Editorial

Re(Pro)Gresso


Os aspectos mais importantes da conjuntura, nestes últimos dois anos, têm sido demarcados pelos impactos das medidas tomadas em vista da estabilidade inflacionária do país; tudo parecendo se sacrificar ao cumprimento desse objetivo. Do ponto de vista dos estrategistas governamentais nada se configurou como mais importante. Nem mesmo diante de algumas evidências pouco promissoras no âmbito social vacilou-se. O eixo da preocupação do governo esteve sempre centrado naquilo que lhe pareceu mais importante e fundamental para o momento. De um lado, a eloquência e a firmeza utilizadas na defesa do plano de estabilização; de outro, a ausência de uma oposição à esquerda aos seus supostos, ao lado do tratamento acrítico conferido pela imprensa, vieram a tornar incontestável o sucesso da iniciativa; e cada vez mais arrogantes seus principais mentores.

Quem seria capaz de contestar tecnicamente os arroubos de quem alardeava com números a redução a patamares civilizados de uma inflação de três dígitos?. Quem seria capaz de negar, no clima que fora criado, a contribuição do novo quadro de estabilidade inflacionária para o crescimento da economia e retomada dos níveis de emprego?

Cada vez mais, no entanto, tudo isso tem se configurado como coisa do passado. Timidamente, o Real vem se desnudando, por efeitos da crítica e das suas manifestações mais concretas. Aos poucos tem-se procurado evidenciar que este governo se legitimou, durante longo tempo, através de uma falácia: a de que a estabilidade inflacionária era a pré-condição para a retomada do emprego; esta, contudo, demorou a ser percebida. Durante cerca de vinte e quatro meses esperou-se o milagre da multiplicação de pães; mas os milhões de empregos criados e de hectares de terras para os que desejassem nela produzir foram aos poucos se reduzindo ao que, de fato, significavam: instrumentos com efeitos propagandísticos, portanto, irreais.

Informações mais recentes têm dado conta de uma realidade em tudo contraposta àquela projetada por expoentes governamentais. Ao lado dos pouco auspiciosos indicadores de crescimento do produto interno, projetado para 0.7% em 1996, com queda mais marcante do segmento industrial, avoluma-se o quadro de miséria e exclusão social. É significativo que mais de dois milhões de trabalhadores tenham sido desalojados de suas funções mais recentemente, com pouca ou quase nenhuma condição de reavê-las, na fila para uma informalidade, como o máximo que poderão conseguir. Anúncios de novos investimentos não se confirmam; apenas fusões patrimoniais ou incorporação de grupos empresariais pequenos por grandes grupos, numa concentração de capitais acelerada da qual tem resultado, em vez de crescimento ou estabilização, expulsão de força de trabalho.

Até meados do ano, os laços entre estabilidade inflacionária e crescimento ainda funcionavam como um instrumento de legitimação à disposição do governo. Desde então, entretanto, a realidade social tem contribuído para arrefecer os ânimos governamentais com sua efetividade, dada as já minguadas esperanças da população. Entretanto, em que pesem as pressões por mudanças, provenientes de diversas instâncias, o governo permanece imóvel, não acenando com a adoção de qualquer outra alternativa estratégica.

Este, aliás, foi o dilema enfrentado por todos os governos que na América Latina adotaram modelos semelhantes. Muito bem conseguiram todos estabilizar os preços internamente, ou estimular a entrada de capitais voláteis especulativos; mas esbarraram todos eles, também, nas limitações impostas à retomada dos investimentos reais.

Hoje a inflação parece coisa do passado, não se constituindo numa aparente ameaça à retomada do crescimento. Mas, se antes podia-se considerar como um dado, tratar-se de um dos impactos dos modelos de estabilização adotados, atualmente nem tanto; há dúvidas quanto à expressão maior do seu sucesso. A ausência de crescimento tem caminhado lado a lado com as medidas de restrição monetárias como elementos responsáveis pela sustentação dessa prolongada acomodação baixista. Já não é tão eufórica a recepção de anúncios de queda inflacionária, sobretudo quando esta ameaça se traduzir em deflação de preços. O governo procura tornar conjuntural algumas dessas evidências e os economistas oficiais passam a se mostrar mais conscientes da necessidade de uma retomada ofensiva da economia; ainda que não encontrem os atores que aceitem assumir essa façanha.

