Editorial
Os municípios, as eleições
e o poder local
Quem faz, faz bem.
Quem não, tem fim.
(Da "antologia clássica definida
por Confúcio", via Ezra Pound)
"Rumo ao ano 2000", um slogan que, com suas variantes, vem sendo usado em muitas campanhas eleitorais por todo país. Afinal, agora serão escolhidos os prefeitos e vereadores encarregados de administrar os 4.972 municípios brasileiros, preparando-os para a passagem do milênio. Nesse cenário, convém perguntar sobre a importância das eleições municipais em curso: serão elas marcos de uma nova possibilidade de exercício do poder político no país ou apenas continuam - e retificam - a trajetória de controle patrimonialista do espaço público tão firmemente enraizado em nossa história política e administrativa? Tentar resolver este enigma é uma das questões colocadas na atualidade.
Por um lado, acompanhando uma tendência mundial, somos hoje um país de corte urbano, com 75,47% da população vivendo nas cidades, parte substancial morando nas grandes áreas metropolitanas. Esse processo acarreta novos desafios para os municípios, já que ampliam as demandas pelos bens e serviços públicos. A Constituição em vigor buscou adaptar os mesmos a esta nova situação, ao ampliar as competências exclusivas e compartilhadas dos municípios brasileiros.
À crescente urbanização soma-se as mudanças na forma de regulação da economia mundial, cujo "Estado Ampliado" sobrepõe os limites tradicionais do Estado, ao mesmo tempo em que fortalece a importância da base local do poder público. Isso ocorre no momento em que tornam-se mais difíceis executar as políticas macroeconômicas de âmbito nacional e os espaços locais aparecem como possibilidades para atrair o investimento direto dos capitais que atuam em escala internacional.
Por outro lado, persiste ainda "a presença viva e ativa de estruturas fundamentais do passado", baseada no "clientelismo de fundo oligárquico", que está na raiz do nosso autoritarismo mais profundo e conservador, conforme denuncia José de Souza Martins. Ela faz com que se estabeleça entre nós uma sociedade de história lenta, que se reflete, de modo nítido, na maneira como são administrados os nossos municípios. Mesmo em cidades de grande porte é possível identificar práticas que fazem parte da nossa tradição política baseado no mando pessoal - inclusive sob a aparência de relações modernas e contratuais - em que as fronteiras entre o público e o privado se desvanecem em proveito dos grupos oligárquicos que controlam o poder.
Do ponto de vista do eleitorado, essas práticas são percebidas compondo o núcleo mais vital da política no Brasil e são avaliadas de forma negativa. As conversas cotidianas, as pesquisas de opinião e os altos e crescentes índices de abstenções e de votos nulos e brancos atestam isso. Entretanto, mesmo que pareça um paradoxo, a política tradicional vai se alimentar, com eficácia, nos elementos do clientelismo e nas relações de cunho pessoal para perpetuar seus mecanismos de dominação. Essas práticas vêm demonstrando uma grande plasticidade, capaz de adaptar-se às circunstâncias as mais diversas e assumir um sem número de variantes. Nas zonas rurais e nos pequenos e médios núcleos urbanos, o mundo do favor e do clientelismo político estão mais permeados pelas relações pessoais e pelas redes sociais aí atuantes. Aqui o voto deixa de ser uma escolha para tornar-se a forma de manifestar adesões que possibilitem algum tipo de acesso aos circuitos de favorecimento que os mecanismos e as instituições políticas existentes põem em funcionamento.
Nos centros urbanos maiores, onde o contato social é mais impessoal e as alianças políticas estão modificando constantemente, a clientela assume outro significado, tornando mais uma intermediação de favor e de acesso a recursos públicos, num forma de "contrato implícito", sem outras lealdades que a da troca entre o "benefício" e o voto. Ao mesmo tempo, entra em cena a utilização dos meios de comunicação de massa e o marketing político assume a função de convencimento eleitoral. Neste caso, antes de ser um espaço de discussão de idéias e projetos, o debate eleitoral ganha a dimensão de uma política-espetáculo, preocupada em canalizar os sentimentos mais afetivos do eleitorado. Esses fatores fazem com que o processo eleitoral seja de alto custo financeiro, estando, quase sempre, acessíveis apenas aos agrupamentos políticos mais vinculados à ordem e normalmente apoiados pelos grupos econômicos mais poderosos. Por outro lado, observa-se no governo do presidente FHC uma linha de continuidade na manipulação eleitoral dos recursos orçamentários da União, favorecendo partidos e candidatos da aliança de centro direito no poder.
