Uma visão de conjuntura
E a vida continua...
Um olhar sobre a conjuntura política-econômica do Brasil fatalmente nos faz deparar com macro temas que estão na ordem do dia, tais como globalização, estabilidade econômica, corrupção, violência, mercado financeiro, desprivatização etc. Todos eles incidem de modo intenso sobre a vida da totalidade do povo brasileiro, em maior ou menor grau, de forma mais ou menos direta. E isso coloca alguns interrogantes, para aqueles que se debruçam sobre esta realidade: como a população, as classes e os mais díspares setores sociais reagem a estes movimentos da conjuntura? Quais as perspectivas políticas que esta situação nos coloca?Visto pelo ângulo "dos de cima", as arregimentações e alianças forjadas em torno do Plano Real e da candidatura do presidente Fernando Henrique Cardoso vem demonstrando suficiente fôlego, se não para resolver o "nó górdio" (a impossibilidade de estimular o desenvolvimento baixando a taxa de juros, instrumento utilizado para manter a estabilidade) provocado pelo plano de estabilização, pelo menos para assegurar a legitimidade social de suas políticas. Pesquisas de opinião dão por alta a popularidade do Presidente e de seu plano, ainda que com índices ligeiramente declinantes. O Presidente e seus ministros sentem-se suficientemente fortes para propor e aprovar - com mínimas alterações que resultam das negociações de posições internas a seu bloco - suas propostas de condução da política econômica. Por outro lado, o Congresso sente-se também legitimado para votar e definir sobre questões que antes não ousaria tocar, como por exemplo a quebra do monopólio do petróleo e o fim da estabilidade dos funcionários públicos. Em certos momentos, o governo e seus aliados têm se mostrado extremamente intransigentes com qualquer contestação à sua ordem, quer seja através da tentativa de banalização dos discursos oposicionistas ou mesmo do uso de atitudes repressivas, como ilustra bem o episódio da greve dos petroleiros. Animado pela "naturalidade" desta situação, a maioria dos governos estaduais e municipais vêm também assumindo posturas cada vez mais autoritárias: o governo da Bahia, por exemplo, baixou um decreto proibindo greve no serviço público, ainda hoje pendente de decisão pelo Supremo Tribunal Federal.
Animados pelo efeito simbólico positivo que os planos de estabilização econômicos produzem entre a população, o governo e seus aliados mais próximos trabalham para repetir o que ocorreu em outras experiências de reajuste neoliberal onde foi possível reeleger seus mandatários em nome da continuidade da política. Os casos do Peru e da Argentina apontam para a hipótese possível de assegurar o respaldo necessário para que se introduza em nossa Constituição o dispositivo que garanta a Fernando Henrique o direito de disputar em continuidade o cargo de Presidente da República.
Por outro lado, desde o início é possível constatar a presença de algum tipo de contestação. Algumas vezes estas práticas vem se demonstrando tímidas e vacilantes, presas às malhas da agenda definida e colocada pelo próprio governo. A oposição parlamentar vem conseguindo arregimentar em torno de 120 deputados e senadores para as suas propostas o que é muito pouco em um Congresso composto por 503 deputados e 81 senadores. Já no campo dos movimentos sociais, parte dos setores organizados não tem conseguido formular propostas alternativas de política e, muitas vezes, utiliza-se como única estratégia a negociação nos termos da própria política de Estado. A Central Única dos Trabalhadores, a mais importante central sindical do país, apesar da sua capacidade de contestação, acossada pelo desemprego e pela recessão que a política de reajuste aponta busca se legitimar perante a sociedade organizando manifestações de protesto que são também patrocinadas por setores empresariais preocupados com as altas taxas de juros e com o desaquecimento dos seus negócios.
Nos grandes centros urbanos, os movimentos sociais que buscam mobilizar as populações dos bairros estão desagregados, sem capacidade de arregimentar pessoas em torno de suas reivindicações. Muitos deles sempre foram extensões das políticas clientelistas, num ambiente no qual o significado da clientela vai se alterando, ampliando o caráter de troca-intermediação de favor e de acesso a recursos públicos e diminuindo o de lealdades pessoais e familiares. Esta relação foi designada por alguns analistas como de "contrato implícito" e implica depois em compromissos políticos com as agremiações mais conservadoras, muitas delas envolvidas inclusive com atos ilícitos. Já a parte mais combativa, tem como expectativa participar na formulações de políticas públicas, principalmente aquelas de âmbito local. Este tipo de aprendizado, de outro nível de intervenção política, muitas vezes só é possível ser exercido com a benevolência do poder público. E para isto é preciso negociar, muito mais do que contestar e envolve sempre algum tipo de acordo cujo os termos podem ser mais ou menos favoráveis aos movimentos. Neste momento, vão construindo novas amarras, muitas das quais apontam para o risco da perda do poder de iniciativa por parte dos próprios movimentos.