O governo parece estar consciente das dificuldades que atravessa para manter a falácia; mas tergiversa. Procura bodes expiatórios: excesso de carga tributária, elevados custos previdenciários, ônus sobre folha de salários...enfim, o já batido custo Brasil; respondendo a certa fatia feudo-escravista do empresariado moderno do Brasil, ao tempo em que se movimenta para todos os lados em busca de uma nova tábua de salvação. Nesse sentido não tem se restringido em termos de fontes; desde que conservadoras. Apegando-se tanto aos novos vislumbres provenientes do antigo CEPAL (Comissão Econômica Para América Latina) a exemplo do regionalismo aberto, como a velhos e carcomidos chavões liberais. Qualquer que seja a via, pela opção passiva, tem apressado os passos na direção do incerto.

É o que tem se verificado, só para exemplificar, com as políticas de liberalização comercial. Até agora seus resultados têm sido minguados. O comércio inter-regional tem conseguido, por certo, realizar parte da produção existente, reproduzir uma situação anterior, mas não tem conseguido promover qualquer incremento efetivo na base material da sociedade, nem remover algumas de suas principais restrições. Atira-se num alvo e acerta-se outro. Em que pese todo o esforço, as taxas de formação bruta de capitais têm permanecido estáveis em patamares ínfimos de 17% do Produto Interno Bruto do país, já sinalizando, inclusive, uma situação depressiva, para alguns já bastante evidente.

A ampla utilização do marketing, apesar de bastante onerosa, aliada à boa vontade dos meios de comunicação, não tem conseguido reverter o leque de expectativas. O quadro de falências, mais enfaticamente das pequenas e médias empresas, a continuidade de um ciclo migratório rural não absorvido no urbano, acampamentos em praças, viadutos, beira de estradas, não apontam qualquer perspectiva mais otimista. Os governantes, contudo, fingem não ver, optando por escamotear esse real através de sempre novos imaginários. Para o governo é mais fácil, compreensivamente, enquadrar todo esse processo como um preâmbulo de uma nova fase de crescimento e de abastança ou pedir pouco mais de tempo para que esse ideário se concretize; isto é, um crédito de confiança à aliança de centro-direita no poder por mais outro período. A população, contudo, dá mostras de cansaço; ainda que não atine para saídas.

O feitiço parece, assim, virar contra o feiticeiro. Se o Brasil carecia de estabilidade econômica para que fosse gerado um clima de confiança propício à ação ofensiva dos empreendedores, há hoje um claro consenso de que só isto não foi suficiente. De fato, índices de inflação civilizados não têm conseguido empolgar mais ninguém; em particular, quando se constata sua relação com baixas taxas de crescimento econômico. O sacrifício do crescimento em nome de uma pretensa estabilização foi uma estratégia deliberada e bem sucedida circunstancialmente. Mas, parece hoje pouco fundada socialmente e aceita.

E não é para menos. Uma taxa de crescimento do PIB anualizada em setembro de 0.7% não consegue atender sequer aos já excluídos do processo produtivo em etapas mais recentes; muito menos às novas gerações de trabalhadores que acorrem aos mercados, num montante de aproximadamente dois milhões de jovens, distribuídos pelas mais diversas ocupações.

Para um governo cuja trajetória mais recente foi toda ela pautada no que ocorrera em países vizinhos, já são sensíveis algumas preocupações. Até mesmo pelas reações que lá estão ocorrendo aos princípios básicos de coordenação macroeconômica, atingindo, inclusive, um de seus principais mentores, o ex-todo poderoso ministro da Economia Domingos Cavallo.

