Editorial
ÉTICA E PRIVILÉGIOS
Nas suas várias andanças pelo exterior, o presidente da república tem aproveitado, livre das pressões de seus líderes no Congresso e dos mais distintos lobbies, para dar asas ao pensamento, estendendo-se para além do permitido por seus compromissos políticos.
Foi o que ocorreu no México. Eis que, numa atitude surpreendente, em cerimônia formal, o presidente arriscou atacar aquilo que se constitui o cerne da estrutura do poder, sobre o qual está montado e onde exerce o papel de coordenador-mor: o clientelismo.
Admita-se que não é fácil para um governo eleito pela fina flor dos mais diversos clientelismos renegá-los assim, de repente, como inconvenientes aos interesses nacionais. Algo deve ter-lhe pesado na consciência; peso que, talvez, o tenha levado a abdicar, por um momento, de um papel para exercer outro. Como afirmaria posteriormente seu porta-voz, acossado por protestos de cunho até nacionalistas, no México falou o sociólogo e não o presidente. Afirmação que não convenceu a Sarney, para quem a estatura do cargo não condiz com denúncias dessa natureza no exterior.
É sintomático que o chefe do governo brasileiro tenha demonstrado esta indignação sociológica num momento em que cresciam as denúncias de possíveis mancomunações entre alguns de seus liderados e grupos empresariais. Quando eram mais acesas as críticas ao papel do Banco Central na fiscalização do sistema financeiro.
O caso da falência do Banco Econômico foi o estopim da crise. Aquilo que parecia ser apenas uma operação normal de falência de uma instituição, se transformou num caso de polícia e de desconfiança na capacidade regulatória do governo. Seu desfecho, inda não totalmente esclarecido, foi móvel de algumas dúvidas. Tornara-se no mínimo estranho que uma entidade como o Banco Central, cuja obrigação legal é a de fiscalizar cotidianamente o setor financeiro, não tivesse conseguido detectar uma situação de gravidade como a evidenciada pela referida instituição bancária, de amplo conhecimento, quase, da população no geral.
A este veio se agregar um outro “estouro”. Desta feita envolvendo uma outra transação ou negociata: a aquisição do Banco Nacional, pertencente à família do ex-governador Magalhães Pinto, pelo Unibanco. Tal como ocorreu com a transação do Econômico, esta também foi posta sob suspeita, vindo, mais uma vez, o Banco Central a ser acusado de imperícia, no mínimo, na avaliação da situação financeira do Nacional; isto é, de assumir posições totalmente atabalhoadas para uma instituição que se crê minimamente séria e responsável.
A dimensão dessas falhas periciais pode ser avaliada pelo volume de recursos dos contribuintes desperdiçados nesse jogo. Os cálculos são pouco precisos, mas há quem admita ser de mais de 12 bilhões de reais a contrapartida dos equívocos até agora cometidos.
Para avaliar o tamanho do rombo, é só comparar com o alegado impacto sobre o déficit público decorrente do aumento do funcionalismo público, caso este fosse concedido na data-base da categoria, em janeiro, segundo percentual mínimo admitido por algumas hostes governamentais, de 10%: 4 bilhões de reais, aproximadamente. Ante essa possibilidade, o Ministro da Administração foi bastante taxativo. Através de algumas maquinações aritméticas, que chegaram a evidenciar, inclusive, possíveis ganhos reais da categoria, o Ministro apontou como justificativa para a negação do reajuste legal a possibilidade de que este viesse a repercutir sobre o incremento do déficit público e a se transformar numa ameaça à estabilidade econômica, ou ao plano Real.
Nada, porém, afirmou o Ministro acerca dos 12 bilhões de reais arrolados nas transações e negociatas envolvendo apenas as duas instituições citadas: números à espera de confirmação por uma natimorta CPI dos Bancos. Talvez raciocine o Ministro que só o funcionalismo causa déficit; falcatruas, não.
Isto é tão mais grave quanto mais crescem as evidências, através de denúncias, de que, envolvidas na problemática das instituições financeiras estão muito mais do que simples imperícia de funcionários. São estas suspeitas que atordoam o governo e sua equipe, tão ciosos de suas qualidades técnicas e da honestidade.
Tal como no caso do Banco Econômico, quando já se denunciara a conivência das autoridades governamentais com todo o processo que viria a resultar na sua liquidação, o próprio presidente do Banco Central afirmou, a respeito do Nacional, que o presidente estava informado sobre tudo que vinha acontecendo. E o que é que isso significa? Significa que o presidente estava a par, inclusive, da manipulação das contas de correntistas para beneficiar interesses dos proprietários da instituição, como amplamente denunciado. Algo que qualquer auditoria conseguiria captar facilmente. Não se sabe por que razões, porém, o presidente teria silenciado no momento, se sabia de tudo, segundo afirmou o próprio presidente do Banco Central: razões de Estado, na boa lógica hegeliana, ou conveniências da Aliança que lhe dá sustentação; ou as duas como uma só razão, a do poder. O fato é que silenciou, mesmo após ter ouvido argumentos de seus auxiliares comprovando a existência de falcatruas. E, como diz o adágio, quem cala consente.
A participação do governo nesses episódios chega ao público, reforçando ainda mais o pessimismo da população quanto à possibilidade de uma administração transparente, como prometida no decorrer da campanha eleitoral. A questão que se coloca é se esta é uma questão desse governo ou de qualquer um submetido à hegemonia do capital sobre suas determinações. Mais ainda num país como o Brasil, cujo capitalismo se desenvolveu sob a sombra de oligarquias rurais, em sua maioria escravocrata, tão ciosas do seu domínio sobre todas as coisas, que jamais conseguiu distinguir os limites entre os espaços públicos e seus interesses privados.
A ausência de uma reflexão mais séria sobre essas determinações e suas implicações é que, às vezes, torna falaciosos certos discursos éticos tão bem elaborados, em hostes as mais diferenciadas, tanto governamentais como não governamentais. Sobretudo o apego a uma ética discursiva, desfocada de práticas concretas, como o que tem se disseminado. Este apego tem contribuído para torná-la, cada vez mais, não mais que pura expressão de uma retórica vazia.
No ambiente em que estamos vivendo, de deterioração do quadro sócio-econômico, traduzido em aprofundamento da miséria e de desemprego estrutural, estes apelos à ética têm soado, muito mais, como convite à acomodação; como um rosário de boas intenções, mas pouco efetivos. Tanto mais quando esses apelos são efetuados por um presidente que, à frente de uma equipe preocupada exclusivamente com equilíbrios macroeconômicos, insiste em transformar o social num simples resíduo da riqueza acumulada; numa questão de caridade pública e privada.
Programas como o Solidariedade, coordenado e personificado pela primeira-dama D. Rute Cardoso, dão bem a dimensão do sentido ético assumido pela proposta social do governo, ao torná-la abertamente resíduo ou obra de precaução. Atuando em áreas onde se configuram situações problemáticas, mapeadas segundo conveniências políticas, o programa tem buscado fundamentalmente ganhar tempo. Ao mesmo tempo em que são reduzidos recursos para áreas sociais, o Solidariedade procura, pelo menos, infundir nas massas mais miseráveis do nordeste brasileiro, a crença numa boa vontade na ação governamental. Mas, só a isso se resume: por ideologia e concepção, pelas próprias limitações financeiras e ausência de seriedade. O que acontece atualmente com a distribuição de cestas básicas em Teotônio Vilela, no estado de Alagoas é, no mínimo chocante. Além da insuficiência das referidas cestas, há denúncias de que volume expressivo de alimentos não foi distribuída à espera do momento eleitoral.
Nesse sentido, o discurso ético é um discurso dirigido e ao mesmo tempo auto-satisfatório. De um lado, é um apelo às classes médias para que repartam um pouco do que têm com os desprovidos de qualquer condição de sobrevivência. É, também, de outro, um apelo às burguesias para que não endureçam o seu coração, contendo, no fundo, uma ameaça.
Bem observado, esse desprendimento, essa doação de um pouco de si e de suas sobras, vem sendo posta como uma condição básica para a segurança futura dessas fatias beneficiárias do modelo de sociedade. O governo vem utilizando esses expedientes para colocá-las contra a parede, como bem reflete a mídia, quando tenta sensibilizar a todos de que o marginalizado social de hoje pode ser o assaltante ou assassino de amanhã.
Por dúbia e preconceituosa que seja, é este o sentido da proposta e do apelo. É a mais exata tradução da intenção governamental. Apela-se para a mudança de um comportamento ético, com o instinto aguçado de preservação das estruturas sociais, distante de qualquer intuito de mudança dos seus padrões de funcionamento.
