasil acompanha as conquistas da civilização, coloca em discussão, anuncia providências e até edita leis que ampliam o elenco e garantias aos direitos humanos. Mantém-se, no Brasil, uma singular - e aparentemente esquizofrênica - situação: de um lado, cresce o conjunto de leis e instituições dedicadas à defesa dos direitos humanos (o Código da Criança e do Adolescente e o Código de Defesa do Consumidor são os mais conhecidos), após a Constituição Federal, ela própria ampliadora do elenco dos direitos e garantias. Do outro, mantém-se e amplia-se a violência contra os pobres, suspeitos e "marginais" por parte de agentes policiais e até de setores da sociedade (linchamentos, p. e.) que apóiam e praticam, crescentemente, a cultura do medo, vingança e morte.

O ano de 1995 se encerra com momentos emblemáticos desta dramática situação.

Dezesseis anos depois da Lei de Anistia, o governo brasileiro reconhece explicitamente a responsabilidade pela morte dos "desaparecidos", quando estavam sob sua guarda e em dependências que utilizava. Valeu, no caso, a persistência dos familiares que perseguiram todos os governos com o seu direito à verdade e ao sepultamento em lugar público, conhecido e digno. Valeu a interpelação feita em uma das viagens internacionais do Presidente por jornalista familiar de desaparecido. Valeu a pressão das organizações internacionais dos direitos humanos, tão mais importante quanto o Presidente se esforça para, no figurino reservado aos presidentes dos países periféricos na nova ordem neo-liberal, desempenhar o papel de "relações públicas" e "vendedor" das vantagens do investimento no Brasil.

Mas, se o reconhecimento público da responsabilidade e a publicação de uma lista de desaparecidos foi um avanço, as Forças Armadas reagiram e vetaram a reconstituição das circunstâncias das mortes, um modo de não individualizar responsáveis e tentar fugir a um julgamento histórico e político (o penal é juridicamente muito difícil ou impossível) dos erros cometidos. O objetivo das Forças Armadas é impossível - todos os interessados, inclusive os historiadores, sabem que os "desaparecidos" foram torturados e mortos pela repressão do Regime Militar. Mas revela uma característica das elites e do espírito formalista e corporativo dominante no Estado - a resistência, apoiada no orgulho, de reconhecer quaisquer erros ou crimes (no máximo, admite-se "excessos") praticados pelos seus agentes no trato com aqueles identificados com adversários ou ameaças ao sistema econômico e ordem política brasileiros.

Tenta-se reeditar, mais uma vez, o que tantas vezes teve êxito no passado - esconder e pasteurizar a história do Brasil. Talvez aplicando velhacamente a velha lição de que a verdade liberta, setores das elites acreditam que, mantendo a mentira, manterão a dominação. Esquecendo que também eles ficarão prisioneiros da mentira que formalmente assumem.

Outro momento emblemático aconteceu em Corumbiara. Juiz, de modo açodado, determina reintegração imediata de posse e, sabendo da tensão existente, não se faz presente na sua execução. Violando a Constituição e as leis, que proíbem entradas em domicílios, à noite, mesmo para cumprir ordem judicial (e na antiga tradição policial de que isso não vale para as residências dos pobres), a PM de Rondônia invadiu o acampamento de madrugada e assassinou vários lavradores, depois de detidos e submetidos a atos de sadismo.

A violência da ação provocou reação nacional, promessas de rigoroso inquérito e adequada punição por um governo, aliás, eleito com o apoio de forças progressistas e do qual, se houver pressão e acompanhamento contínuo da sociedade civil, pode até resultar alguma satisfação aos direitos humanos violados. Foi um caso que "extrapolou", adquiriu grande "visibilidade" e, até para manter o funcionamento normal do modelo repressivo, considera-se necessário punir. Como foram condenados, em setembro, no Rio, os PMs que assassinaram assaltante depois de totalmente subjugado e diante das câmeras de televisão.

Passado o impacto e diante da resistência a atender as reivindicações dos lavradores por terra, e até pelo cumprimento das promessas de assentamentos do Presidente, começa a se articular no governo um mecanismo de "demonização" do Movimento dos Sem Terra, que seria orientado e articulado por guerrilheiros do "Sendero Luminoso".

Outro acontecimento relevante na área foi o anúncio, pelo Presidente, mais uma vez no estrangeiro e sob pressão de organizações internacionais, de que enviaria ao Congresso, em 1996, projeto de lei passando à Polícia Federal as investigações contra violações dos direitos humanos e retirando-os da competência das polícias estaduais suspeitas e até rés de conivência e prática de violações. Ao mesmo tempo, o governo anuncia que passará a promover curso de direitos humanos para os policiais. Promessas a cobrar e acompanhar. As leis e a declaração de "boas intenções" visam muitas vezes a esvaziar e adiar a realização da justiça concreta.

Estes fatos emblemáticos não nos devem fazer esquecer da realidade subjacente e mais profunda, em que vale destacar três elementos:

A violência contra os pobres e marginalizados, característica secular da sociedade brasileira, se mantém. Na prática cotidiana, ainda vale a frase: "No Brasil, ser pobre é crime e ser negro é agravante".

Esta violência se aprofunda na medida em que se passa de uma ideologia e expectativa - mesmo ilusória - de futura integração dos marginalizados para a de sua permanente e estrutural exclusão. A opinião pública, estimulada à insegurança, é empurrada, na teoria e na prática, à "apartação" social. Na verdade, a violência do Estado não deve ser referida apenas à agressão física praticada pelos seus agentes. A ele se deve somar a violência de suas políticas que levam ao desemprego, a mortalidade infantil (de novo mostrando sinais de crescimento), ligadura de trompas e abortos (expressão de desesperança no futuro que o governo se propõe a oficializar na rede pública), sucateamento dos serviços e da educação e saúde da população; estímulos, enfim, a uma cultura que serve à morte, não só metafórica, mas concretamente.

Na verdade, não é fácil compatibilizar uma adesão ao modelo neo-liberal no qual se mantenham ou aprofundem o fosso entre ricos e pobres, entre e dentre as nações, com o respeito aos direitos humanos. A própria introdução de mudanças requeridas pelo modelo tem implicado, nos países em que vem sendo implantado, alguma violência que, em país de tamanha desigualdade (a maior do mundo) e ausência de mecanismos de proteção social generalizados, pode ser ainda maior. Diante de um quadro assim, as forças democráticas devem lutar por: