Editorial

Farahimará


Negro, católico, bispo e brasileiro, D. José Maria Pires, Arcebispo emérito de João Pessoa-PB, costuma dizer que quando a igreja fez e faz política a favor dos ricos e poderosos, não incomoda, mas se ousa fazê-lo ao lado dos pobres, é criticada, acusada, rejeitada.

A presença da igreja na política brasileira, se confunde com a própria história do Brasil. Nesta terra da Santa Cruz, sandálias de evangelizadores sempre ladearam as botas do colonizador. A convivência com o poder foi inevitável e a hoje querida e formalizada independência ainda carece de efetiva realização.

Falando aos moradores da favela do Vidigal, no Rio de Janeiro, em 1980, o papa João Paulo II bem resumiu os novos rumos da igreja, inaugurados pelo Concílio Vaticano II:

“A igreja, em todo o mundo, quer ser a igreja dos pobres. A igreja em terras brasileiras quer também ser a igreja dos pobres...”

A evangélica opção preferencial pelos pobres, se converte em uma decisão política. A Igreja que se coloca ao lado dos empobrecidos, assumindo sua práxis histórica de libertação, se confronta necessariamente com os interesses objetivos dos estruturalmente responsáveis pela injusta pobreza. Sandálias enlameadas com o caminhar junto aos excluídos, já não podem pisar ante-salas atapetadas do neoliberalismo travestido de poder político nacional. Mais uma vez se conclui pela absoluta impossibilidade de “servir a dois senhores”.

Já sob o espectro da ditadura militar, em 1964, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) promove a sua primeira Campanha da Fraternidade, em tempo de Quaresma. Desde então, neste mesmo período, faz suas as dores de um povo marcado pela injustiça, exclusão, elevados índices de miséria e exploração, escolhendo temas desta realidade na qual a fraternidade esteja violada.

A vida fraterna continua sendo o grande desafio da humanidade e particularmente dos países chamados sub-desenvolvidos e/ou em vias de desenvolvimento. A CNBB acerta ao manter-se vigilante nesta questão, por considerar que nenhum projeto político/econômico/social, por mais bem elaborado que seja, se não tiver como base o bem -comum da maioria, não tem sustentação social e não promove o desenvolvimento na sua totalidade. Fazer teologia cristã implica em partir da situação histórica de dependência e dominação de dois terços da humanidade, onde anualmente dezenas de milhões morrem de fome e desnutrição. Teologizar à margem desta realidade é arriscar-se em argumentações vazias e irrelevantes.

Importantes textos, documentos e declarações da CNBB contribuíram no recente processo de democratização política brasileira: “Exigências cristãs de uma ordem política” (1977), Reflexão cristã sobre a conjuntura política (1981), “O momento nacional” (1982), “Por uma nova ordem constitucional” (1982), “Por uma nova ordem social” (1986), “Exigências éticas da ordem democrática” (1988).

Neste ano eleitoral de 1996, a CNBB elegeu a questão da Fraternidade e Política, sob o lema “Justiça e Paz se abraçarão”. É mais que oportuna a ação pastoral dos bispos, ao provocarem tal discussão num ano em que os fiéis estarão votando para prefeitos e vereadores, nas eleições municipais.

Enquanto instituição da sociedade brasileira, a igreja exerce de novo sua função política em modo próprio, não como um poder político a mais dentro desta mesma sociedade. Ao fazê-lo, com a presente Campanha, extrapola o âmbito dos seus fiéis e presta serviço a todos que, neste país, resgatam consciência política e o exercício da cidadania.

Um documento sobre tema político requer mais que admonições e conselhos. A longa noite do regime autoritário ensinou-nos todos a dimensão participativa, em que muito se escuta e com todos se aprende. Também as igrejas aprenderam que seus documentos não eram para o governo, mas para as comunidades, para sustentar a esperança do povão.

O texto-base da campanha em marcha é incisivo ao caracterizar a disputa política atual nas “duas grandes linhas de posição em jogo no Brasil”:

A paz, que Pio XII afirmava ser “fruto da justiça” e o Concílio Vaticano II traduz por “obra de justiça”, se constrói com os valores básicos de liberdade social e justiça sócio-econômica. A luta pela paz envolve a luta pelos direitos humanos, que se concretizam historicamente na democracia real e na justiça econômica. Uma justiça que possibilite e garanta a paz, não pode ser surda ao grito dos mais de trinta milhões de brasileiros que passam fome.

O abraço proposto pela CNBB nos encontra ainda buscando nossos desaparecidos, chorando os massacrados no Carandiru, Candelária, Vigário Geral e Rondônia, indignados com a guerra contra os pobres do campo e cidade. É lícito assumirmos nós o papel de perdoar, em nome das vítimas da história da humanidade? A pergunta, que pode ser dura para uma sensibilidade cristã, nos remete mais uma vez para a luta pela justiça, como ação imprescindível para os que anunciam um Deus da vida.

Nas rodas de candomblé, o sagrado momento do FARAHIMARÁ envolve todos num longo e fraterno abraço. Até ali muito já foi vivido: sacrifícios matinais, abluções purificadoras, comida partilhada num espaço de convivência fraterna e renovação de axé. Um negro povo de mártires não quer vingança nem revanche, mas insiste em resistir vivendo em toda a sua dignidade. Aqui a utopia entra em paz com o possível e se torna profecia: “O fruto da justiça será a paz” (Isaías 32,17). Então, é tempo de abraço.


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