Quanto mais crescem os indícios de alta corrupção no governo, mais este procura intensificar uma certa pregação de fundo moral. É sintomático o ataque, como sociólogo e não como presidente, efetuado, no México, às elites brasileiras, ainda que estas não se distingam na pregação efetuada em linguajar ambíguo. Quem sabe, por querer atingir outras instâncias, a crítica seja sempre indireta e não direcionada. Às vezes, parece se dirigir mais às organizações identificadas com os trabalhadores, quando efetua admoestações contra uma pretensa ausência de espírito público. Porque, quando no governo se condena o anti-espírito público, a referência maior, quase sempre, se concentra no espírito corporativista presente nos processos reivindicativos. E, para as instâncias empresariais e governamentais, corporativismo, tende a se confundir com as práticas de certo sindicalismo operário.
Mas, o que representa para o governo espírito público?. Nada mais do que espírito de cooperação e de integração no seu projeto, visto como o único de interesse nacional. É o que procura fazer a corrente Força Sindical, e é o que o governo parece exigir, também, da CUT: no mínimo, a prática de um corporativismo ético.
Ao que parece, contudo, o corporativismo só é aético quando está vinculado à defesa dos interesses dos trabalhadores, como classe ou segmento da classe. Ninguém, jamais, ouviu uma crítica mais séria, apenas leves estocadas, a um pretenso corporativismo das Centrais Sindicais dos patrões. O que não é difícil de entender. Para o governo, o patronato é a síntese do próprio interesse nacional. Sua organização não representa, portanto, a expressão de uma mera corporação, como a dos trabalhadores. Trata-se da representação do próprio interesse geral da nação sob a forma corporativa. Por isso não pode, ou não deve, ser contrariado nos seus fundamentos.
Este, talvez, seja o sentido da defesa desesperada e extemporânea, do solidarismo, do comunitarismo e do humanismo tão ao gosto do chefe do governo, nos saraus que participa nas suas viagens internacionais: o de convencer as classes trabalhadoras de que devem se converter a um determinado ideal de paz, tornando-se portadores e não contraditores de uma nova harmonia para a implementação de um projeto histórico, visto como o único viável num contexto marcado pela globalização dos interesses. Como se estivesse a dizer, em tom de ameaça, que o projeto é este, apenas as vias para sua implementação é que podem ser mudadas. Qual seja, não se trata de uma profissão de fé democrática, mas de uma aposta na democracia consensual como a via preferida, mas não a única, nas circunstâncias, no trânsito até o alcance dos objetivos pretendidos pelo governo.
A recepção efusiva ao presidente do Peru, Alberto Fujimori, por parte dos empresários paulistas, foi uma demonstração de que, internamente, no Brasil, ainda não há um consenso sobre as formas mais adequadas de trânsito ao neo-liberalismo. Falando em nome dos empresários, o dono do Banco Bandeirantes e latifundiário, Olacir de Morais, elogiou a audácia do peruano de fechar o Congresso e limitar o jogo democrático, em nome de uma pretensa eficiência da economia, sob as regras do mercado. Não se pode afirmar que o presidente brasileiro participe desses mesmos ideais do moderno empresariado brasileiro. Mas não foram ouvidas críticas a tal demonstração de afeto por um regime semi-ditatorial. Talvez esta seja a sua barganha e a razão da insistência num outro caminho político, mesmo que subordinado ao curso de um projeto econômico abraçado tanto pelos Olacir como pelos Fujimori.
Assim, tanto o comunitarismo, como o solidarismo e o humanismo defendidos pelo presidente, não podem ser encarados como princípios norteadores de uma prática cuja finalidade é o bem estar dos que trabalham. Em suas linhas mais gerais, o discurso deixa entrever o papel da população mais pobre como nada mais do que uma variável funcional de ajuste; um pressuposto da construção de um projeto harmônico, alicerçado na exclusão e na injustiça social. O que torna pouco crível sua sinceridade de propósitos.
A retórica pode ser um instrumento útil na mobilização dos interesses sociais. Grande parte dos atuais membros da equipe governamental já é bastante experimentada nesse campo, desde os tempos em que se alinhava ao lado de um certo desenvolvimentismo, genérico e pouco explícito. Tempos em que o social, também, era posto como decorrência de um processo. Vimos, porém, no que isso deu.
Mudar esse eixo exige, portanto, muito mais que discursos éticos. Exige uma prática comprometida, e ética, sim, mas sem ambigüidade de propósitos, se o intuito é resolução da equação social; mormente quando uma aliança de centro-direita impõe uma das mais sólidas hegemonias conservadoras sobre o país. O tempo é de construção de um novo bloco de forças anti-hegemônico e construção de novos espaços de sociabilidade, onde o popular se expresse qualitativamente na proporção de sua força quantitativa na sociedade.
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