O próprio Real não pôde ser utilizado como mote de campanha dos seus principais aliados, nas últimas campanhas eleitorais. Já não parece ser digno de tanto crédito. A população demonstra querer muito mais que promessas. Ainda soa muito distante a nova senha desenvolvimentista. Afirmar, como tem feito o governo, estar-se diante de um novo ciclo de desenvolvimento, parodiando o ex-presidente Juscelino, sem uma correspondência com o concreto, não tem até agora conseguido embasar novos otimismos; sobretudo no âmbito social, pressionado pelas mais variadas formas de desemprego e de marginalidade, sem qualquer escapatória de curto ou médio prazo à vista.

Em pouco mais de dois anos, a política econômica, toda ela baseada na estabilidade da moeda, não conseguiu se superar; ultrapassar a fase de promessa e se transformar na via de construção de uma nova realidade, pelo menos mais justa em termos sociais. Em que pesem as maquinações - mais de analistas do que do próprio IBGE - a renda permanece altamente concentrada, com pequenas melhoras nas camadas mais baixas, se a estas agregarmos - como dizem! - os trabalhadores informais. É pouco sério, contudo, mensurar bem estar social a partir de uma pretensa melhoria da imensa fatia que foi jogada na informalidade - camelôs, trabalhadores eventuais, prestadores de serviços de toda natureza. Mais adequado seria referir-se aos pouco civilizados - para usar uma linguagem preferida dos próceres governamentais - indicadores de concentração de riquezas, especialmente fundiárias, em tudo iguais aos velhos tempos da inflação.

Com algumas pequenas variações, o eixo da política econômica do governo permanece estático. Sua estratégia não tem conseguido ir além do trivial: manter-se nas posições conquistadas, sem aventurar vôos mais arriscados, que comprometam seus projetos futuros - que projetos?. Parece ser este um consenso dentro do bloco de forças que lhe dá sustentação; pelo menos até que se concretizem as bases de poder municipais e fiquem claras as possibilidades de sua rearticulação hegemônica numa perspectivação conservadora; desde agora disputada entre os grupos malufistas e os diversos PFL`s, tendo o PSDB como coadjuvante menor.

Enquanto isso não se concretiza, as taxas de juros tendem a permanecer altas. O ministro da economia afirma não ter mais interesse na atração de capitais voláteis, esnobando reservas de quase 60 bilhões de dólares; mas não explicita um caminho alternativo. Apenas insinua possibilidades de que o Brasil venha a se transformar no foco de atração para investidores internacionais. Nada tem a afirmar, porém, acerca do crescimento desmedido da dívida pública interna - dívida mobiliária (dívida em títulos)-, cujo estoque já atinge aproximadamente 130 bilhões de reais.

As alternativas atuais ao crescimento do déficit na balança comercial e de serviços - do que no jargão se denomina balança de transações correntes - só podem ser atenuadas por duas vias excludentes: ou através de penetração de investimentos diretos ou através de novas entradas de capitais de curto prazo. Como a primeira alternativa não se efetiva ante a conjuntura de incertezas predominantes, resta a captação de recursos pela via mais fácil, ainda que mais problemática, da elevação das taxas de juros, seu único atrativo. De resto, há negociações infindáveis com credores e potenciais investidores, viagens e mais viagens, discursos e jogos de cenas. Apenas isso, nada mais.

No decorrer dessas manobras salvadoras de uma aliança política, são cada vez mais imprevisíveis os prognósticos quanto ao futuro. Prossegue, entretanto, a falência administrativa programada do Estado, ou sua reconstrução dentro de novos parâmetros; em conseqüência do que, os investimentos voltados para as áreas mais carentes da sociedade também vão se retraindo, ampliando-se o processo de privatização em algumas áreas de interesse imediato do capital - em ramos energéticos e da mineração -, com reforço em âmbitos onde já vinham tendo curso acelerado, na educação e na saúde.