Uma explicação plausível para a longevidade dessas relações de favores pode ser encontrada no próprio modo como a população avalia os reflexos das políticas públicas em sua vida cotidiana, especialmente aquelas de natureza mais social. Um relatório recente do Banco Mundial atesta que os gastos sociais públicos no Brasil, sejam eles federais, estaduais e municipais, são distribuídos injustamente e contribuem para a concentração de riquezas. Os 20% mais pobres dos brasileiros têm acesso apenas a 15% dos recursos destinados a área social. E essa desigualdade se repete em todas as áreas de atuação do Estado.
Isso ocorre porque existe uma complementariedade entre o setor público e o privado na repartição do produto social. Um estudo de Johannes Augel mostra que o consumo dos bens públicos está ligado à capacidade individual e/ou coletiva de se dispor de bens privados e exige uma contrapartida - material ou não - dos cidadãos. Numa situação de pobreza como a que vivemos a capacidade de consumir os bens públicos, mesmo os gratuitos, torna-se quase nula, porque faltam as condições necessárias para o aproveitamento daqueles. Para quem vive de salário mínimo ou nos limites da sobrevivência, as políticas sociais acabam não tendo efeito em sua vida. Neste caso, de que vale o voto? Na compreensão desta maioria, apenas para definir quem vai usufruir das benesses do Estado e nada mais. Por isso, o voto é utilizado como forma de barganha durante os períodos eleitorais, já que apenas nesses momentos assume alguma importância, especialmente para a troca de favores.
As prefeituras brasileiras, de fato, possuem pouca capacidade de intervir de forma substancial e alterar o problemático quadro social vivenciado, hoje, na totalidade dos municípios brasileiros. Os padrões de urbanização excludente levado a cabo nos últimos anos agravaram os problemas das cidades. A capacidade de oferta de serviços públicos como educação, saúde, saneamento, transporte, segurança, moradia não acompanha as necessidades da população. Além disso, os recursos disponíveis são bastante escassos, tornando as prefeituras dependentes e submissas a outras esferas do poder público. A média das receitas diretamente arrecadadas pelas prefeituras no Brasil alcança apenas 15% dos recursos disponíveis. Os 85% restantes são oriundos de contribuições obrigatórias e voluntárias dos governos estaduais e federal. Nos municípios com menos de cem mil habitantes estas rendas próprias chegam apenas a 4,8% e, no caso do Nordeste brasileiro, não passam de 1,4%. Os montantes arrecadados, normalmente, sequer cobrem as necessidades de manutenção ordinária da prefeitura. Face a este quadro, é fácil perceber porque no Brasil os governos - sobretudo os locais - rapidamente perdem a legitimidade conquistada nas urnas: as demandas sociais são maiores que a capacidade de resposta por parte do poder público. Isso explica a acentuada rotação de partidos e políticos nas administrações municipais, especialmente nas cidades de maior porte em que é maior a cobrança de direitos por parte dos cidadãos.
Apesar disso, vêm surgindo no Brasil novas experiências administrativas que tentam romper com os limites impostos por nossa tradição histórica. São tentativas de reestruturar as instituições públicas atuantes na esfera municipal a partir de uma outra configuração de interesses, mais voltados para a causa popular. Baseadas no princípio da "inversão de prioridades", algumas administrações municipais vêm atuando no sentido de incorporar as demandas sociais ao seu planejamento e ao seu modo de atuar. São tentativas de humanizar as relações entre o poder local e os cidadãos, especialmente aqueles mais mobilizados através dos movimentos sociais. Enfrentando todo tipo de pressão por parte das estruturas tradicionais de poder e expostas a uma política de reajuste econômico centralizadora e pouco afeita às demandas sociais, algumas prefeituras de corte mais popular têm possibilitado antever a emergência de novas formas de fazer político mais adequadas às necessidades do nosso tempo.
Essas experiências, porém, são ainda bastante limitadas ou, no máximo, estão em processo de consolidação. Vivendo uma situação próxima à maioria das prefeituras do país, essas administrações não possuem autonomia política e financeira necessária à amplitude dos seus propósitos.
Apesar da preocupação em manter uma relação ativa com os movimentos sociais, essas práticas administrativas têm, muitas vezes, mostrado incapazes em estabelecer um diálogo fecundo com aqueles, sem querer encapsulá-los em sua própria lógica. A força das ocupações que mobilizam por toda parte centenas de Sem-Terras e Sem-Casas, as reivindicações de saneamento e saúde, os clamores por segurança etc. contam com seus próprios espaços e calendários, seus jeitos e lideranças. Nestes e semelhantes casos, a autonomia e a independência, fundamentais para a dinâmica dos movimentos, podem ser postas em xeque. São abundantes os exemplos nesta direção, especialmente aquelas em que os dirigentes populares são cooptados e submetidos aos balisadores institucionais e políticos das administrações. No entanto, estas experiências devem ser aprofundadas para que se construam outros parâmetros para se pensar a política no Brasil.
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