No campo, a situação de penúria que recrudesceu a partir da implantação do real (e que primeiro teve seus influxos negativos exatamente no setor agrícola) pôs em pauta novamente a luta pela terra. Capitaneados pelo Movimento dos Sem Terra, muitos trabalhadores ocuparam áreas e enfrentaram as mais distintas formas de repressão, desde aquelas promovidas pelos latifundiários até as próprias do aparelho estatal. É neste campo que mais tem avançado as formas práticas de protesto ao estilo político implantado pelo governo FHC. Porém - como acentua o editorial deste número - os porta vozes desta luta correm o risco de passarem a ser interlocutores subsumidos à lógica do Estado, que prefere negociar os casos pontuais (mesmo os de conflito) a ter que propor uma política mais ampla de Reforma Agrária.
Porém, há que se retomar a pergunta elaborada acima: como a população reage a esta situação? Ao se deixar guiar pelas manifestações mais aparentes, diríamos, com um certo ceticismo. Os assalariados da cana no Estado de Alagoas, votaram com algumas expectativas na possibilidade de que a moeda "estável e forte" se desdobrassem num reaquecimento do emprego agrícola e no aumento de comida no prato de sua família. A crise da cana-de-açúcar vai se arrastando por décadas e se agrava nos últimos anos com a retração do Pró-álcool, que abastecia de créditos subsidiados e fartos os bolsos dos usineiros. Já um ano depois, continuam cada vez mais sem trabalho e empobrecidos. Porém, agora existe a presença da "Comunidade Solidária", distribuindo cestas de alimentos e reforçando as fricções entre as elites regionais do PSDB, do PMDB e do PFL em disputas por espaços nas alianças do poder, com os olhos voltados para as próximas eleições.
Já os trabalhadores do cacau, no Sul da Bahia, com avanço da praga denominada "vassoura de bruxa", com a queda dos preços internacionais do produto e com a falta de uma política agrícola que dê sustentação aos fazendeiros, estão atualmente submetidos ao regime de pagamento de salários através de "vales", em flagrante desrespeito à legislação trabalhista brasileira. São as principais fazendas da região que estão usando esse artifício. Com o "vale" o trabalhador está obrigado a comprar comida apenas nos lugares indicados pelo patrão e ainda pagando um preço mais alto. As falas mescladas de vários trabalhadores, abaixo transcritas, refletem essa situação: "Por aqui a gente nem vê mais dinheiro de real". "Faz já uns 10 meses que a gente só recebe vale. Eu pago a água e a luz, porque minha mulher trabalha varrendo a rua". "Trabalhador não precisa só comer. Tem o remédio, a conta de luz, água". "Eu estou no cativeiro. O cara só sai morto de lá"...
Nas conversas que entreouvimos nas ruas e nos ônibus as pessoas parecem mais interessadas com os aspectos concretos que permitem assegurar a sobrevivência delas e de sua família. É este aspecto da vida cotidiana do povo que hoje mais absorve tempo, preocupação e iniciativa.
Para isso, cada vez mais os trabalhadores têm que assumir o jogo da vida para poder "continuar levando o batente". No cotidiano, os trabalhadores são obrigados a proceder por múltiplos arranjos econômicos e sociais, circulando em distintos espaços e possibilidades, tentando se equilibrar - com coerência ou não - nos vários jeitos da vida em busca de assegurar sua sobrevivência física, social e cultural. E aí entram mulheres, homens e crianças cuja sobrevivência provêm da soma de pequenos quebra-galhos e artifícios que cada membro da família consegue fazer, de mil maneiras diferentes, transitando entre várias situações de trabalho e de vida. "A gente tem que se virar", dizem.
Integrando este universo de preocupações entram também a farra, a festa, a violência, o futebol, a religião (pensada em termos de uma transcendência, alvo de uma esperança desesperada ou dos desesperançados na terra) e outros temas afins. São conversas também permeadas por reflexões sobre a situação econômica, a falta do dinheiro, o desemprego ou o risco da perda do emprego, os fracos rendimentos. O "protesto de esquina" pode ser um amontoado de afirmações quase sempre tendo como referência "os políticos", todos considerados corruptos e responsáveis pela má administração e pela pobreza dos pequenos. "Eu que não voto mais em ninguém. Na época da eleição eles aparecem, depois..." Os votos brancos e nulos em contínuo aumento a cada eleição expressam este sentimento.
Entretanto, uma constatação que salta aos olhos: esta falta de perspectiva política por parte da população mais extensa e mais distante dos meandros da política e da organização popular, pode ser apenas indicadora de uma apatia ou de um conformismo. Porém, mesmo limitados à esta dimensão estes discursos dispõem de um poder corrosivo porque se mantêm afastado dos grupos mobilizados que contestam a ordem, são também deslegitimadores do próprio discurso da ordem. Antes de prenunciar o caos, a selvageria deixada pela ausência de efetividade das instituições, podem também ser sinalizadores da necessidade iminente de que - direitas ou esquerdas - devem buscar outros fios para construir a malha das relações políticas no Brasil.
( Paulo César Lisboa Cerqueira )