Críticos com maior audiência na imprensa oficial têm se dedicado nos últimos meses a denunciar a inércia governamental. Alguns destes contribuindo para gerar uma certa confusão, porque no Brasil todo crítico cedo vira oposição e se legitima, mesmo diante de públicos para os quais não se dirige. Até mesmo espécimes fabricados nas arqui-conservadoras universidades norte-americanas. Todos estão convencidos, neste ponto se unificando com diversos segmentos, que aspiram por mudanças efetivas, quanto às inconsistências da política de estabilização, vista como defasada no tempo; também, de que, à margem de reformas estruturais mais profundas, qualquer que seja a saída encontrada, de curto ou médio prazo, ou seu retardamento, esta redundará em prejuízos sociais inequívocos.

A diferença fica por conta do acento no estrutural. Enquanto os diversos matizes da reação conservadora distinguem como necessidade de mudança estrutural uma aceleração nas privatizações e um ajuste fiscal mais profundo como pré-condição à retomada dos investimentos, distante de qualquer preocupação social, outra é a posição dos que defendem a necessidade de superação da atual fase de arrocho sobre a população passando pela via do estrutural. Para estes, estrutura não se confunde com superestrutura. Qual seja, se ajustes nas políticas governamentais são necessários, nada obsta que se tornem totalmente inócuos na vigência dos mesmos padrões estruturais dominantes na sociedade brasileira; padrões representados, sobretudo, pela excessiva concentração de riquezas e de rendas, quer nos âmbitos mais especificamente rurais, quer nos urbanos, ou pela crescente diferenciação entre salários e lucros operacionais ou financeiros.

Trata-se, pois, de uma inversão propositada, ainda que hoje bem assimilada, diante do temor intelectual da identidade com uma antiga esquerda. Limitar o estrutural a elementos de uma institucionalidade é uma redução do princípio, que só interessa a quem o traduz como mero simbolismo. O real de uma estrutura está nas bases de uma sociedade concreta, permeada de conflitos, de diferenças e de aspirações contraditórias. Mudar as estruturas vai, portanto, muito além do simples deslocamento de um eixo simbólico, devendo estar assentada, se se quer efetiva, na reformulação dos mecanismos que respondem pela desigualdade social, pela transformação dos indivíduos em números ou coisas cada vez mais desnecessárias, em vista da reprodução global sistêmica.

Esta é a diferença. Há os que aspiram por mudanças para que se permaneça no mesmo lugar, e os que as vislumbram como um passo adiante, sob a ótica dos que trabalham e dos que produzem as riquezas. Os primeiros estão imbuídos de princípios baseados na linearidade evolutiva, mediado pelo progresso técnico. Para estes, só (super)estruturas inadequadas conseguem impedir esta trajetória de crescimento, sendo tarefa progressista sua reformulação ou eliminação. Desse modo é que tem sido encarado o processo de desenvolvimento por neo-liberais e neo-conservadores diversos, muito particularmente por convertidos intelectuais próximos ao atual governo brasileiro.

Do ponto de vista dos que defendem mudanças estruturais como pressuposto de uma nova sociabilidade, trata-se justamente do inverso. Nada impede que tanto o Plano Real como as medidas de ajuste defendidos por supostos críticos acadêmicos, enquanto medidas de cunho econômico-institucional, possam vir a desembocar - como efetivamente vem ocorrendo - numa regressão social; desde que se mantenham intocados outros institutos, sobretudo aqueles baseados num arcaico - este sim - direito de propriedade: à terra e aos homens como coisas funcionais à reprodução da riqueza.

Neste ano que se inicia, as opções são, portanto, muito claras. Ou se aposta num progresso com regressão social, como querem os neo-liberais do governo, ou se implantam as bases de um novo modelo de reprodução social; sem fugas para a frente, à moda politicista, mas partindo das condições reais dadas pelas contradições que permeiam o universo sócio-produtivo.

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